Desbunde Antologia Nostálgica

Desbunde Antologia Nostálgica

texto Mário Pazcheco

Recentemente houve um tempo de insegurança em que a notícia hesitava e os minutos gastos nas redações lutavam contra mutilações e angústias de atos terroristas contra bancas de revistas. A censura atualizada pelo Ato Institucional nº. 5 (AI-5), baixado durante o governo do marechal Costa e Silva, retomava os anais históricos fornecidos pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), da ditadura de Getúlio Vargas.

Ao longo da década de 70, o AI-5 foi usado permanentemente contra os movimentos populares, dando aos generais-presidentes poderes ditatoriais para garantir a ordem de exploração e da opressão.

Marcados pelo sufoco e por propostas nem sempre bem recebidas ou compreendidas pelo sistema, os jovens como oposição meramente comportamental deixam os cabelos do corpo aflorarem com toda a violência natural, escondem os corpos com batas indianas ou camisetas coloridas, usam sandálias e bolsas de couro. A geração brasileira da paz e do amor contestava andando de maneira errante, exalando patchuli e expressando-se através de símbolos, gírias e edições próprias, em contraste com a linguagem dos discursos do Estado.

No campo literário, a imprensa alternativa e de resistência ao embargo da cultura pelo Estado foi rotulada de desbunde, marginal, maldita, alternativa: o termo “imprensa nanica”, foi sugerido pelo escritor João Antonio, na revista ‘BICHO’. Em mais ou menos, 1976. João Antonio foi um emérito colaborador dessas nanicas e cunhou o termo como uma auto-ironia e não pejorativamente como possa parecer. Era comum a imprensa nanica se auto-ironizar, até mesmo no nome. ‘PASQUIM’ não é autodepreciação? Nomes como ‘VIRUS’, ‘BAGAÇO’, ‘FLOR DO MAL’, ‘BICHO’, ‘OVELHA NEGRA’, são alguns exemplos.

Certamente ouvimos falar dessa imprensa alternativa tupiniquim, mito pouco lido que seria o veículo do processo de revitalização das idéias no vácuo cultural do mormaço.

Os primeiros toques foram fornecidos através de publicações livres das correntes, linhas e retratos da tradição permitindo reconciliação entre a alegoria e a contracultura. Pasquim e Opinião foram considerados alternativos “consolidados”, mas o Bondinho, a Navilouca, a Flor do Mal (com as anotações visionárias de Luis Carlos Maciel), Presença, dos editores: Rubinho Gomes, Antônio Henrique Nietzche e Joel Macedo, e a revista/jornal Rolling Stone (tratando o rock com fenômeno cultural) exerceram influência e fascínio maiores por serem undergrounds.

Dentro do espírito de descentralização e fragmentação da essência, Brasília absorveu a proposta e em 72 um grupo de estudantes da UNB, em sintonia com a proposta universal da contracultura, edita o mensário Tribo. Três anos mais tarde, o alternativo Ordem do Universo transformou-se em fenômeno editorial entre os alternativos brasilienses, conseguindo 23 edições e o pico de 20 mil exemplares, com distribuição e além mar.

A linha editorial da Ordem do Universo - com conteúdo editorial inusitado, baseado em macrobiótica, agricultura orgânica, medicina alternativa, ecologia e esoterismo - fez escola com os termos que seriam explorados posteriormente como filão pela indústria cultural.

Nos anos 80, a bandeira desfraldada pela Ordem do Universo voltaria a tremular através do jornal Transe.

Diante da incapacidade de pronunciamento e de resolução dos problemas criativos a imprensa nanica nacional denunciou o policialismo e a mentalidade fascistóide empregada pela ditadura Médici através de seus programas de tevê e campanhas similares que levaram a Pátria através do exílio a ceder seus criadores para outros espaços e línguas.

Gerou análises e leituras fragmentadas numa verdadeira colagem de textos ágeis e articulados com a descontinuidade proposital de um parágrafo para outro, concebendo documentos acrisolares que capturavam a intelligentsia do período de paralisia imposto e de quem realmente possuía conceito, forma e causa.

O ofício de escrever fundamentou a linguagem alternativa que abominava as regras gramaticais ortodoxas. Caetano Veloso quando escrevia manifestos não usava iniciais maiúsculas ou parágrafos. Glauber Rocha criou uma ortografia própria, difusa e profunda de ys e ks. Na busca de linguagem original, o cineasta grafava: Akhadhemya Brazileyra de Letraz, katólyko, e assim por diante...

Esteticamente valorizadas, fotos e ilustrações foram expandidas para cartões de mail-art pop; floridos com iluminuras e requadros ornamentaram as colunas da época, as cores instalaram-se para dar a aura transcendental aos textos.

Rogério Duarte, ao lado dos ilustradores Lapi (e o Cartum mutatis mutandis), Alain Voss (e capas dos discos dos Mutantes rodeadas com ramos floridos) Luciano Figueiredo, Hélio Oiticica (e o penetrável tropicália, os parangolés, a bandeira “Seja Marginal, Seja Herói”, a capa do disco Gal Legal) e Rubens Gerchman, foram alguns que inventaram graficamente o desbunde.

No bojo da contracultura nasce a preocupação ecológica. E descobrimos que art-noveau é a perfeita reciclagem de formas na natureza (principalmente vegetal). As colunas do Maciel na Rolling Stone também eram estilizadas através de ramos floridos, assim como as capas dos jornais.

Mais tarde, os toques foram continuados pelas revistas Argumento, Geração Pop, Rock, a História e a Glória, os jornais Verso e Movimento, além das breves O Circo e Arranjo. As seções de cartas compartilhavam a intimidade entre leitores ávidos por informações e editores preocupados em alertar para a estagnação, o conformismo, e esclarecer fatos.

A poesia marginal retomou a reinvenção do código poético, tentando restituir à poesia o seu caráter essencial como imagem. A imprensa alternativa exprimiu o pensamento e registrou o ato atormentado em papel. A máquina de escrever tornou-se a lanterna das redações e das fugas das sombras da marginalidade.

Na tentativa de conciliar o estreito universo mental de nós consumidores e o abismo da criação, surgiram os rótulos agregados de paroxismos próprios do vácuo - manobras para darem às obras um sabor ousado no quesito de consumo: “criadores radicais”, “vanguarda”, “alternativo”, tupiniquem?

Glauber Rocha, Torquato Neto, Hélio Oiticica, Jorge Mautner, Ivan Cardoso, Neville d’Almeida, Jards Macalé, Arnaldo Baptista, Rogério Duprat, Julio Medaglia, Walter Smetack, José Celso Martinez Corrêa, Tom Zé: “tropicalistas”, “folclóricos”, “exóticos”, “radicais”, “decanos”, “pessoas difícieis”?

Foram e são considerados difíceis porque simplesmente não faziam ou fizeram concessão alguma, a ninguém, a coisa nenhuma; consentiram fidelidade eterna ao critério da inventividade acima de todas as concessões.

Hoje, a imprensa marginal descansa no saco de dormir, a retórica da contracultura figura apenas no imaginário dos aprendizes de feiticeiro ou nas relíquias perdidas dos baús de quem viveu o fim do sonho.

Longe das estantes os sentidos soterrados removem destroços do lixo cultural. Rituais de iniciação nas bases de um processo paulatino precocemente sepultado e cimentado pelas pás de cal da poeira linear dos enlatados e das campanhas anti-solidariedade em conluio com a insônia e lerdeza desse gigante espantado a esmo e ainda caridoso.

Por mais que nos coloquem a canga ou dando com os burros n’água, um dia chegaremos à fonte do Eldorado da tradição opuscular de algo que não perdemos, a sintonia interior.

Esse artigo é versão personalizada, outras visões e dados devem ser incorporados. Não desprezar: lúcifer no céu com diamantes, prostíbulos, salas cheias de santos e oratórios e notícias populares. A imprensa alternativa espera uma reedição em livro dos melhores textos.

 

Trilhas do Desbunde

 

Discos

• Pra iluminar a cidade - Jorge Mautner

• Pérola Negra - Luís Melodia

• O disco do tênis - Lô Borges

• O disco do bauretz- Mutantes

• O disco da mosca- Walter Franco

• Carlos, Erasmo - Erasmo Carlos

• Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez - Raul Seixas/Sérgio Sampaio/Miriam Batucada/Edy Star

 

 

Filmes

• Câncer - Glauber Rocha

• Meteorango Kid, um herói intergalático - André Luiz de Oliveira

• O Demiurgo - Jorge Mautner

• Nosferatu no Brasil - Ivan Cardoso

 

 

Livros

• PanAmérica - José Agrippino de Paula

• Fragmentos de sabonete - Jorge Mautner

• Panfletos da Nova Era - Jorge Mautner

• Catatu - Paulo Leminski

• Quampérios Chacal

• Nova Consciência - Luís Carlos Miguel

• Me segura qu’eu vou dar um troço Wally Salomão

• Folias Brejeiras - José Simão

 

Revista

• Arte em Revista - Em cinco números, a Editora Kairós inventariou o desbunde no Brasil.

 

Jornais

• Flor do Mal • O Bondinho

• Rolling Stone

"É claro que a Rolling Stone foi bem mais que esse folclore relatado por Ana. Ela já tinha largado o barco com o Maciel quando eu, o Lapi e o Zeca colocamos na rua, com as máquinas de escrever que sobraram da degola, a edição final, quase pirata, a única de 1973. O epitáfio da Rolling Stone - foi uma cruz hippie esfarrapada na capa. Está sim uma edição histórica !!!!! Talvez valha a pena você incluir este depoimento que houve uma edição em 1973 (sim), já sem o Maciel e a Ana Bahiana, tendo Joel Macedo como editor de texto e Lapi como editor gráfico. Obrigado.

Continuo eternamente on the road... só que agora na estrada de Jesus Cristo. Estou seguindo o Cordeiro pela eternidade afora (ainda há vagas)". (Joel Macedo).

• Presença: Jornal underground carioca, que circulou durante o ano de 1971. Editores: Rubinho Gomes, Antônio Henrique Nietzche e Joel Macedo.

"Essa história de Presença X Flor do Mal é emblemática. Foram os Beatles e os Rolling Stones da imprensa underground carioca do comecinho dos anos 70. Presença era mais light, mais hippie, The Doors, psicodelismo etc. até pelas cabeças reunidas. Flor do Mal era uma proposta Beaudelairiana mesmo, mais pesada, W. Burroughs, Bukowski, mais a cara dos Stones da época: Midnight Rambler, a cara também das cabeças reunidas. Foram duas faces de um mesmo grito literário". (Joel Macedo).

 

*PUBLICADO NO JORNAL/TABLOÍDE “INTELLIGENTSIA”, Brasília, nov. / 1994.

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