50 ANOS DA OBRA 'AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA' E OS 47 ANOS DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS EM PORTUGUAL (2021)
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REFERÊNCIA
50 ANOS DE VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA: “UM LIVRO PARA ENTENDER A VIDA E O MUNDO"
Obra de Eduardo Galeano completa meio século em plena vigência com a realidade dos povos latino-americanos
Michele de Mello
BRASIL DE FATO | CARACAS (VENEZUELA) | 24 DE ABRIL DE 2021 ÀS 12:00
AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA, primeiro sucesso de Eduardo Galeano, completam 50 anos de publicação - Reprodução
ABRIL pode ser considerado um mês de luto, porque a cada dia 13, desde 2015, soma um ano a mais da partida de Eduardo Galeano. O jornalista e escritor uruguaio, autor de 33 livros, faleceu há seis anos, vítima de um câncer de pulmão. No entanto, como Galeano escrevia que a vida é feita de “alentos e desalentos”, ABRIL também é o mês de celebração dos 50 anos da publicação do seu primeiro grande sucesso: AS VEIAS ABERTAS DE AMÉRICA LATINA, que foi “um porto de partida e não de chegada”, dizia o autor.
A obra, traduzida a mais de 20 de idiomas, foi em várias ocasiões um best-seller, vendendo mais de 2 milhões de cópias ao ano, o que dá conta da a ideia da transcendência do autor uruguaio.
Em AS VEIAS ABERTAS, Eduardo Galeano narra a história de exploração desse continente que dessangra suas riquezas desde o SÉCULO 15 até o período atual. Uma investigação jornalística profunda, que une dados históricos com antropologia, mitos, realidades e sabedoria popular, numa narrativa que conduz o leitor a percorrer as realidades mais terrenas às experiências mais sublimes.
“Eduardo rompeu qualquer fronteira de estilo. Uma prosa poética, coloquial, uma profunda pesquisa histórica. A obra do Eduardo é uma obra essencial, não só para entender a América Latina, mas para entender a vida e o mundo”, comenta o escritor brasileiro e tradutor de várias obras de Galeano ao português, Eric Nepomuceno.
Em várias entrevistas, Galeano comentou que AS VEIAS ABERTAS era uma obra despretensiosa, fruto de uma necessidade de mergulhar e entender a história da nossa América.
“Acho que a principal razão da vigência e o impacto do livro esteve na combinação do tema com o estilo. Falou de algo que o público necessitava conhecer em profundidade e fez de uma forma que realmente cativava”, analisa Roberto López Belloso, escritor e jornalista uruguaio.
Partindo das principais riquezas naturais da nossa região – que pela força das potências econômicas estrangeiras se converteram em mercadorias: prata, ouro, petróleo, algodão, café, frutas, açúcar – Galeano mostra como foi imposta a condição de colônia, que deu a base para o capitalismo dependente que se ergueu nos países latino-americanos.
“Aqueles que ganharam só puderam ganhar porque perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota sempre esteve implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus agentes nativos”, pontua já nas primeiras páginas do livro de 1971.
Durante a V CÚPULA DAS AMÉRICA, em 2009, quando se discutia o projeto da ALCA, Hugo Chávez presenteou Barack Obama com uma edição do livro AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA / Semana
Por sua contundência, a edição também marcou momentos históricos. Em 2009, durante a V CÚPULA DAS AMÉRICAS, o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez entregou um exemplar ao então recém-eleito, Barack Obama.
Depois do episódio, o livro voltou a bater um recorde de vendas, embora sua procura seja constante. Belloso comenta que anualmente a obra sempre está entre os volumes mais roubados das livrarias na Argentina.
“É um livro que por uma razão ou por outra, os leitores sentem a necessidade de se encontrar com ele”, relata.
Galeano, que começou sua carreira jornalística no diário esportivo Marcha, também dedicou vários livros ao seu amor pelo futebol / Tiempo Argentino
O AUTOR
No caso de Galeano, autor e obra são um só. O jornalista, que viveu exilado na Argentina e na Espanha durante os anos de ditadura militar no Uruguai (1973 – 1985), nunca deixou de expressar sua convicção de que um mundo mais justo e igualitário era possível.
"Não vale a pena viver para ganhar, vale a pena viver para seguir sua consciência", disse em uma entrevista em 2011, quando já lutava contra o câncer.
Com o fim do regime militar, de volta a Montevideo, abriu junto com Mario Benedetti, a revista Brecha Editorial, para seguir dando voz às causas dos “ninguéns”. Belloso, que foi chefe de redação da publicação enquanto Galeano ainda era membro do conselho editor, comenta que as únicas vezes em que ele interferiu no conteúdo do veículo, foi para sugerir pautas relacionadas a temáticas menos abordadas pela imprensa: a luta dos Povos Saharaui contra as agressões de Marrocos, a demanda de acesso ao mar para a Bolívia ou o caso de Ayotzinapa.
“Ele sempre foi mais um entre nós. Nunca tivemos a sensação de que estávamos falando com uma lenda da literatura latino-americana, com um mito em vida. Sempre teve esse caráter de que ninguém é mais que ninguém. Ele era absolutamente fiel ao que acreditava”, relata.
Benedetti, Galeano e Viglietti fundaram juntos a revista semanal Brecha Editorial para seguir contando histórias dos povos oprimidos da região / Reprodução
Ganhador de vários prêmios, entre eles Casa das Américas, American Book Award, Stig Dagerman, Alba de Letras, medalha de Ouro do Círculo de Belas Artes de Madri, Galeano também foi o primeiro Cidadão Ilustre dos países do Mercosul.
Embora conte histórias difíceis com uma prosa democrática, de fácil compreensão, todo o reconhecimento internacional foi resultado de um trabalho minucioso, de quem “não escreve por encomenda”, como afirmava o autor em uma entrevista ao canal TeleSUR, em MARÇO DE 2011.
“Me dá muita felicidade escrever, é uma alegria na vida, mas também me custa muito. Eu escrevo, reescrevo, risco, jogo fora, até encontrar as palavras que realmente merecem existir”, afirmou.
Tanto com Hugo Chávez, como com Nicolás Maduro, Galeano foi um defensor da Revolução Bolivariana na Venezuela / YVKE Mundial
Nepomuceno que “mais que amigo, foi um irmão” de Galeano, relembra as exigências do mestre nos anos de leitura, café e cigarro compartilhados.
“Cada vez que eu terminava um livro dele, a gente dava um jeito de se encontrar e ficava dias, porque negociava cada palavra. O Eduardo sabia perfeitamente bem o português do Brasil”, conta o escritor brasileiro, que caracteriza Galeano como um homem enérgico, bem-humorado e amoroso.
Com AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA o escritor mostrou que era possível fazer jornalismo e literatura engajados sem cair no estigma do material panfletário. Com sua linguagem “sentipensante” – aquela que é capaz de pensar sentindo e sentir pensando – Galeano preencheu os vazios históricos com palavras que valiam mais que o silêncio.
“Devemos inventar o futuro, não aceitá-lo. Não temos que nos resignar às fatalidades do destino, porque a história pode nascer de novo a cada dia”, dizia Galeano.
Edição: Marina Duarte de Souza
MEMÓRIA
PORTUGAL CELEBRA 47 ANOS DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS, QUE PÔS FIM À DITADURA SALAZARISTA
Levante foi orquestrado por 200 capitães e majores e pôs fim a um dos regimes autoritários mais longos do século 20
TIAGO ANGELO
BRASIL DE FATO | SÃO PAULO (SP) | 25 DE ABRIL DE 2021 ÀS 07:00
Soldados colocaram cravos na ponta dos seus fuzis, durante o levante; a flor, que simbolizava a resistência pacífica, acabou dando nome à revolução - Wikicommons
Grândola, vila morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade
Na madrugada de 25 DE ABRIL DE 1974, à 0h25, a Rádio Renascença, emissora católica portuguesa, transmitiu a canção Grândola, Vila Morena, do compositor José Afonso. A música era o sinal esperado para que jovens militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) dessem início à Revolução dos Cravos, levante que derrubou uma das mais longas ditaduras do SÉCULO 20.
Orquestrado por cerca de 200 capitães e majores, o levante, que completa 47 anos neste domingo (25), pretendia restabelecer a democracia em Portugal, paralisada desde 1933 pelo Estado Novo de António de Oliveira Salazar, que governou o país até 1968, quando passou o poder ao seu herdeiro político, Marcello Caetano.
Antes da revolução, partidos e movimentos políticos eram proibidos, e diversos líderes oposicionistas estavam presos ou exilados. Além disso, a imagem das forças de segurança do país já se encontrava bastante desgastada pela duração do regime salazarista e principalmente pela “guerra no ultramar”, que reprimia os movimentos de libertação das colônias que Portugal ainda mantinha na África.
A ideia de organizar o levante partiu dos oficiais Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço, quando o MFA ainda era um movimento recém criado. A história foi relatada por Lourenço em uma entrevista concedida à Agência EFE.
“Quando retornávamos de uma de nossas primeiras reuniões, tivemos um pneu furado e o trocamos. Eram duas da madrugada, mais ou menos, quando disse a Otelo que não íamos solucionar nada com requerimentos e papéis, que devíamos dar um golpe de Estado e convocar eleições. Ele me olhou e disse: ‘Mas você também pensa assim? Esse é meu sonho!’”, contou.
A criação do grupo, curiosamente, foi autorizada oficialmente pelo Estado português. O pretexto para a fundação: “recuperar o prestígio” do Exército.
Segundo Lourenço: “Não dissemos abertamente que íamos conspirar contra o governo e dar um golpe de Estado, embora no fundo o propósito era derrubar o fascismo e a ditadura”. Além de Lourenço e Otelo, outro militar que teve grande papel na organização da Revolução dos Cravos foi o tenente-coronel Vítor Alves.
O levante ocorreu de modo relâmpago. Após a canção de José Afonso entoar no rádio, o MFA ocupou locais estratégicos em todo o país em poucas horas. Ao nascer do dia, uma multidão de aproximadamente 1 milhão de pessoas já cercavam emissoras de rádio à espera de notícias.
A operação pegou Marcello Caetano totalmente de surpresa. Acuado, ele renunciou ao cargo por telefone e se exilou no Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte, em OUTUBRO DE 1980.
Ao saber que os militares pretendiam restabelecer a democracia e pôr fim à guerra colonial, os portugueses começaram a dar cravos aos soldados, que os colocavam na ponta dos seus fuzis, o que dá nome à revolução.
Por ter acontecido sem derramamento de sangue, o levante teve grande adesão popular.
O processo passou, no entanto, por momentos de tensão a partir de maio de 1975, no período conhecido como Verão Quente. A efervescência política, protagonizada em grande parte pelos setores de esquerda, levou a direita e a Igreja Católica a temer uma radicalização do processo político iniciado após a revolução.
Para impedir o fortalecimento das alas mais radicais de esquerda, as facções conservadoras organizaram uma série de ataques contra sedes de partidos políticos. Esses setores de direita também se opunham às expropriações e ocupações de terras promovidas no sul do país e se preocupavam em especial com o ponto 6 do programa adotado pelo MFA durante o período de transição.
A cláusula apontava para uma reorganização econômica e social de tipo socialista.
NOVOS TEMPOS EM PORTUGAL
A promessa de democracia foi cumprida: em 25 DE ABRIL DE 1975, aniversário de um ano da revolução, ocorreram as primeiras eleições diretas em 41 anos. Os socialistas venceram. Um ano depois, também no dia 25, entrou em vigor a nova Constituição do país.
A abertura democrática possibilitada pela Revolução dos Cravos foi significativa para a garantia de direitos civis e políticos. Mas não apenas isso: a Constituição do país assegurou direito à habitação, à previdência social, à saúde, à cultura, à educação, entre outros. Foi também o início de um largo processo de nacionalizações e do fim da guerra colonial.
Na sequência da revolução, foi instituído em Portugal um feriado nacional no dia 25 DE ABRIL, denominado DIA DA LIBERDADE.
INDEPENDÊNCIA DAS COLÔNIAS
A partir da DÉCADA DE 1960, diversos movimentos por independência começaram a surgir nas colônias de Portugal na África. As organizações passaram a ser duramente reprimidas pelas Forças Armadas portuguesas, sobretudo em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.
Durante o período, quase metade do orçamento de Portugal passou a ser destinado ao setor militar e eram raras as famílias que não possuíam parentes enviados às guerras coloniais.
Segundo dados da Agência Lusa, as Forças Armadas contabilizavam 243.795 soldados em 1974. Cerca de 117 mil foram combatentes nos conflitos. O saldo final foi de 8.831 mortos e cerca de 100 mil portugueses feridos.
A duração da guerra ultramar, o número de feridos e o despendimento de gastos necessários foram fundamentais para gerar insatisfação nas camadas populares e nos setores das Forças Armadas que se opunham às ações militares.
Imediatamente após a Revolução dos Cravos, as nações que ainda eram colônias portuguesas passaram a conquistar sua independência: a de Guiné-Bissau foi reconhecida por Portugal poucos meses depois do levante, em setembro de 1974; a de Moçambique, em JUNHO DE 1975; Angola conquistou independência em novembro de 1975.
Após os 40 primeiros anos de democracia, o número de militares em Portugal diminuiu 85%. Desde 2019, eles são menos de 35 mil.
ENTRADA NA UE E INÍCIO DA DÍVIDA PÚBLICA
A Revolução dos Cravos também possibilitou, anos mais tarde, o ingresso de Portugal na União Europeia (UE), rompendo com o isolamento que caracterizou a ditadura salazarista. A entrada no bloco ajudaria a modernizar o país por meio de uma transferência no valor de 80 bilhões de euros entre 1986 e 2011. A quantia é o equivalente a 9 MILHÕES DE EUROS POR DIA.
As exigências econômicas e fiscais da UE também tiveram custo alto. O país passou por uma grave crise econômica a partir de 2009, acentuada com a adoção de medidas de austeridade em 2011.
De 2018 para cá, Portugal passou a dar os primeiros sinais de recuperação, apresentando crescimento no PIB e diminuição nas taxas de desemprego.
Em JANEIRO DESTE ANO, a reeleição do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, do Partido Social Democrata (PSD), embora fosse previsível, reflete mudanças significativas na correlação de forças em Portugal.
A pandemia contribuiu para uma abstenção de 60% na eleição e vem escancarando as diferenças de projeto entre a esquerda, que pede mais investimento público, e o atual governo, que segue a cartilha da austeridade.
O crescimento da extrema direita, que alcançou o terceiro lugar, e a não apresentação de um candidato próprio pelo Partido Socialista (PS) confirmaram o reposicionamento de peças importantes no tabuleiro político do país. Entenda as disputas na atual conjuntura portuguesa.
* Adaptação de texto publicado originalmente no Brasil de Fato em 25 DE ABRIL DE 2019.
Edição: Aline Carrijo