Todo Menino É Um Rei
- Details
- Hits: 2324
TODO MENINO É UM REI
Paulão de Varadero
A minha vida começou assim, meu irmão
Como uma folha, um papel em branco
Eu a fui tingindo, pelo caminho, por aí
“O adulto está no menino”
Desde menino eu pintei e bordei o sete,
Na Super-Quadra- Sul -207
Onde fui morar aos quatro
Morei desde menino entre redemoinhos
Em meio à poeira vermelha da epopeia
Verdadeira conquista do oeste, do sertão sem fim
A minha vida de criança se passou assim, bem feliz
Em cima de uma bicicleta, Monark 61, contra-pedal
Presente de meu avô camponês, do Vovô Joaquim
E meu pai, Seu Guedes, foi na loja comprar pra mim
Na “Internacional”, na esquina da comercial da 207
Loja da Dona Terezinha, mulher bonita e charmosa
Que tinha uma filha linda, como Milene Demongeau
Atriz que eu vi no álbum de figurinhas, “Cine-cromo”
Desde menino, a beleza feminina me impressionou
Deus caprichou quando fez Eva da costela de Adão
Como Michelângelo Buonaroti esculpiu o seu Davi
Meteu-lhe o martelo no joelho e disse: "Parla!"
Mas vou encurtar essa história, muito comprida
Que, de início, pensei que fosse dar num poema
Mas tornou-se cansativa, uma história tão comum
Como a infância de todo menino, de qualquer um
Era uma vez um menino, no meio de redemoinhos
Em Brasília, a Capital da Esperança, do Brasil, de JK
“Desperta o gigante brasileiro...”
Eu estava nessa aventura da “Marcha para o Oeste”
Fui muito com meu pai, num Jeep, à Cidade Livre
A Nova Capital já era sonho dos “Inconfidentes”
E eu estou fazendo essas confidências de amor
“No velho oeste ele nasceu e entre bravos se criou
Seu nome lenda se tornou: Bat Masterson, Bat Masterson”...
Carlos Miranda, o célebre “Vigilante Rodoviário”
Não era meu parente: sou Cardoso de Miranda
Mas era nosso herói, com seu Sinca Chambord
No seriado semanal da TV, em preto e branco
Eu morava no acampamento do IPASE, na 207
Cavaleiro e senhor de bicicleta aro 26 e árvores
De pilhas colossais de tijolos, areia, cimento
Carrinhos de mão, betoneiras, almoxarifado
Casinha e passagem de madeira nas mangueiras
Pés descalços ou chinelos, calças curtas e poeira
Sou candango, sou pioneiro da poeira vermelha
Do mato cerrado, do Planalto Central Brasileiro
Filho de paraibanos, nascido no Rio de Janeiro
Mamãe enterrou meu umbigo na Guanabara
Minha mãe, Dona Adize, era doce, terna, carinhosa
Deus a levou tão depressa, aos 95 anos de idade
Deus é mãe! Quem sabe, tão bom quanto ela era!
O meu irmão, Carlos Alberto, é 2 anos mais velho
Do que eu, que sou caçula, menos levado da breca
Eu era mais contemplativo, via carneiros nas nuvens
Em cima da bicicleta ou das imensas pilhas de tijolos
Meu irmão furou muito o pé com prego enferrujado
Eu o via sofrer, tomar pontos e vacina antitetânica
Sofreu muito, ficou mais calmo e gordo, hoje em dia
Crescemos felizes, juntos com a cidade de Brasília
Nossos saudosos pais já foram pro andar de cima
Deus os levou para outra aventura, outra epopéia
Num outro acampamento, quem sabe, sem poeira
Mas tomara que lá, tenha aquela mesma cantina
Cantina do IPASE, onde fizemos tantas refeições
Com sobremesas deliciosas, arroz doce, goiabada
Comida gostosa, com muita fartura e fraternidade
Cantina onírica onde ganhei um “Sonho de Valsa”
Onde brinquei nosso primeiro baile de carnaval
E aprendi a fazer pó-de-mico, com sal, pimenta
Do reino, é claro, e serragem, (pó de madeira)
Para jogar no pescoço e nas costas dos meninos
Junto com confete, serpentina e lança-perfume
Perfume que se espalhava pelo salão qual poesia
Todo menino é um rei, feliz! Mas eu não sabia...
Uma
protagonista de um filme de Almodóvar, em que um dos atores é Antonio Banderas,
contracena com ela, em um momento da história diz, "as minhas recordações
são tudo que me resta , hoje em dia"... Pressuponho que ela se
referisse as boas recordações, mas até as más recordações fazem parte do nosso
patrimônio, do nosso acervo emocional e espiritual. Como jornalista, uma
espécie de historiador, sempre cultivei a memória, e tive a felicidade de
testemunhar um tempo muito cheio de esperança, de utopias , em minha infância,
mesmo tendo sido contemporâneo do golpe militar de 64. Posso dizer, como o
índio que testemunha I Juca Pirama travar uma luta feroz contra outros índios
que o capturaram e a seu pai: "Meninos, eu vi!" Eu era menino, e vi.
O poema que te mandei saiu com algumas incorreções, por causa do meu
açodamento. Peço que corrijas, no original: troquei a grafia de comprida, com o
"O" por cumprida, quando me referi a minha história comprida, longa.
E inverti , num verso, a ordem natural das coisas quando lembrei a escultura
renascentista de Michelângelo: "Como Michelângelo Buonaroti
esculpiu o seu Davi, Meteu-lhe o martelo no joelho e disse:'Parla!'", e
não o contrário como está no verso. Não poderia deixar de fazer esses reparos. (Paulão)