CHELSEA HOTEL (NYC): TOLERÂNCIA INFINITA
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Memórias do Hotel Chelsea: a casa de tolerância infinita
(Arthur Miller - colaboração: Dênis de Moraes)
Decidi me mudar para o Hotel Chelsea em 1960, pela privacidade que me foi prometida. Parecia ser um lugar fantasticamente afastado do burburinho central, quase uma favela, onde seria pouco provável que alguém fosse me procurar. Era pouco depois de Marilyn [Monroe] e eu nos separarmos, e parte da imprensa ainda perseguia meus passos, de vez em quando buscando novas revelações de maneira um tanto quanto desanimada. Uma amiga com a qual, mais tarde, eu iria me casar [Inge Morith] tinha feito fotos para um livro de Mary McCarthy sobre Veneza, e Mary recomendara o Chelsea como sendo um hotel barato, mas decente. Minha amiga, que normalmente vivia em Paris, tinha se hospedado lá durante breves períodos de trabalho na América, e eu achei o lugar surrado e, sem exagero algum, informal. "Ninguém vai incomodar você lá", ela me garantiu.
O proprietário, sr. Bard, me levou até um apartamento recém-redecorado no sexto andar, com vista para o estacionamento situado atrás do hotel (que, desde então, deu lugar a um prédio de apartamentos). O estacionamento é importante.
Eu não sabia exatamente o que pensar de sr. Bard. Judeu húngaro de olhos azuis, baixo e com um rosto redondo e feliz, iluminado e repleto de energia, ele fez com a mão um gesto em direção ao quarto, dizendo: "Tudo é perfeito. Os móveis são todos novos em folha, os colchões são novos, as cortinas... Olhe no banheiro".
Enquanto andávamos em direção ao banheiro, observei um caminho gasto que percorria o centro do tapete e o que parecia ser pó de carvão debaixo de meus sapatos. "O tapete", comecei a dizer, mas ele me interrompeu. "Um tapete novo vai chegar amanhã", falou, com o dedo indicador levantado, e percebia-se que ele não tinha pensado em trocar o tapete até aquele exato momento.
Ele abriu as duas torneiras da pia e apontou com orgulho para a água que jorrava forte. "Torneiras novas em folha, no chuveiro também. Mas tome cuidado no chuveiro, a torneira fria é quente, e a quente é fria. Sr. Katz", ele falou. Voltamos para a sala.
"O que tem o sr. Katz?", indaguei.
"Ele cuida dos encanamentos. Às vezes ele..." Mais uma vez Bard se interrompeu no meio e disse: "Então, o que o senhor me diz?". Antes que eu pudesse responder, prosseguiu: "Garanto que ninguém saberá que o senhor está vivendo aqui. Uma empregada vem todos os dias. Às vezes, quando estou deprimido, vou pescar no reservatório Croton; talvez o senhor queira juntar-se a mim". Era quase possível saber do que o sr. Bard estava falando, mas não por completo. Ele tinha o dom de superar as probabilidades, um fluência emocional que levava seus pensamentos a voar de um tema a outro como mergulhos de andorinha, uma visão progressista e entusiasmada da vida. Em suma, anarquia. "A mobília é toda nova."
"O senhor me disse isso", falei. Na realidade, era uma mobília barata, vinda do sul da fronteira - da Guatemala, talvez, ou da periferia de Queens-, e eu toquei uma escrivaninha com algum receio, mas, felizmente, o verniz já estava seco.
Dentro de uma semana os colunistas de fofocas, como eu mais ou menos previra, já estavam divulgando meu novo endereço, e amigos meus na Europa observaram a mesma notícia importante em alguns jornais europeus e britânicos. "É uma pena", disse o sr. Bard quando falei com ele sobre o assunto. "Fizemos o melhor que pudemos para não mencionar nada. Todo o mundo fez."
"Todo o mundo quem?"
"Todo o mundo a quem dissemos que não deveria mencionar."
"Incluindo os jornais?"
"Incluindo os jornais, o quê?"
"Aos quais você disse para não mencionarem."
Ele achou graça e deu risada. Eu também. Eu já estava entrando no clima. Tinha ouvido um boato de que o sr. Bard tinha ganho o hotel num jogo de cartas com apostas altas que acontecera no hotel New Yorker, que também tinha trocado de mãos algumas vezes em consequência de um jogo(...).
(...) Apesar de quase me escaldar no chuveiro algumas vezes, comecei a gostar do hotel ou pelo menos de alguns de seus hóspedes ou residentes, como alguns deles gostavam de se chamar. Você podia ficar chapado nos elevadores apenas com os resíduos de fumaça de maconha. "Que fumaça?", o sr. Bard indagava, indignado. De vez em quando o poeta Allen Ginsberg tentava vender sua nova revista, "Fuck You", no saguão do hotel, Andy Warhol filmava cenas em um dos apartamentos, e vez por outra uma moça de olhos malucos aparecia no saguão, distribuindo uma resma de maldições mimeografadas jogadas sobre pessoas do sexo masculino e ameaçando atirar num homem num dia qualquer. Tive uma conversa séria - ou que eu achei que fosse séria- com o sr. Bard e seu filho Stanley, que estava pouco a pouco assumindo a direção da casa, mas eles desprezaram a idéia de que ela pudesse realmente fazer alguma coisa arriscada. Como fui saber aos poucos, eles simplesmente não se interessavam por más notícias. É claro que a moça atirou em Warhol, mirando diretamente em suas bolas, dois dias mais tarde, quando ele entrava no saguão vindo da rua 23. Mas, como tudo o mais que acontecia por lá, aquilo perturbou a tranquilidade do dia no Chelsea apenas momentaneamente.
De qualquer maneira, era com certeza muito mais "gemütlich" [acolhedor] do que viver num hotel de verdade. No início dos anos 1960, caminhoneiros ainda se hospedavam em quartos do segundo andar que não tinham banheiros e estacionavam seus imensos veículos na frente do hotel durante a noite. O Automat ainda ficava na esquina da rua 7. Lá eu tomei café muitas vezes com Arthur C. Clarke [escritor de ficção científica], que, à sua maneira seca, lembrando o jeito de um pastor da igreja Unitária, tentava me explicar por que populações novas inteiras dentro em breve estariam vivendo no espaço. Fingindo estar interessado nesse absurdo, eu me perguntava por que alguém iria querer viver no espaço. "Por que Colombo quis atravessar o oceano?" Eu supunha que ele tivesse razão, mas não realmente. Em pouco tempo, europeus começaram a aparecer no Chelsea, na esperança de encontrar sabe-se lá que aventuras no hotel de celebridades e artistas sobre o qual tinham lido, e alguns fugiam tão rapidamente quanto tinham chegado, em pânico bem-educado. Um deles, um empresário alemão, me disse: "É como um certo tipo de hotel que existe em Paris", acrescentando: "Na verdade, a semelhança é até um pouco excessiva". Para muitos, porém, o Chelsea satisfazia suas expectativas: era emocionante saber que Virgil Thomson estava escrevendo suas resenhas musicais antipáticas no último andar e que as telas penduradas no saguão eram de Larry Rivers, sem dúvida a título de aluguel e, ainda, que a garota de faces encovadas no elevador era Viva, que o homem de olhos cansados que a acompanhava era Warhol e que o aroma que você estava sentindo era de maconha. Em certa manhã foi feita a entrega fatídica e espantosa de um novo rolo de tapete. Ele foi deixado temporariamente no saguão, onde os residentes da casa paravam para olhar, espantados, já que era o primeiro objeto novo que muitos deles já tinham visto entrando no Chelsea. Sua chegada sugeria uma possível nova atitude reformista por parte da direção do hotel, que, para alguns de seus residentes, tinha implicações preocupantes. Para começo de conversa, poderia significar que a casa seria arrumada e consertada. Isso com certeza resultaria em aumento dos aluguéis, colocando na rua alguns dos inquilinos.
Mas o novo rolo de tapete foi especialmente inspirador para Mendel Rubin, o "engenheiro" do prédio -um antigo soldado raso da Marinha, grande, bonzinho e judeu, que começou a ousar nutrir a esperança de que alguns dos equipamentos guardados no subsolo e aos quais ele dispensava cuidados constantes também pudessem ser substituídos. De tempos em tempos, entre um e outro encontro com seus queimadores de óleo, Mendel dava as caras para ajudar a dependurar quadros no saguão ou bater papos artísticos, de passagem, com os hóspedes. Ao tomar conhecimento das somas astronômicas que Rivers recebia por seu trabalho, Mendel não viu razão para não começar a rabiscar seus próprios desenhos sobre placas de linóleo avulsas que encontrara no porão e que começou a cobrir com jatos de tinta laranja, verde e preta que sobrara no fundo de latas deixadas lá embaixo. Ele espalhava as placas pelo saguão, e uma visitante da Islândia, creio eu, ou talvez tenha sido da Nova Zelândia, comprou várias delas e pagou a ele em dinheiro. Mendel nunca mais seria o mesmo. Ele começou a passar seu tempo todo com suas placas e até conseguiu fazer uma exposição numa galeria no centro da cidade. Eu nunca soube como nem por que ele desapareceu do hotel, mas, antes de fazê-lo, ele me confidenciou que nutria um ódio profundo e duradouro pelo detetive da casa, que, tinha certeza, não passava de um enganador -o que, como será explicado dentro em pouco, revelou ter uma ligação profunda com o novo rolo de tapete(...).
O Chelsea, nos anos 60, parecia unir dois ambientes: o caos assustador e otimista que antecedeu o futuro hippie e, ao mesmo tempo, a sensação de uma família grande, antiquada, protetora. Esse, pelo menos, era o mito que acalentávamos em nossa cabeça, mas, como todos os mitos, ele não resistia totalmente quando inspecionado de perto. A idéia de família tinha limites. A não ser que você estivesse drogado ou passasse seus dias colocando tinta sobre uma tela, palavras em papel, cinzéis em pedra ou cantando árias de óperas ao piano, era muito difícil conseguir que Stanley prestasse atenção em você.
Fosse o que mais fosse, o Chelsea era uma casa de tolerância infinita. Essa era a genialidade dos Bard, pensei eu: ter conquistado um caos operacional que, ao mesmo tempo, podia ser um lar para pessoas que não eram malucas. Escrevi a maior parte de "After the Fall" [Depois da Queda] ali, e nossa filha tomou seus primeiros banhos na pia da cozinha do hotel. Virgil Thomson oferecia martinis letais a seus convidados ocasionais, e Arthur C. Clarke teimava em traçar o mapa do próximo milênio em seu quarto ao lado. Tragicamente, também havia pessoas que tinham chegado a seu limite, que vagavam pelos corredores ou elevadores de pijama ao meio-dia, uma das quais, segundo seus pares, tinha sido o melhor estilista de moda feminina que a América já vira nascer, Charles James.
Que ele era alguém profundamente problemático era evidente; seu desespero impotente estava escrito em seus olhos. Era um homem de rosto largo, na casa dos 60 anos e ainda bastante forte, eu pensava, e inteligente, mas de vez em quando esquecido a ponto de sair à rua em sua roupa de dormir. Kennedy acabara de ser assassinado quando topamos um com o outro num corredor, e ele segurou minha mão e disse: "Será que isto é o começo do fim?" e me olhou nos olhos, fixamente, como se as balas tivessem passado raspando por ele.
Na realidade, o lugar me lembrava [o Estado de] Nevada no início dos anos 60 - e ainda lembra. Havia um tipo semelhante de deslocamento, de inadaptação, em tantas das pessoas que ou tinham abandonado ou nunca tinham chegado a adentrar os caminhos batidos normais pelos quais flui a maior parte do tráfego humano. O pobre Brendan Behan esteve hospedado lá por dois ou três meses, no momento de sua vida em que parecia divertir-se casualmente com a proximidade da morte, coisa na qual não diferia da tristeza depressiva de Charles Jackson antes de pôr fim a sua vida (em 1963, 24 anos depois de publicar "The Lost Weekend") ou do bravo mergulho de Dylan Thomas em direção a uma catarata particular de álcool que acabaria por agarrá-lo e atirá-lo de encontro às pedras lá embaixo. Mas onde há artistas sempre haverá suicidas. Sempre me pareceu estranho o fato de muitos escritores acharem Nova York tão glamourosa. Para mim, nascido na esquina da rua 112 com a Terceira avenida, a cidade era, com certeza, o lugar mais interessante do mundo, mas não um campo de diamantes reluzindo sob o luar, sendo repleta de meras pessoas, e não de possibilidades infinitas.
Parecia bizarro que tivesse sido ali no Chelsea, dez anos antes, que eu me vira me compadecendo de outro alcoólatra celta autodestrutivo, Dylan Thomas. Tudo o que Brendan podia esperar era trabalhar por um pouco mais de tempo, mas ele já tinha praticamente parado, encharcado. Com Dylan a sequência tinha sido diferente; ele ainda se sentia perseguido, pensava eu, pelo sentimento de culpa por seu próprio sucesso, quando seu amado pai poeta não tinha conseguido nenhum reconhecimento próprio.
Quando Dylan, ainda jovem, redondinho e de faces rosadas, se postou diante do público reverente no auditório de Irving Place, uma mão agarrada ao pódio para se equilibrar, sua voz cadenciada, um verdadeiro instrumento musical, nos conduzindo com segurança extraterrena até seus campos, seus sonhos e as ruas de seus povoados, ouvíamos algo muito antigo e misteriosamente grave. Sua voz ecoava, saída de criptas de pedra e coisas enterradas, e ele me parecia ser um homem escolhido para conduzir um espírito perdido de volta ao mundo, muito mais do que um simples escritor à procura de uma palavra ou um tema. Ouvindo-o, eu soube o que era um bardo, e o fato de não estar morrendo de doença alguma enquanto cantava por moedas e para o prazer de desconhecidos era estranho e terrível. As paredes do Chelsea poderiam nos dizer muito sobre o auto-repúdio de pessoas talentosas.
ARQUIVOS Do Próprio Bol$o
Chelsea Hotel: o ninho de amor e drogas de muitos artistas está à venda