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A REBELIÃO ROMÂNTICA DA JOVEM GUARDA Escrito por Rui Martins Publicado pela Editora Fulgor em 1966 CAPÍTULO II OS ADULTOS E SUA INTEGRAÇÃO NO MUNDO JUVENIL a) Causas e disponibilidade de liderança Até aqui se procurou dar uma visão do significado das rebeliões juvenis dentro da sociedade, demonstrando-se que, à simples e natural oposição aos padrões estabelecidos pelo mundo dos adultos podem juntar-se outros fatores circunstanciais. O surgimento dos grandes aglomerados urbanos veio agravar, de certa forma, o choque de gerações, permitindo à juventude novas maneiras de hostilizar os costumes e convenções defendidos pela sociedade. A conquista de uma certa independência, permitiu aos jovens a tomada de posições e a participação em movimentos de protesto com objetivos bastante definidos. Este, porém, não é o caso do «ié-ié-ié« nacional que, destituído de qualquer agressividade ou objetivo é considerado uma autêntica rebelião romântica, sem maiores conseqüências. Sabendo-se, contudo, que a nova manifestação musical atinge, no Brasil, também adultos e crianças, surge a necessidade de encontrar-se as determinantes dessa aceitação. Como todo fenômeno social, esse comportamento não deve ser provocado pela ocorrência· de uma única circunstância causal, mas ser o resultado de todo um complexo no qual se interligam anseios, expectativas, frustrações e tendências diante de Jatos consumados. Apontar as causas responsáveis, torna-se, por isso, uma atitude temerária, mormente quando não se pode recorrer a dados concretos fornecidos por pesquisas. Serão, portanto, discutidas as causas prováveis do fenômeno, podendo todas elas serem válidas e terem, ao mesmo tempo, contribuído para sua ocorrência. Inicialmente, a adesão maciça em torno do jovem cantor parece indicar a existência, no País, de uma disponibilidade de liderança, da qual resulta um vazio que conduz todos a atitudes irracionais. Apesar dos esforços despendidos, os atuais governantes não conseguiram atrair para si o entusiasmo popular. São públicas as declarações do chefe do governo de que sua administração tem aspectos impopulares, sabendo-se que suas medidas de ordem econômica provocam, geralmente, desagrado geral. Conduzido ao poder na crista de um movimento vitorioso, o atual presidente não possuía um anterior lastro de popularidade que o levasse ao exercício de uma liderança consentida. Recebido com satisfação por uns e com indiferença ou hostilidade por outros, não conseguiu se transformar, nestes dois anos, naquele líder que o povo se acostumara a ter. Esse costume criou-se na longa ditadura de Getúlio, cujo paternalismo satisfazia as necessidades de liderança do povo, enquanto impedia a formação de outros chefes políticos. A queda do Estado Novo encontrou o País numa crise de líderes, pelo que o povo, nas primeiras eleições, recolocou no poder aqueles que satisfaziam sua necessidade de tutela. O povo revelava, nessa atitude, uma tendência para formas de governo autoritário, como resultado do longo aprendizado. Porém, o exercício da democracia foi, lentamente, corrigindo essa tendência, embora continuassem a existir poucos líderes. Acreditava-se, então, numa gradual libertação popular da necessidade dos líderes carismáticos e no aparecimento de maior número de políticos capazes de exercer liderança. Entretanto, após os episódios de 1964, seguiu-se um gradativo esvaziamento dos poucos líderes populares, não só os de esquerda como seria inevitável, como também os de direita e centro. Paulatinamente, Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Carvalho Pinto e Adhemar de Barros foram sendo postos de lado pelo novo esquema, participando, de certa forma, do mesmo ostracismo de Juscelino, Jânio e outros, cujos direitos políticos haviam sido cassados, de imediato. Em contrapartida, não se ofereceu ao povo nenhuma figura popular de projeção nacional, o que determinou a atual disponibilidade de liderança. A subseqüente reforma eleitoral, instituindo o voto indireto para a escolha dos ocupantes dos cargos majoritários, teve efeitos semelhantes aos dos esvaziamentos, ressentindo-se o povo de ter sido posto à margem na escolha de seus governantes. Disso, proveio um indisfarçável desinteresse pelas coisas políticas. Esse vazio, contudo, precisava ser preenchido. Havia necessidade de acreditar-se em alguém ou em alguma coisa. Surgiram, nesse momento, diversos agentes catalisadores destacando-se, entre eles, pela !lua importância a passada voga das telenovelas. Considerando-se, superficialmente o problema, não se compreende como telenovelas de pouco conteúdo humano e mínima expressão artística puderam ser tão aceitas a ponto de mudar hábitos familiares. esse comportamento irracional foi, entretanto, a exteriorização da necessidade do preenchimento de um vazio geral. A identificação com os heróis e situações da trama propiciou, além disso, uma reconfortante fuga às inquietações. No caso do «ié-ié-ié», o cantor Roberto Carlos preencheu a disponibilidade existente, embora comandando um simples movimento musical. Sua inconseqüência veio ao encontro do desinteresse reinante, enquanto sua música permitiu «mandar tudo pro inferno».
b) Aparecimento da consciência de massa Pela segunda hipótese, o fenômeno Roberto Carlos seria a manifestação de um estado particular de consciência coletiva nos meios urbanos. Esta explicação não subestima a importância do tipo físico do cantor, da música, da televisão e dos interesses econômicos a ela ligados, porém, ajunta a estes fatores a influência decisiva da existência de uma sociedade de massas no País. Assim, idêntica à manifestação dessa situação no plano político, caracterizada no chamado populismo, estaria ocorrendo outra, agora, no plano da arte popular, confirmando estar concluída a formação de uma consciência de massa no Brasil. Essa consciência de massa é capaz de reagir e se movimentar em termos de valores e estímulos os mais elementares. O exemplo típico seria o movimento populista de Jânio, cujo símbolo era uma vassoura, perfeitamente compreendida como instrumento de limpeza, num instante em que uma parcela da massa desejava um moralista enérgico. No populismo, o único vínculo consciente que existe para a massa é a imagem do líder que transcende os conteúdos ideológicos da relação. A pessoa do chefe torna-se a representação de um senhor poderoso ao qual seus seguidores se submetem. No caso de Jânio, era mais importante sua representação de homem duro, moralista enérgico, reservado e quase inacessível, do que sua posição diante dos problemas sociais ou políticos. Portanto, a predisposição de uma consciência de massa é para a aceitação de líderes carismáticos, forma irracional de liderança política. Aliás, o sociólogo Karl Mannheim, na sua obra O Homem e a Sociedade, ao se referir à possibilidade da verificação das origens dos elementos racionais e irracionais na sociedade moderna, coloca a questão nos seguintes termos: «A sociedade moderna, que no curso da industrialização racionaliza um número cada vez maior de pessoas e de esfera da vida humana, reúne grande massa de gente em enormes centros urbanos. Sabemos agora, graças a uma psicologia absorvida pelos problemas sociais, que a vida entre as massas de uma grande cidade tende a tornar as pessoas muito mais passíveis de sugestões, explosões incontroladas de impulsos e regressões psíquicas do que as pessoas organicamente integradas e firmadas em tipos de grupos menores. Assim, a sociedade de massa industrializada tende a produzir um comportamento muito contraditório, não só na sociedade, mas também na vida pessoal do indivíduo». «Como sociedade industrial em grande escala, cria toda uma série de atos que são racionalmente calculáveis no mais alto grau e que dependem de toda uma série de repressões e renúncias de satisfações impulsivas. Como sociedade de massas, por outro lado, produz todas às irracionalidades e explosões emocionais características das aglomerações humanas amorfas. Como sociedade industrial, aperfeiçoa o mecanismo social de modo que a menor perturbação irracional pode ter os efeitos mais remotos, e como sociedade de massa, favorece um grande número de impulsos irracionais e de sugestões, provocando uma acumulação de energias psíquicas não sublimadas que, a todo o momento, ameaçam esmagar a sutil maquinaria da vida social». Mais adiante, Mannheim acentua que «o irracional nem sempre é prejudicial, mas que, pelo contrário está entre as forças mais valiosas do homem, quando age como força motriz no sentido de finalidades racionais e objetivas, quando cria valores culturais pela sublimação ou quando, como puro impulso, intensifica a alegria de viver sem romper a ordem social com a falta de planejamento. De fato, mesmo uma sociedade de massas corretamente organizada leva em conta todas essas possibilidades de condicionamento de impulsos. Deve, realmente, criar uma saída para um desabafo de impulsos, já que a objetividade da vida quotidiana, provocada pela racionalização generalizada, representa uma repressão constante de impulsos. É sob esse ângulo que a função do «esporte» e das «comemorações» na sociedade de massas, bem como dos objetivos culturais mais gerais da sociedade devem ser entendidos». Entretanto, o sociólogo lembra a possibilidade de surgir um perigo específico da irracionalidade e explica: «numa sociedade em que as massas tendem a dominar, as irracionalidades que não tiverem sido integradas na estrutura social podem abrir caminho na vida política. Esta situação é perigosa porque o aparato seletivo da democracia de massas abre as portas para as irracionalidades precisamente nos pontos onde a direção racional é indispensável. Assim, a própria democracia produz sua antítese e proporciona armas aos seus inimigos». Logo, a formação de uma consciência de massas teria possibilidade de, repentinamente, evoluir para um estado em que se lançam os pré-requisitos de uma ordem política de tipo autoritário, baseada no irracional com seus mitos e símbolos. De acordo com esta hipótese, o movimento Roberto Carlos poderia, então, revelar uma disponibilidade do povo para a aceitação das palavras de ordem de índole autoritária.
c) Influência dos meios mecânicos de comunicação Outro fator determinante do prestígio desmedido de Roberto Carlos parece estar diretamente ligado aos meios mecânicos de comunicação, no caso a televisão, capaz de levar a todos os lares imagens de pessoas que agem como seres presentes. Deve-se assinalar que esses meios de comunicação despertam um certo fascínio sobre as pessoas, justamente pelo fato de serem mecânicos e terem, por isso, alguma coisa de extraordinário. A televisão como meio mais miraculoso e mais difundido torna-se, então, uma técnica capaz de criar padrões para a sociedade. Embora passível de crítica, qualquer coisa que apareça na televisão passa a ser considerada como possuidora de um mínimo de aceitabilidade e um certo grau de importância. Daí, sua influência sobre as nossas populações urbanas, onde praticamente todos os lares possuem e assistem, religiosamente, programas de televisão. Dessa forma, a televisão pode repetir, em escala muito maior, a formação de imagens e ídolos, como ocorreu com o cinema e o rádio. Foi o cinema mudo que permitiu o aparecimento do mito Rodolfo Valentino e o cinema falado, Frank Sinatra. No rádio brasileiro, surgiu Orlando Silva, figura que provocava grandes manifestações entre o elemento feminino. A televisão tem ainda a força de integrar no universo familiar aqueles que projeta no seu vídeo. As pessoas aceitam e incluem entre seus heróis os tipos que, por um processo de seleção, vão considerando ideais. Esses heróis tornam-se pouco a pouco quase reais, pois podem ser vistos e ouvidos dentro dos próprios lares. Cria-se assim a necessidade do encontro periódico entre o espectador e o seu herói. Naturalmente, a televisão não pode ser encarada como uma simples criadora de figuras de compensação para todos os espectadores. Haverá sempre aqueles que não se deixam influenciar pelo fascínio do aparelho e poderão escapar, por isso, da tentação de projetar seus anseios em alguma figura particular. Entretanto, para a maioria é indispensável o encontro periódico. Não como conseqüência do exercício de uma crítica que permite a escolha de bons programas, porém, como possibilidade para satisfação de necessidades íntimas, geralmente inconscientes. Para promover os encontros periódicos, surge a propaganda, cujo objetivo é o de criar afinidades entre imagem e espectador com vistas a promoções comerciais ou utilizar as imagens já bem recebidas pelos espectadores para fins publicitários. O cantor, ator ou animador não é o produto que a propaganda quer vender. me vai ser o instrumento para a publicidade tornar conhecido e vendável determinado produto. Assim, geralmente, a propaganda tem de criar primeiro a imagem para de. pois usá-la a serviço de um produto. Entretanto, ocorrem, não raro, circunstâncias que permitem o aparecimento de imagens, ante as quais o público reage de modo favorável, por encontrar nelas a satisfação de certos anseios. Nestes casos, a máquina publicitária não precisa criar, basta desenvolver a imagem para depois utilizá-la comercialmente. Contudo, há sempre a exigência de um deslocamento do interesse do público, da imagem para o produto, que nem sempre é conseguido. Verifica-se, constantemente, uma margem de perda consubstanciada nos que se fixam na imagem e não aceitam o produto. Logo, o ideal seria encontrar-se uma imagem que, ao mesmo tempo, fosse produto. Impondo-se a imagem aos telespectadores estariam, automàticamente, criadas as condições para sua venda como produto. Com Roberto Carlos pode-se dizer que esse ideal foi atingido. Transformado em imagem aceita pela maioria, o cantor permite que seus admiradores possam identificar-se com ele pela compra de sua figura. Isto é, sendo ao mesmo tempo a imagem e o produto, Roberto Carlos pode não somente ser visto como também adquirido, possibilitando isso aos seus admiradores um contato muito mais direto do que o permitido pela simples visão ou audição. Cada telespectador pode ter o cantor para si, de modo individual. Não só naquele momento em que, no vídeo, ele parece :; lhe pertencer, mas todas as vezes em que adquirir e usar aquelas coisas que fazem parte da sua personalidade. Há, portanto, a possibilidade quase real da identificação telespectador-herói, não conseguida por outras imagens.
d) A ação dos adultos no comportamento infantil Foi a conquista dos adultos pelo cantor que permitiu a sua penetração até a área infantil. O instrumento para o cantor «ié-ié-ié» chegar até as crianças continuou sendo a televisão. Não existem ainda pesquisas exatas que demonstrem se a televisão é benéfica ou maléfica para as crianças. O fato é que os pais, enquanto não chega uma opinião da ciência sobre o assunto, iniciam seus filhos, desde a mais tenra idade, na apreciação do absorvedor aparelho. Disposta a imitar tudo, a criança logo reproduz os gestos e as atitudes dos artistas mais vistos, ao mesmo tempo que se revela capaz de reconhecê-los de imediato. Sem dúvida, esse comportamento é interpretado pelos pais como indício de inteligência e vivacidade, pelo que passam a ser vistos com maior freqüência os programas diante dos quais as crianças tornam-se mais excitadas. Assim, havendo música, elas dançam; havendo muito movimento, batem palmas ou gritam. Orientada pelos pais, a criança passa, então, a ter suas preferências. Reage, naturalmente, e de forma positiva aos estímulos da música moderna, tomada pelo seu ritmo que exige, inclusive, o movimento de corpo. Encontra também as fisionomias que a agradam e não esconde sua satisfação ao vê-las. Apesar de liderar um movimento de oposição juvenil ao mundo dos adultos, Roberto Carlos tem trânsito livre em qualquer lar conservador. Além das razões já apresentadas para explicar seu êxito entre os adultos, sabe-se que a figura do cantor consegue despertar grande simpatia junto aos pais e provocar instintos maternais nas mães. Isto porque todos o consideram um bom rapaz, Í!1ofensivo e afetivo. A circunstância de ter sofrido um acidente e de, mesmo assim, ter lutado até chegar ao êxito, torna-o ainda mais simpático para todos. Há, sempre, uma admiração em torno do «self-made man» que parece confirmar a regra de que quem lutar vence. Ele se torna, portanto, um estímulo e um desafio para todos. Conquistados os pais, o cantor foi apresentado às crianças que aceitaram, prontamente, a nova fisionomia incluída no seu mundo infantil. Essa aceitação parece estar muito ligada a simples questão de simpatia pessoal e a uma faculdade inerente no cantor de cativar as crianças. Na conquista das crianças de idade escolar, embora ainda seja grande a parcela do fascínio exercido sobre elas pelo cantor, entram em cena outros fatores. É a música bastante viva e alegre, são as letras simples e, às vezes, até baseadas em estoriazinhas de revistas infantis, com as quais os pequenos estão familiarizados. Acresce, ainda, a circunstância de muitas professoras terem difundido a música de Roberto Carlos entre os menores, nas aulas de música ou canto, por considerá-la sadia e fácil de memorizar. Portanto, a não oposição dos pais que, pelo contrário, até estimulam e a aceitação dos professores criaram o terreno para a difusão do cantor na área infantil. A propaganda percebeu devidamente essa penetração do cantor da juventude entre a infância e, imediatamente, tratou de atingir esse mercado que, no Brasil, é imenso. Por isso, os pais que haviam levado a música de Roberto Carlos para seus fi1hns logo tiveram, também, de comprar-lhes todas aquelas coisas usadas e anunciadas pelo intérprete. O atingimento do mundo infantil de forma tão maciça com a conseqüente criação de novas necessidades a serem satisfeitas, demonstrou a força que os modernos meios de comunicação podem ter, quando aliados à propaganda. |