60 ANOS DE UM 'ALMOÇO NU' REGRADO A DROGAS E DELÍRIOS E PAVORES
- Details
- Hits: 1075
Lançado há 60 anos, 'O almoço nu' de William Burroughs ainda fascina e provoca leitores Foto: Arte de André Mello / Agência O Globo
NOS 60 ANOS DE 'ALMOÇO NU', SEGUIMOS A ROTA DO MÍTICO ROMANCE DE BURROUGHS EM TÂNGER
Bolívar Torres / https://oglobo.globo.com/cultura/livros/nos-60-anos-de-almoco-nu-seguimos-rota-do-mitico-romance-de-burroughs-em-tanger-23850975
3 / ago. / 2019 — TÂNGER — O quarto número 9 do El Muniria, um hotel na zona portuária de Tanger, no Marrocos, é uma espécie de templo para os devotos da cultura beat. Foi nesse canto — entre cama, armário e janela com vista para o mar — que William Burroughs (1914-1997) escreveu um dos livros-chave do movimento. Publicado pela primeira em 1959, o Almoço nu permanece um objeto não identificado da literatura: perturbador, paranoico e, para muitos, indecifrável.
Sob o efeito de drogas e inspirado pela atmosfera fora da lei da cidade na época, o escritor americano voltou-se para seus demônios interiores. Em transe, transformou em palavras os labirintos mentais de um dependente químico. Criou países e governos imaginários, numa sátira que junta crítica social, alucinação, tramas detetivescas e perversões sexuais de todo o tipo. Considerada obscena em seu tempo (foi banida dos EUA por dez anos), a obra ainda fascina — e provoca.
No Brasil, foi traduzida em 1984, pela editora Brasiliense, na esteira do sucesso de outro marco beat, o livro On the road, de Jack Kerouac. Teve várias reedições desde então, a mais recente pela Companhia das Letras, com nova tradução de Daniel Pellizzari. Em 1991, virou filme pelas mãos de David Cronenberg, com o título Mistérios e paixões, e Peter Weller no elenco.
— Muitos desses livros que tentam uma experiência inovadora radical envelhecem indecorosamente depois de 20, 30 anos — observa o escritor e editor Eduardo Bueno, responsável por trazer o livro ao Brasil, quando trabalhava na Brasiliense. — Mas o Almoço nu é diferente. Tudo nele é verdade. Burroughs esteve lá, mergulhou naquele lugar do usuário de drogas, e mostrou exatamente como uma pessoa se sente.
Bueno confirmou a impressão ao entrevistar o autor, em 1992. Com sua figura longilínea e taciturna, Burroughs parecia alguém que já havia sobrevivido às experiências mais extremas.
— Nas poucas vezes em que ele levantou os olhos para mim, me borrei de medo — lembra Bueno, que apresenta a entrevista em seu recém-lançado Textos contraculturais, crônicas anacrônicas & outras viagens . — Os olhos dele mostravam o quão fundo ele foi. Eram de outro mundo.
Um quarto do El Muniria, decorado por fotos de Williams Burroughs; o cômodo em que o escritor concebeu Foto: Bolívar Torres / Agência O GLOBO
De acordo com a atual dona do hotel, jovem demais para ter conhecido Burroughs, não são poucos os turistas que chegam ao El Muniria atraídos pelo aura de Almoço nu e de seu autor. O interior do prédio azul e branco é impregnado pela “presença” do escritor. Em retratos pendurados nos corredores e quartos, seu olhar intenso parece observar os hóspedes.
Já faz tempo que o famoso quarto 9 foi transformado em um cômodo privado. Mesmo assim, pode ser visitado dependendo do humor da dona do hotel. Ela lembra de uma jovem turista que se ajoelhou e chorou ao ver o lugar em que seu livro preferido fora escrito. O tipo de reação que a obra de Burroughs provoca até hoje nas novas gerações.
Mas o ex-refúgio de Burroughs não é a única atração no hotel. Um andar abaixo, os quartos 4 e no 6 também fazem parte da memória beat. Ali ficaram, por muito menos tempo, dois outros faróis do movimento: Jack Kerouac, de On the road, e Allen Ginsberg, do icônico poema Uivo, os primeiros a ler os originais de Almoço nu.
Juntos, bebiam até cair no Tangerinn, um bar anexo ao hotel, ainda em atividade, e que todas as noites inferniza o sono dos hóspedes com música alta das 22h à 1h.
Bagunça romanesca
Em 1957, quando Kerouac chegou ao El Muniria, ficou perplexo diante do frenesi com que Burroughs martelava a máquina. “Sou um agente recebendo mensagens de outro planeta”, disse-lhe o escritor, que deixava os capítulos espalhados pelo chão, sem ordem definida.
Mais tarde, com a ajuda de Kerouac e Ginsberg, Burroughs os organizaria utilizando uma técnica de justaposição emprestada dos surrealistas, o cut-up. Cortou, misturou e colou passagens inteiras, dando uma nova forma aos capítulos.
A estrutura incomum seria uma das responsáveis por renovar constantemente o interesse pelo livro, diz o escritor e pesquisador Rodrigo Garcia Lopes, que concluiu uma dissertação sobre Burroughs na Arizona State University:
— Ele permanece relevante por vários motivos:a visão distópica que apresenta, a ruptura com convenções literárias e mistura de gêneros (da história de detetive ao relatório científico), a intertextualidade e o uso dos famosos cut-ups.
Terraço do hotel El Muniria, onde William Burroughs viveu entre 1943 e 1948 Foto: Bolívar Torres / Agência O GLOBO
A bagunça romanesca de Almoço nu deve-se muito à atmosfera de Tânger naquele período. Burroughs costumava dizer que era "um dos raros lugares do mundo" em que "você pode fazer o que quiser". Mas na época em que o escritor esteve por lá, a cidade vivia o status de Zona Internacional, administrada por vários países europeus.
Nesse lugar sem um estado centralizador ou regras burocráticas claras, repleto de párias e fugitivos de vários cantos, o escritor encontrou refúgio em um momento complicado da sua vida pessoal e artística. Ele havia assassinado a própria esposa em uma "brincadeira" macabra de tiro ao alvo, e chegou a passar uma temporada preso nos EUA.
A cidade inspirou a Interzona, um espaço fictício dividido onde todo vício é permitido. Paradoxalmente, também é alvo de partidos políticos. O dos emissionistas tem como bandeira o controle da população através do implante de antenas nos cérebros dos bebês. O dos factualistas, rival, vê neles uma espécie de parasita que se alimenta do pensamento das pessoas.
Por trás da obscenidade e da sátira, Burroughs se preocupava com questões que fazem eco no momento atual, como o vício (em drogas, sexo, dinheiro, poder) e os mecanismos de vigilância de governos autoritários. Uma ilustração tragicômica da decadência da nossa modernidade.
— Pelo embaralhamento entre fato e ficção, sua descrição do controle de mentes e manipulação da “realidade”, o livro é muito atual — diz Rodrigo.
Síndrome de Tânger
Tânger seduzia Burroughs sobretudo por três aspectos: o custo de vida barato, o fácil acesso às drogas e a oferta de prostituição masculina. Na sua cola vieram Kerouac e Ginsberg. Paul Bowles, que nunca se considerou um beat, já estava lá desde 1948, e acolheu a todos. Tânger logo se tornou uma meca da contracultura — e da boemia.
De dia, os autores se arrastavam pelos cafés do bairro do Petit Socco. À noite, drogavam-se, escreviam e pagavam pela companhia de rapazes.
— Os beats se interessavam muito pouco por Tanger, a cidade e seus moradores — diz o escritor francês Simon-Pierre Hamelin, que se mudou para a cidade em 2004. — Viviam voltados para si mesmos, e viam os marroquinos com condescendência. No fim, Burroughs, Kerouac e Ginsberg tinham uma relação bastante colonial com os tangerinos.
Uma rua de Tânger, cidade que atraiu escritores beats nos anos 1950 Foto: Bolívar Torres / Agência O GLOBO
Gerente da Librairie des Colonnes, uma tradicional livraria tangerina, Hamelin vê crescer um turismo beat na cidade. Os viajantes seguem os rastros de Burroughs e companhia numa espécie de "peregrinação", compara. Além do El Muniria, outros pontos caros à memória beat ainda estão em plena atividade, e pouco mudaram desde os anos 1950. É o caso do clássico Café de Paris, com suas poltronas vintages; e o belíssimo Baba, cujas paredes exibem retratos de todas as celebridades que frequentaram o lugar, de Keith Richards a Jim Jarmusch.
É curioso como Tânger é amada por artistas de diferentes épocas, muito além dos beats. Em comum entre todos eles, um gosto pela vanguarda e as experiências à flor da pele. Do poeta Jean Genet ao astro Mick Jagger, passando po Matisse, Tennesse Williams e Samuel Beckett, a cidade atrai principalmente os rebeldes.
— Sobre as obras dos autores que passaram por lá, dá para falar realmente em experimentação de formas novas — diz Hamelin. — Para cada um deles, a experiência funcionou. Encontraram um verbo, uma cor, uma luz peculiar.