Torquato Pereira de Araújo Neto
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Torquato Pereira de Araújo Neto
(Compilado por Mário Pacheco)
“É preciso acabar de vez com o clichê de que Torquato Neto era um maníaco depressivo, ignorando-se a obra do compositor e, pior ainda, escamoteando dados sobre a sua pessoa. Por exemplo: ignora-se a militância de quem foi o primeiro a contestar sem medo e incomoda até hoje. Ele teve a coragem até de brigar com as esquerdas, com o pessoal do cinema novo. Ele não era um homem de rebanho, ele só era fiel com a revolução. Lutou pela imprensa underground contra a caretice do “Pasquim”. É preciso resgatar a dignidade humana, contra todo o reacionarismo que só lhe viu como um poeta-suicida. Todo ser inteligente pensa na morte. “Louvação” é um hino à vida. A visão trágica que alguns poetas têm sobre Torquato Neto é perigosa porque pode esvaziar o conteúdo da sua obra. Fomos internados no mesmo hospício - o Engenho de Dentro - e tenho certeza de que eram poucos os que o compreendiam. Para mim, concluindo, Torquato Neto era o nosso Maiakovski. Morreu assim que deu o seu recado, aos 28 anos, quando encheu o saco. Não ficou aqui para pedir emprego a ninguém”. (Rogério Duarte)
Publicado em “FOGO CERRADO”, “Torquato Neto - Edição Especial”, nov. / 1992.
Anotações de Engenho de Dentro
o dr. oswaldo não pode fugir nem fingir; mas isso eu comecei a ver, de fato, logo mais quando teremos nossa primeira entrevista. o anonimato me assegura uma segurança incrível; já não preciso mais (pelo menos enquanto estiver aqui) liquidar meu nome e formar nova reputação como vinha fazendo sistematicamente como parte do processo autodestrutivo em que embarquei - e do qual, certamente, jamais me safarei por completo. mas sobre isso, prefiro dar mais tempo ao tempo: eu sou obrigado a acreditar no meu destino (isso é outra conversa que só Rogério entenderia). Tem um livro chamado: o hospício é deus. Eu queria ler esse livro. Foi escrito, penso, neste mesmo sanatório. Vou pedir a alguém para me conseguir o livro.
17 set. / 1971
Olhei meu corpo e me compreendi, mas não gostei de mim. tem aquele papo muito antigo (não sei se é de Sartre): todo mundo é responsável pela cara que ostenta, a que tem, pela cara que tem. seu eu me odeio e se eu me amo, se eu tenho medo de mim ou do mundo, isso é a minha vida: a minha beleza ou a minha feiúra. E eu me quero lindo e malandro. E não quero que minha beleza seja a minha máscara (sem aspas). quero esse papo correto, acertado. quero essa marca malandra de vida: vejo a minha cara e vejo o meu coração. os outros, não, até que aprendam a me ver. você olha nos meus olhos e não vê nada: pois é assim mesmo que eu quero ser olhado. é assim mesmo que eu quero que você não entenda. pensei - meu corpo sou eu atravessando os andes comigo. contigo. onde estou me represento mas não me aparento com o que não sou, sendo também. caetano no filme de mautner, ilustrando: ele não sabe que eu também sou um demônio. o filme é uma droga, caetano é uma superstar maravilhosa e está fantástico onde põe a mão, e gil por outro lado meu corpo é o meu ideal, é o que eu quero fazer de mim, é o que está à solta vibrando, meu cheiro, minha consciência, meu amor por quem eu amo, minha presente presença no mundo estampada na cara, escondida, estampada na cara que eu sinto, estilo de luta: de vida e de morte, da vida. E eu me viro ao teu lado, te acordo, te beijo, te amo, ana.
12 nov.
anoto que saí hoje do hospital, todo esse tempo depois. é tudo como é: aqui estar, de volta em volta como sempre, mais uma vez. Não sei direito, hoje, o que pode surgir disso tudo. sei o que isso significa e quanto pesa a mais para a adição (paralela à contagem regressiva?) do chamado acúmulo de experiências. acontece que não se vive intensamente sem punição; não se experimenta o perigo sem algo mais do que o simples risco, nem se morre por isso de repente. não estou, portanto, em condições de explicar nada. por isso, certamente, todo esse tempo sem anotar nada. é preciso descobrir porquê tudo. organizar então e deslocar a minha experiência, as minhas experiências, numa direção xis, para. como todo dia é dia D, e disso estou certo. concluo com este “cinismo” lógico: daqui pra frente, podem crer, posso crer, tudo vai ser diferente. torquato rides again! upa, upa!
13 nov.
a literatura, o labirinto perquiridor da linguagem escrita, o contratempo, a literatura é a irmã siamesa do indivíduo. a idade das massas, evidentemente, não comporta mais a literatura como uma coisa viva e por isso em nossos dias ela estrebucha e vai morrer. a literatura tem a ver com a moral individual e amoral individual não interessa - não existe mais. nossa época exige a descrição de painéis e o close-up tende a não interessar nem como psicologia. não precisaremos de retornar ao teatro de máscaras porque, se queira ou não se queira, a massa onde praticamente nos perdemos já é a máscara, já nos abriga e revela, é a supra máscara. planos gerais. painéis. o homem moderno não existe como indivíduo, mas como tipo - e esses tipos não são tantos quanto todos nós. são relativamente poucos. somente me interesso pelo tipo e cada tipo, classe, nas diversas sociedades massificadas, obedece a comportamentos mais ou menos standards. Interesso-me por compreendê-los (estudá-los) e abandoná-los. meu problema inclusive o de cama, inclusive o de mesa, inclusive o de relacionamento, é o problema do meu tipo x perdido na massa que o plano geral não estilhaça, por literário, em todos os seus (milhares, bilhares) de “exemplos”: células que não têm mais vida se isoladas na psicologia do indivíduo. O cenário é agora o único personagem vivo. O cinema urbano tem que ser do-eu-meu-tal, atualizado como as atualidades, uma primeira página de jornal, painel, afresco.
9 dez.
tudo continua, continua parado no centro de minhas especulações, e não sei dizer se já consegui me desfazer de qualquer uma delas. estou morrendo. mais uma vez eu morro soterrado em minhas perplexidades - não sei para o quê estou - e deixo andar. é preciso que eu adquira condições que me permitam sobreviver. o que é sobreviver? tenho conseguido sobreviver até aqui, mas... o que vivo, o que consigo escrever, o que posso ir sendo são meus bens. não disponho de outros. o que não sou me mata: assim, assado, sempre: tudo continua como sempre, o mesmo esquema para o fim, a mesma vida de cocô melado, a mesma merda. só deus pode me salvar, mas eu não conheço deus nem sei onde procura-lo. disse que estou morrendo - uma vez mais - vivo só pra isso.
pode ser, eu tenho que “assumir” isto que eu vejo. a minha frente. eu não posso mais. a literatura se enterra comigo. eu estou aqui no brasil. alô. câmbio?
estou inteiramente sozinho. ninguém pensa por mim. o general ninguém pensa por mim. eu não valho nada. não sei onde reencontrar minha coragem. é um longo discurso. é uma loucura. eu pensei que podia driblar tudo e ir fazer cinema, uns filmes, lixo.
eu tenho que assumir a minha miséria pequeno burguesa porque eu só posso fazer um filme se ele for a favor ou contra essa miséria. e eu não posso ser e não ser como querem os analistas. eu tenho que destruir em mim essa miséria louca.
no dia hoje eu acordei e vi que estava claro. eu tentei descobrir que dia era hoje e por isso reconstituí rapidamente o que pude. não pintou nenhuma grande transa, que eu me lembrasse, mas havia uma carta que eu queria reler, e era domingo mesmo. daí pra isso: o jornal. eu me levantei e olhei pelas frestas da janela, estava chovendo, pensei nas horas e achei que devia ser umas cinco. é uma droga, porque eu tenho que ir pro trabalho. eu me levantei, fui na geladeira, tirei do congelador duas garrafas de cerveja que havia deixado lá, e me lembrava, bebi água, não havia leite, lembrei-me que possivelmente não tivesse um tostão comigo e que não iria poder sequer ir ao jornal, achei tudo uma grande merda, reli a carta para almir e não achei nada, fui ao banheiro, descobri que estava com qualquer coisa no bolso, fiz e fumei. achei cinco contos no bolso da calça que usei anteontem. eu me lembrava muito vagamente que talvez houvesse um dinheiro que lena me deu, ou uns pedaços deles. hélio rocha pagou o tempo todo e eu me lembro que não havia conseguido gastar do algum que tinha. tinha? ainda estão comigo. então eu me lembrei que iria ver os filmes de ivan na casa de lygia clark. não é domingo? onde está ana? era a última coisa para querer pensar agora. eu sinto falta, sempre sentirei, um grande maor não morre nunca mais, não é assim? mudei a camisa e botei água no vaso. tudo muito chato demais, meu deus. eles confundem tudo e se fodem, mas eu reli a carta e vi que não havia jeito de explicar a almir. era impossível falar “claro” e não havia jeito de você explicar ao médico que maluco é ele. o cara vai ficar eternamente convencido do contrário, até que funda a cuca e mergulhe e compreenda. desci na rua, indo para o jornal. parei na porta. chovendo uma chuva fina muito firme, não encontrei o dinheiro no bolso. havia uma combi estacionada do outro lado. com três homens que ficaram olhando para mim. pensei com meus botões e voltei atrás do dinheiro. Aqui dentro eu vi que estava no bolso mesmo, junto com o sonrisal e o sal de fruta, no meio dos dois. desci com minha bolsa e olhei novamente os homens. pensei: o inimigo é o medo no poder, força. ainda fiquei pensando nisso um pouco, mas da esquina desliguei. eu queria pegar logo um táxi, mas precisava antes saber que horas eram aquelas, a chuva chatíssima enchia meu saco, eu pensava na noite de ontem e quando um táxi corcel azul parou, quase na esquina de conde de bonfim, eu disse: tenho de perguntar as horas. vinha um cidadão aleijado torto sifilítico e eu perguntei: 7,25h. me deu uma vontade de chorar mas eu não posso é ficar com pena de mim e vim embora de volta. está ficando inteiramente insuportável eu não posso perder a cabeça. só se mata o inimigo. eu não devo ser o meu inimigo, podes crer. quando você me ouvir cantar, são coisas do passado, mas também sei chorar. não sei porque me canso tanto na manhã de hoje: nem sol está pintando, merda. que noite é está? que fogo eu perco? eu quero viver sem grilos e ultimamente eu tenho visto muito pouca gente, porque a maioria não há quem agüente. me lembro: o poeta é a mãe das armas & das artes em geral. Alô poetas, poesia do país do carnaval, aqui agora. não dá pé de sair morrendo só assim. é entregação. tenho que dormir e levantar, todos os dias. um dia depois do outro, numa casa abandonada e tal. não estou aqui pra me entregar. a morte não é vingança, não é a minha namorada nem nada, nem me ama. nem eu quero amor com ela, livrai-me deus. basta olhar o desfile dos mortos pela rua, não há nada mais vergonhoso do que a morte dos estúpidos. que dia é hoje? que hora é essa? e essa história?