Patricia Highsmith visita Paul Bowles em Tânger

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Patricia Highsmith visita Paul Bowles em Tânger
(Patricia Highsmith*)

 

Norte-americana recolhida na Suíça, fui bater À porta de Paul Bowles, o norte-americano de Tanger. Foi em agosto do ano passado, e era a primeira vez que eu ia àquela cidade. Minha visita coincidiu com a publicação na França de “Jungle Rouge” (Selva Vermelha), o único romance “noir” do autor de “Um chá no Saara”.

 Quando estava de partida, um amigo me dissera: “Espero que lá você encontre Paul Bowles. Sem ele, Tanger não seria Tanger”. Não resta dúvida de que Tanger não é Tanger para esses jovens escritores que vêm de toda parte, que não conseguem ser apresentados a ele e a quem falta a audácia de pedir seu endereço ou, no caso de o terem descoberto, a coragem de ir bater à porta dele.

 Bater à porta dele é a única solução, já que Paul providenciou para que cortassem seu telefone: o parelho não funciona nunca, mas apesar disso as contas tinham de ser pagas. “Senão, não se consegue sair do país”, explicou-me ele.

 Quando cheguei, minha anfitriã estava ausente do prédio de cinco andares onde também mora Paul. Não adiantou tocar a campainha. “É Paul que a senhora está procurando?”, disse-me uma das marroquinas que morava no pr´dio, acompanhando-me até a porta do apartamento de minha anfitriã.

 Percebendo meu sotaque francês elas haviam deduzido que eu estava procurando Paul. Tive então que ir bater à porta dele no andar de cima. Conhecia vagamente Paul Bowles, que encontrara anos antes, quando morava em Nova York. Ele conhecia minha anfitriã. Quem me fez entrar foi um marroquino. Paul mostrou-se muito afável, embora estivesse jantando quando cheguei.

 Ele é um homem muito bonito, que enverga com elegância seus 77 anos. Tem hoje os cabelos completamente brancos e, na voz, uma ponta de sotaque “yankee”. Seus gestos parecem impregnados de uma sorridente cortesia, como se ele encarasse os defeitos do interlocutor com bem-humorada indulgência.

 Para mim, Tanger poderia muito bem ser Marte, Júpiter ou a Lua. O ritmo da vida, como iria descobrir nos dias seguintes, o tipo de relação com os outros – tudo é diferente. É por isso que havia uma espécie de estranheza no ar, nessa primeira noite. Depois, ao ouvir Paul falando com um sotaque quase igual ao meu, avaliei o quanto sua existência era profundamente diferente da minha.

 Ele traduz muito, ao que parece, do berbere e do espanhol. Feliz o árabe ou o espanhol que o tem por tradutor. Em seu quarto, há um gravador sofisticado com o qual ele grava os textos árabes que traduz em seguida. Não cheguei a ver, no quarto ao lado que lhe serve de escritório, onde estava sua máquina de escrever.

 Na entrada, há uma pilha de umas dez malas empoeiradas e talvez nostálgicas, que parece vagamente ameaçada de desabamento. Há também divãs baixos ao longo de duas paredes da sal e, junto a uma outra, uma lareira que, percebe-se, é bastante utilizada: o aquecimento central do prédio está fora de uso por causa da falta de manutenção da caldeira, e os invernos de Tanger são úmidos e frios.

 O apartamento de Paul é bastante sombrio, cheio de cortinas, de detalhes pessoais, de estantes de livros, como se ele quisesse encerrar ali a quintessência de seu passado e suas experiências. Isso forma um curioso contraste com sua receptividade em relação a quem vem de fora. Ele ouve os estrangeiros, os traduz, preocupa-se com eles. Para eles, Paul sempre dá um jeito de achar tempo. Mas talvez ele seja mais exigente em sua escolha do que sou capaz de imaginar.

 Quando o encontrei passeando na vizinhança – o que aconteceu muitas vezes durante a semana que passei em Tanger – ele sempre estava acompanhado por um ou dois jovens escritores. Uma tarde, às quatro horas, vi cinco pessoas sentadas em círculo em sua sal, falando aparentemente de coisas variadas.
 É como se esses estrangeiros, esses escritores, esses jovens, se juntassem em torno de Paul para dizer-lhe: “Fale-nos da vida, de sua vida. Qual é o sentido da vida?”. E há aí, mais uma vez, um paradoxo subjacente: Paul não propõe respostas idílicas.

 Ele vê a vida com um realismo total, com uma lucidez total. Como escreveu Tobias Wolfe, na revista “Esquire”, “ele é ao mesmo tempo austero e espiritual, violento e sensual”. Mantém os olhos bem abertos para o sadismo da humanidade, para o implacável massacre do homem e do animal pelo animal e pelo homem, e o espírito bem aberto à provável insensatez de tudo isso.

 Talvez seja por isso que os jovens e os menos jovens se reúnem em torno dele, batem à sua porta, colocam recados embaixo dela. “Você pode falar conosco, Paul? Diga-nos a verdade”.

 De volta agora no outro lado do mundo, na Suíça, onde vivo, penso em todas essas perguntas que quis lhe fazer, e que pretendo transmitir por carta.  Ele terá a paciência de responder-me.

 Ele dá muito de si aos outros.

 

*Folha de S. Paulo, 21 jan. / 1989.

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