1999: NISE, REBELDE MALDITA (ELVIA BEZERRA)
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Nise, rebelde maldita (Elvia Bezerra*)
“Para navegar contra a corrente são necessárias condições raras: espírito de aventura, coragem, perseverança e paixão”.
Assim a médica alagoana Nise da Silveira classificou os atributos que marcaram a sua trajetória como psiquiatra que faria do Brasil, no século, o pioneiro na revolução mundial por que passou o tratamento dado ao doente mental. Em vez do confinamento em celas, a liberdade de expressão: esse o novo destino do psicótico.
Aqui no Brasil, e – lembremos – ainda na década de 1950, a Dra. Nise da Silveira, ao fundar, no Rio de Janeiro, a Casa das Palmeiras, já intuía o paradigma que seria ditado na Europa pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, com grande repercussão, vinte anos mais tarde.
Ao se recusar definitivamente a adotar procedimentos violentos como o eletrochoque e o coma insulínico, por meio dos quais a integridade do doente era aviltada, dedicou-se à busca de um meio pelo qual o esquizofrênico pudesse se comunicar. Foi assim que iniciou as atividades de expressão em um modestíssimo ateliê de costura e bordado. Em seguida, vieram os de pintura e modelagem. Cartolinas tomavam forma de emoções, telas e papéis se impregnavam dos conteúdos desordenados de psiques dilaceradas. Estava fundado o Serviço de Terapêutica Ocupacional, embrião do Museu de Imagens do Inconsciente, hoje reconhecido em todo o mundo.
Sua luta não foi linear, muito pelo contrário. Sofreu permanente ataque dos que não viam sentido nos rabiscos desconjuntados de doentes mentais ou dos que atribuíam a ela interesse em descobrir talentos novos. Sim, porque embora jamais fossem induzidos a fazer qualquer tipo de desenho, alguns desses “clientes”, como optou por chamar os doentes mentais, transformaram suas vivências internas, muitas vezes aterradoras, em imagens plasticamente belas. Dessa maneira, durante o processo terapêutico de expressão, surgiram verdadeiros artistas, cujas obras seriam reconhecidas pela crítica de arte especializada. Foram os casos de Rafael Domingues, Fernando Diniz, Emígdio de Barros.
Coragem teve ela para transgredir as leis psiquiátricas, recomendando aos estagiários que substituíssem os manuais de psiquiatria pela leitura da obra de Machado de Assis, em que encontrariam a alma humana estudada em espantosa profundidade.
Nunca foi complacente com os psiquiatras que insistiam no uso dos calmantes entorpecentes, para ela verdadeiras camisas-de-força químicas. Desmascarou os tão bem-falados efeitos dos psicotrópicos que, na sua opinião, servem muito mais ao enriquecimento dos laboratórios internacionais do que a um processo de reconstrução da psique. Não usou de meias palavras para responsabilizar os colegas pela falta de respeito ao doente, como ser humano. E pregou, com insistência, que o objetivo do tratamento psiquiátrico não podia mais continuar sendo a transitória remoção de sintomas. Sua proposta continuava clara: reconhecer a complexidade das condições psíquicas que se afastam das ditas normais e proceder à investigação desses “diferentes estados do ser”, como chamou Antonin Artaud ao processo de desintegração da psique.
Em 1988, ao entrar para o Grupo de Estudos C.G. Jung, tive o privilégio de ter sido escolhida para ajuda-la na revisão de seus textos ou fazendo pequenas traduções. Durante o período em que atuei como sua colaboradora vivi num “cativeiro feliz”, expressão que o escritor argentino Alberto Manguel usou na sua deliciosa A história da leitura, referindo-se ao período em que lia em voz alta para Jorge Luis Borges, cego.
Sua lendária bravura intimidava muitos, enfureceu a outros tantos, e sobretudo tornou-a incômoda aos que placidamente aceitaram a imposição dos laboratórios em detrimento da dignidade do doente mental. Por sua luta, tornou-se uma figura épica, nas palavras de Wilson Coutinho. Mesmo assim, seu trabalho no Brasil não tem tido o reconhecimento que merece, e enquanto esperamos que gerações futuras saibam honrá-la mais di qye bós, continua valendo o alerta que, em certa ocasião, fez nosso poeta Manuel Bandeira: “Somos assim: conhecemos e celebramos autores europeus de terceira e quarta ordem; relegamos ao esquecimento os gênios do nosso continente”.
Jovem e ainda senhora do charme que Di Cavalcanti transpôs para a tela quando lhe pintou o retrato, Nise da Silveira morreu no dia 30 de outubro, aos 94 anos, depois de profundo sofrimento que durou quase dois meses, período em que se manteve lúcida e digna como viveu.
*Colaboradora/redatora na ‘Encyclopaedia Britannica do Brasil’ e autora de ‘A trinca do Curvelo: Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Nise da Silveira’, Rio de Janeiro, Topbooks, 1995
Originalmente publicado no Jornal do Brasil, 8 nov. / 1999.