O Punk brasileiro vivenciado por Ariel
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Ariel e a banda Restos de Nada no Espaço Impróprio em 12/06/2010. Foto: Elaine Campos
Punk Brasil
Escrito por Ariel (fonte ROCKPRESS)
Parte I - Introdução
Encontrei no punk um ideal de liberdade, tanto de criação como na forma de encarar as questões que envolvem a realidade que nos cerca.
Pretendo situar as diversas manifestações culturais e alternativas do período que compreende desde minha primeira incursão no rock'n'roll, que foi no início dos anos 70 e que continua com o punk nas décadas seguintes. Não pretendo ser metódico ou mesmo historiador nessa empreitada e, sim, contar um pouco da minha experiência pessoal, tudo sob o meu ponto de vista, pois cada pessoa que viveu esses anos loucos, o viveu sob uma ótica individual.
São maneiras e gostos próprios, paixões tão intensas quanto perigosas e em alguns casos absurdas, numa época onde tudo era novidade e transformação. Deixávamos um mundo antigo e desinteressante para trás, transformando-o em uma cena juvenil empolgante novamente, resgatando idéias musicais e atitudes rebeldes.
Nascia o punk rock, a new wave, o power pop e até mesmo o mod voltava repaginado, ajudando a energizar a cena. Como em todo movimento, jovens do mundo inteiro, cheios de vontade, aderiram a essas novas tendências musicais e comportamentais, compondo assim uma forma própria para cada manifestação artística, criando uma Guerra de Estilos, na qual predominava a originalidade local, pois quanto mais diferente do antigo e principalmente do estilo hippie de ser, melhor.
Tudo o que representasse o velho, estava fora de questão e só o que interessava era o novo, o diferente e o bizarro, pois a geração passada estava muito passiva e acomodada, até mesmo porque tinha crescido e deixado certos ideais de lado, tornando-se adultos preocupados com suas responsabilidades.
O começo dessa nova rebelião cultural por aqui foi um tanto quanto confuso, pois além de estarmos um tanto quanto distantes dos grandes centros produtores dessas novas tendências, tudo o que envolve uma transição do velho para o novo, demora para ser digerido por todos e o torna discriminado e mal interpretado.
Quando chegavam as informações vindas de fora, muitas vezes eram matérias sensacionalistas, feitas pela grande imprensa, onde nos transmitiam idéias distorcidas e mal intencionadas para com essa mudança radical de comportamento juvenil, desqualificando e renegando o novo modo de se fazer arte.
Aos poucos me aprofundarei mais em algumas questões, trazendo lembranças de histórias reais vividas por este Invasor que há 35 anos está envolvido com música, comportamento e subversão de valores num mundo um tanto hostil, perigoso e, por que não, apaixonante.
Parte II - O Começo
Minha história no punk rock começa a tomar forma em 1974, quando garotos da periferia de São Paulo descobrem que havia algo além da música pop e do rock´n`roll comercial. Garotos entre 12 e 16 anos que, cansados de escutar esse tipo de música, resolvem buscar novas formas de expressão musical.
Classifico como primeiras influências nessa fase maldita e radical, bandas como Alice Cooper, Stooges, MC5, Dust, Pink Fairies, New York Dolls, Blue Cheer, Slade, Blue Öyster Cult, Foghat etc.
Apesar de haverem outras, como Kiss, Deep Purple, Rolling Stones e muitos outros dinossauros, só que já bem domesticados e vendidos como artigos de luxo. O rockabilly, que chamávamos de Brilhantina, também agradava a esse pessoal que gostava de organizar festas em locais que iam desde a casa de alguém, quando sua família ia viajar, até Sociedades Amigos de Bairros, pois os salões de festas desses lugares eram ideais para se agitar um som.
No meu bairro havia vários garotos que gostavam dessas bandas e desses agitos tanto quanto eu e alguns amigos meus e assim começamos a nos agrupar para escutar, pesquisar, adquirir, pirar em audições caseiras, discotecar, aprender idiomas, organizar e ir a festas com esse tipo de som. Começamos então a procurar discos desses grupos em lojas do centro da cidade, mas era muito difícil de se encontrar e quando encontrávamos, o preço era muito alto e quando conseguíamos, de alguma forma, repassávamos em fitas cassete para o pessoal. Estávamos nos anos de 70 e em plena ditadura militar, havia censura de todos os tipos e ainda mais para com o rock'n'roll.Já em 1976, começavam a chegar os primeiros discos da chamada new wave, que não deixava de ser o punk rock com toda sua juventude, rebeldia e espontaneidade, pois o que nos vinha de fora, chegava distorcido, mas nós já estávamos preparados e nossa identificação com esse tipo de som e comportamento foi imediata. Juntamos nossas influências do passado com o novo som que vinha principalmente da Inglaterra e da América e acrescentamos o novo visual que passava a identificar a nova música revolucionária que estava surgindo.
Andávamos em grupo de uns 40 garotos procurando lugares onde pudéssemos ouvir o som do qual gostávamos, mas infelizmente só encontrávamos o rock comercial como opção em salões na periferia da cidade. Fomos à luta e, como diz o ditado, "fizemos nós mesmos" os nossos espaços. Alugávamos salões, arrumávamos aparelhagem, iluminação e todo o resto para podermos curtir o nosso som, além de criar nosso próprio estilo punk, aliás, como existiam muitos jovens inconformados nos subúrbios, periferias e cidades próximas à capital, cada lugar criou seu próprio visual e atitude, sendo que várias cenas se criaram em torno do punk rock.
Conseguíamos nossos discos em lojas que importavam as novidades e os que nós já conhecíamos, através de informações colhidas de várias formas (revistas de cultura jovem, contatos fora do Brasil, programas de rádio etc.), adquiríamos para rolar em nossos sons, criando assim uma disputa pelos melhores lançamentos, pois realmente eram únicos e muito raros. Bandas como Dead Boys, Ramones, the Saints, Radio Birdman, 999, Menace, the Dickies, Speedtwins, London, Clash, Stiff Little Fingers etc. etc. etc. Fazendo um paralelo com os preços atuais, diria que, uma raridade como o primeiro LP dos Dead Boys sairia por Cr$ 500,00, sendo que o salário médio de um office-Boy era Cr$ 400,00. Realmente era muito difícil conseguir os discos sem fazer algum truque, né?
A partir daí, alguns garotos começaram a se interessar por guitarras e surgiram as primeiras bandas punk brasileiras. As garagens da Vila Carolina começam a ser ocupadas por um som cru, vindo de instrumentos vagabundos, tanto quanto os garotos que os empunhavam e não demorou muito para a vizinhança e a polícia tomarem ciência de que uma nova revolução estava acontecendo em seus quintais.
O ano de 1977 seria fundamental para o punk no Brasil, pois já estávamos incluídos na rebelião musical que havia se instalado no mundo todo e as primeiras bandas começavam a surgir nas periferias da cidade de São Paulo, mais especificamente na Vila Carolina, e a partir do começo de 1978 já tínhamos algumas delas atuando em pequenos clubes de rock´n`roll.
Nota do Barbieri: A foto acima, da banda Restos de Nada, é de 1977. O primeiro músico da esquerda para a direita é o Ariel, o segundo é o baterista Carlinhos também conhecido por Charles. Ele foi um grande amigo e, frequentador da minha loja de discos chamada Stocking Music Center que ficava situada no comecinho da Avenida Deputado Emílio Carlos no Bairro do Limão, gostaria muito de obter informações atuais dele. Os outros dois membros da banda infelizmente não sei os nomes (Alguém pode me ajudar?) |
A primeira banda a sair da garagem foi a Restos de Nada, pois já vinha ensaiando desde 77 e era acompanhada por algumas que viriam a seguir, como a AI-5, NAI, Condutores de Cadáver e Cólera, todas com forte ligação à Vila Carolina. O começo foi muito difícil para essas bandas, pois além da péssima qualidade dos aparelhos e instrumentos, as iniciantes enfrentavam preconceitos de todos os lados, inclusive das próprias famílias, que não entendiam direito o que estava acontecendo com aqueles jovens proletários que passaram a ser diferentes num mundo de iguais.
Capa do primeiro álbum punk brasileiro!
Vivíamos em uma repressão total e todos os nossos direitos eram negados enquanto cidadãos e mesmo assim estávamos empenhados em levar adiante o que havíamos começado, pois nossa rebeldia já estava interligada com garotos do mundo inteiro e já não dava para retroceder.
Bem, esse foi o estopim que desencadeou toda uma movimentação que viria a seguir, mas isso já é uma outra história.
Parte III - Uma vila punk chamada Carolina
Uma vila punk chamada Carolina. Encravada entre o Bairro do Limão e a Freguesia do Ó, na periferia da cidade de São Paulo, com muitas fábricas e comércio ao seu redor, a vila é basicamente proletária.
Seus moradores, trabalhadores braçais que, por estarem do lado errado do rio, nunca conheceram o luxo e nem desfrutaram da vida, apenas pagavam suas contas, administrando suas misérias.
Vivendo nesse ambiente, só nos aguardava o conformismo de ser como nossos pais ou ir contra essa corrente que nos prendia a essa triste realidade. Havia uma cena rock’n’roll jovem, musical, escolar, junkie, rude e até mesmo fora da lei (que, aliás, é o apelido de uma rua do bairro) caminhando para o radicalismo do punk rock.
A Vila realmente foi o centro aglutinador dessa Nova Onda, pois se punk era a palavra usada para designar pessoas e músicas da pior espécie, nós com certeza estávamos incluídos nessa estranha categoria de arte. Para nós, conviver com toda a decadência da sociedade era até normal, pois estávamos acompanhando a degradação do meio ambiente, a poluição dos rios da cidade, as especulações imobiliária, comercial e industrial e até mesmo a degeneração humana, então porque não jogarmos tudo de volta na cara da sociedade da mesma forma como ela nos tratava?
Atravessando o rio Tietê, que corta a cidade como um câncer, necrosando seu entorno, essa juventude urbana da periferia, via o lado bom da vida sendo desfrutado por poucos e isso só aumentava sua revolta, pois se o lixo era aparente e abundante em seus quintais, nos bairros ricos eles eram acondicionados em embalagens assépticas, porém nada impedia que fossem espalhados em suas calçadas limpas e protegidas e definitivamente foi isso que o punk fez.
Bem, voltando à Vila, havia ali uma escola onde estudava a maioria desses jovens urbanos, que curtiam rock como uma espécie de válvula de escape para suas frustrações e revoltas e nas noites que vinham acompanhadas de bebedeiras, cabuladas na praça em frente à Escola Estadual Tarcísio Álvares Lobo (EETAL), nascia uma das primeiras cenas punks de São Paulo, com verdadeiros delinqüentes juvenis se encontrando para namorar, brigar, fumar e fazer um som, o que atraía alguns personagens estranhos e músicos decadentes da região. Estávamos vivendo a transição do rock para o punk e no meio desse pessoal que estudava e outros que freqüentavam os picos próximos a essa escola, iniciou-se a Carolina Punk.
A Carolina Punk tornou-se a maior e mais temida gangue de São Paulo e a primeira a organizar sons pela cidade, pois ali existia, além de “Rude Boys” que gostavam de uma boa encrenca, os discos dessa nova rebelião musical que chegavam até nós pela única loja que existia numa galeria do centro, que mais tarde passou a ser conhecida como Galeria do Rock. A loja chamava-se Wop Bop e seus donos (Antonio e Renê) importavam pacotes de discos de vinil que até mesmo pela novidade eram completamente desconhecidos por aqui, mas que pela sonoridade e pela arte das capas, agradaram em cheio essa nova horda de bárbaros adolescentes que se identificou com o movimento que estava sendo criado no mundo inteiro.
Algumas dessas bandas conseguiram projeção por reportagens sensacionalistas da grande imprensa, que tentava de alguma forma alertar os pais para que mantivessem seus filhos longe delas, mas que acabou, por motivos óbvios, despertando ainda mais interesse por elas. Existiam por aqui também, algumas publicações voltadas ao comportamento jovem, como a Pop, a edição brasileira da Rolling Stone, a Revista Circus, o Jornal de Música, etc., que passaram a fazer a divulgação, se bem que um tanto distorcida também, dessa nova cena punk e com isso muitas fotos de visuais que foram adotados pelos punks brasileiros da primeira hora, com muitos alfinetes, correntes, paletós velhos, calças Jeans, roupas rasgadas, tênis surrados e a famosa e rebelde jaqueta de couro preta, que era usada por nove entre dez garotos em funções pela cidade.
Como já tínhamos alguns ingredientes necessários, ou seja, música, visual e atitude punk, porque não criarmos também os espaços para curtir essa nova forma de comportamento adolescente?
Então vieram os pontos de encontro do punk rock na cidade...
Parte IV - Nos embalos do rock’n’roll selvagem de sábado à noite
Nos embalos do rock’n’roll selvagem de sábado à noite. A cena que se formou na Zona Norte de São Paulo, além de encrenqueira era muito musical e criativa, e como não existiam lugares para essas funções punks, precisávamos criar condições para ouvir e dançar o punk rock.
Estávamos na era da disco music e só o que havia eram discotecas espalhadas pela cidade e uns poucos salões de rock que ficavam distantes uns dos outros, como a Led Slay e a Fofinho, na Zona Leste, Raquete e Portuguesinha, na Zona Oeste, o Esberock, em São Caetano, o Construção, na Zona Norte e o Templo do Rock, no Centro.
Todos tocavam os clássicos do rock’n’roll e as novidades que surgiam desse estilo musical e eram freqüentados por quem realmente estava envolvido com esse tipo de música. Dificilmente acontecia algum show e o que fazia o pessoal sair de sua quebrada eram os sons Mecânicos, geralmente de discos de vinil, fitas cassete ou de rolo, que eram gravadas para esse fim.
Alguns desses salões de rock começaram a ser invadidos por punks de todas as regiões e muitos deles passaram então a fazer parte dessa nova cena que nascia. Na Vila Palmeiras, que é vizinha da Vila Carolina, havia uma discoteca chamada Blue Box, que abrigou os primeiros sons com vinis de punk rock. O pessoal da Palmeiras disputava os discos com o pessoal da Carolina e, apesar de algumas diferenças, estavam juntos desde o início da cena rock do bairro, por volta de 1974, e iam aos mesmos lugares e faziam o mesmo movimento.
Havia também um grupo que curtia um rock´n´roll selvagem, chamado Ostrogodos (depois Jacos Pretos), que também fazia alguns sons em garagens e quintais pelo Bairro do Limão e que tinha uma pequena rixa com os punks da Carolina. Os Ostrogodos andavam no melhor estilo selvagem e rebelde, com jaquetas de couro, calças jeans e botas; gostavam de beber, brigar e agitar um som. Seu maior desafeto era o pessoal da Carolina, que andava com uma jaqueta de marinheiro americana, como a do Pato Donald, preta com listras brancas no punho e na gola.
Esse visual era adquirido na boutique Lixo, mais conhecida como Lixão; ficava na R. Dom José de Barros, próxima à Galeria do Rock, e importava uniformes usados de soldados americanos, que chegavam em containers fechados. Adquirir calças jeans era muito difícil também e para conseguir uma era quase como se fôssemos comprar drogas em alguma boca, pois eram contrabandeadas e só quem as usava eram os malucos que curtiam rock. A moda exigia calça de tergal e usar calças de índigo blue era uma novidade muito mal vista pela sociedade.
Voltando aos sons, os punks da Carolina montaram uma equipe de som chamada The Dolls que, além de fazer festas pelo bairro, fazia também uns dos primeiros sons semanais, aos sábados, na Portuguesinha, na Vila dos Remédios, e os punks da Palmeiras já discotecavam na Blue Box com a Equipe Lúcifer’s Friends. Nessas festas vinham todos os tipos de malucos, de todos os cantos da cidade, inclusive o pessoal que ficava em frente ao Teatro Municipal, que estava na transição entre o movimento hippie e o punk. Como não havia muitos discos dessa nova geração punk, os sons eram feitos com o que tínhamos à mão e rolava muito rock maldito, como opção.
O ano era 76 e já estávamos preparados para entrar de cabeça num mundo verdadeiramente underground, com um estilo próprio de ser, pois além de ser muito difícil arranjar discos e espaços para agitar um som, éramos obrigados a criar nosso próprio visual, com arranjos criativos, feitos por nós mesmos, com materiais buscados nos guarda-roupas de nossos avós, como calças apertadas, paletós fora-de-moda e vários apetrechos estranhos, como alfinetes de fraldas, correntes, clips de papel, tachas etc., pois não estávamos em Londres nem Nova York e sim numa cidade que, além de ser atrasada culturalmente, vivia em uma ditadura imposta por militares e por uma sociedade conservadora ao extremo.
Nossos sons geralmente eram invadidos por policiais e quase sempre acabavam antes do horário e com várias prisões por abuso de autoridade, o que fez de nós inimigos públicos, mas que também nos tornou cada dia mais rudes e dispostos a encarar de frente toda essa repressão.
Surgiu daí uma necessidade de continuar insistindo nos nossos propósitos de fazer do punk um Movimento e quanto mais eles endureciam em sua empreitada de nos reprimir, mais criávamos mecanismos de defesa contra a mesmice e a caretice da sociedade da época.
Parte V - Violência das gangues punks
Violência das gangues punks. Por volta de 1977, que foi o ano em que se estabeleceu o punk rock em São Paulo, havia já diversas gangues atuando nas periferias, subúrbios e cidades próximas à capital e cada uma com um estilo próprio, uma diferente da outra na sua maneira de ser e todas dispostas a conquistar seu espaço nesse novo movimento que surgia.
Seus membros eram completamente amorais e desprovidos de qualquer senso cristão de piedade, os antigos conceitos de bondade haviam sido abolidos, mesmo porque não estavam funcionando já fazia algum tempo.
Tudo era novo e incrivelmente excitante dentro das gangues punks, com tudo o que a cidade pudesse oferecer e até mesmo cobrar de você. Tudo o que era velho e decadente passou a ser desprezado e até mesmo hostilizado pelos membros das gangues. Cabeludos em geral não tinham mais vez nas ruas. Hippies e bichos-grilo tornavam-se alvos a partir de então e cada dia que passava a coisa endurecia e tomava um sentido violento.
Passando a agir de forma violenta, essa juventude tentava impor sua presença nos lugares onde se curtia punk rock e quando saia da sua quebrada, precisava de muita disposição e coragem para atravessar a cidade sem tomar um prejuízo e se não soubesse se defender, sua história poderia acabar ali mesmo, por medo, pela lei, pela violência da coisa e até mesmo pela morte.
Andar em grupo era questão de sobrevivência até então e como desde a infância esse jovem já convivia num meio cruel e marginal, cada dia mais passou a ser senhor da situação, impondo o terror em atitudes carregadas de ódio contra seus desafetos.
Suas famílias, muito religiosas, pouco podiam fazer para acalmar essa movimentação, com seu deus ou o que quer que fosse moralmente importante para elas. Nada podia convencer essa nova juventude que o que estavam fazendo não era o correto, pois no meio de todas as opressões impostas pela sociedade, esse meio de “auto defesa” não podia ser meramente estético, mas duro e realmente perigoso.
Algumas gangues, por afinidade ou pela convivência, se uniam e passavam a atuar em conjunto, nos salões, na São Bento, na Galeria e apesar da individualidade de cada uma, São Paulo começa a ser dividida em Zonas, como a Zona Norte, Zona Oeste, Sul, Leste, ABC, Guarulhos e todos os municípios vizinhos à capital, com muitos punks engajados nesse movimento, que passam a ser conhecidos primeiro pela região e depois pelo nome da gangue à qual ele pertencia, como por exemplo: fulano é da Norte e da Carolina Punk; sicrano é da Oeste e da Punk Terror e assim por diante, pois numa região poderia haver diversas delas.
Até mesmo a queda para o crime era diferente nas diversas quebradas, diferente também eram o poder bélico, o armamento, o visual, as drogas, a quantidade de punks dispostos à luta e o grau de periculosidade. Algumas eram bem marginais e para sobreviver roubavam, furtavam, traficavam, praticavam estelionato, se prostituíam. Marginais por conseqüência e punks por opção de uma vida louca dentro do rock’n’roll.
No meio do caos, surgem as tretas mais violentas do que filme do Charles Bronson.
Parte VI - O Existencialismo Lado A Lado Com A Cena Punk
Caminhando junto da violência e tentando sobreviver sob um novo modo de pensar e viver o rock’n’roll, alguns punks da primeira hora, desiludidos com tudo o que a vida tinha reservado para eles, começam a buscar nos escritores existencialistas, nos filósofos alucinados, e nos poetas e dramaturgos radicais como alguma inspiração para toda essa falta de perspectivas.
Aliando o “Nada” desses pensadores com o “No Future” dessa nova geração, tínhamos que criar uma forma de atitude crítica e atuante contra esse estado de coisas e transportá-las para as ruas e para o Movimento que surgia.
O cenário musical na época era meio deprimente, pois havia um sentido de fuga, de desistência, com as drogas psicodélicas servindo de alívio e alienação e poucos estavam envolvidos com uma verdadeira ruptura, apenas queriam ser esquecidos pelo sistema e viver o resto de suas vidas à margem e o que se via era o rock’n’roll se afastando de seu sentido urbano, contestador e energético e a MPB ditando as regras com sua fuga para o campo, suas batas coloridas, suas músicas de protesto light e sua retórica bicho-grilo. Esse estilo era muito escapista e nem um pouco urbano e sendo assim de pouco interesse para nós.
Alguns punks começam a se interessar pela esquerda revolucionária e como as ruas já estavam tomadas por guerras de gangues, tentávamos criar um cenário ideal para uma guerra de classes, de estilos e também uma guerra contra a moral e os bons costumes, para a qual toda a energia dessa parcela descontente da juventude pudesse ser canalizada, dando algum sentido para essa nova movimentação urbana.
Muitos punks escreviam textos, desabafos, poesias, letras de músicas, influenciados pelos pensadores citados e havia uma vontade enorme de divulgação disso tudo e esses escritos circulavam de mão em mão, chegando às vezes aos jornais e revistas da época, atraindo a curiosidade e o interesse em saber quem eram aqueles garotos que vinham das periferias e subúrbios e que tinham uma consciência política e existencialista sem ao menos ter acesso à educação acadêmica.
Nossos valores e atitudes mudaram radicalmente e passamos a nos preocupar com questões muito mais profundas do que apenas brigas de bairros, se bem que estávamos inseridos nelas, pois fazíamos parte disso tudo e a bem da verdade, não tinha que ser diferente, só não aceitávamos a violência gratuita, mas se fosse pra desarrumar, estávamos prontos pra qualquer parada.
Víamos no punk uma nova forma de atuar, com música, idéias, amigos, namoros, bebedeiras, loucuras, brigas, protestos e muita revolta, ou seja, criávamos um ambiente em que nos sentíamos importantes e tudo o que acontecia e que girava em torno dessas funções, era extremamente estimulante. Muitas noites passadas em longas discussões regadas a vinho barato, filosofia idem, música energética e muita camaradagem.
Só na Vila Carolina e região, por volta de 1978, já havia mais de 50 punks que se reuniam freqüentemente e trocavam muita informação adquirida e repassada através de textos xerografados ou mimeografados, nos escritórios onde alguns trabalhavam ou nas escolas do bairro. Os discos que chegavam também foram importantes, pois através deles tivemos contato com pensamentos que iam de encontro ao que também sentíamos e, apesar do pouco que chegava por aqui, conseguíamos fazer uma boa seleção de bandas e idéias, buscando as que realmente valiam a pena e que tinham uma mensagem, fosse ela existencialista, como a dos Buzzcocks, anárquica e niilista como a dos Weirdos ou mesmo política como a do Clash e isso estava apenas começando.
Enfim, a cultura, ou melhor, a contra-cultura que acabou se criando com toda essa vontade de fazer do punk um Movimento foi a mola-mestra que manteve o punk rock como alternativa à massificação da cultura de rua em nossa cidade.
Para ler: Sartre e Hesse, Nietzsche e Schopenhauer, Maiakovski e Artaud.
Parte VII - Sexo, drogas, punk rock e... uma pitada de confusão
Sexo, drogas, punk rock e... uma pitada de confusão. Já no final dos 70, muitos jovens conhecem os prazeres tanto da “carne”, quanto os “artificiais”. Época em que doença venérea significava uma simples “gonorréia”, quanto muito uma coceira chamada “chato”, perfeitamente curáveis com antibióticos e neocid.
Então a liberdade sexual rolava solta e a maioria procurava não se envolver em uma relação séria, o que contribuiu para que as gangues se mantivessem unidas, pois as mulheres do movimento andavam lado a lado com os caras nas funções punks e não estavam a fim de um relacionamento sério com ninguém.
Amorais como os homens, essas mulheres mantinham uma postura feminina, mas ao mesmo tempo buscando se impor num mundo machista e preconceituoso com relação a elas e, tanto no Brasil como em outros países, iam deixando de representar figuras frágeis para se tornarem peças fortes e importantes no movimento.
Essas mulheres eram reprimidas por suas famílias e pela sociedade em geral, com suas escolas e corporações ditando regras de postura em que a condição de submissão estava enraizada e qualquer que fossem os desvios de conduta, deveriam ser reprimidas e as formas de igualdades negadas. Acredito que, por mais que os garotos punks fossem direcionados a essas regras da sociedade, buscávamos uma maneira de quebrar esses tabus e isso incomodava muita gente, pois estávamos nos tornando um perigo iminente num mundo repleto de preconceitos e negações de todos os prazeres mundanos. Já não tínhamos uma religião para nos “guiar” e os preceitos morais já não faziam sentido numa época em que os valores mudavam tão rapidamente que deixavam para trás até mesmo os ideais de Paz e Amor da geração anterior, mesmo porque não queríamos fazer parte da maneira hippie de ser.
Enquanto os hippies punham o “pé na estrada” se envolvendo em comunidades alternativas pelos interiores do Brasil, nós, punks, estávamos tomando os centros urbanos e convivendo com a marginália, tocando o puteiro nas quebradas mais perigosas e isso não era pra qualquer filhinho de papai - esses aliás, começaram a se afastar do pessoal mais radical e violento, contribuindo para que o punk rock ficasse cada dia mais à margem e isolado até mesmo do rock’n’roll que existia na época.
Muitos grupos de jovens viam no punk um movimento passageiro, pois íamos na contramão da história e por mais coerentes que fôssemos em nossas propostas de mudanças, estávamos, talvez, muitos anos à frente de qualquer movimento juvenil e isso não condizia com as formas de protestos que alguns setores da “esquerda” brasileira praticavam. Estávamos interessados em quebrar barreiras musicais, mas também na liberdade de ser diferentes do imposto pela sociedade.Voltando à putaria, muita coisa acontecia nas longas noites vividas sob o efeito de algum barbitúrico ou estimulante e por mais que se tentava evitar muitos adolescentes encontravam essas drogas em suas próprias casas.
Saindo muito cedo de casa, por diversos motivos, muitos punks encontravam conforto entre si, compartilhando sua sexualidade, sua musicalidade, sua rebeldia, suas neuroses e até mesmo suas seringas. Uma convivência diária propiciava a todos uma nova forma de viver o cotidiano numa grande cidade. Tudo era permitido e tentado em forma de sexo, drogas e punk rock e como não haveria futuro, que se iniciasse a grande farra do apocalipse.
Parte VIII - Maravilhas de um acorde
A cena alternativa se fortalecia com o movimento punk e o que nos sobrava estava além de uma simples gangue, pois nossos objetivos já haviam ficado grandes demais para nossas quebradas. Não nos era permitida liberdade de expressão. Restava conquistar o mundo com o que tínhamos na mão, ou seja, NADA.
Tínhamos textos em forma de desabafos, mas nada que repercutisse fora de nosso meio, pois poderia ser até perigoso.
Precisávamos criar um canal para que toda nossa atitude fosse manifestada com estilo, mesmo porque víamos o mundo de uma forma diferente e isso tinha que servir ao menos para quebrar alguns tabus. Até então era mais fácil para eles embalar tudo e entregar pronto, com as grandes corporações produzindo formas de cultura massificada e preparada no forno de uma sociedade hipócrita e decadente. Hinos ufanistas e MPB intelectual demais para ser aceita pelos garotos do subúrbio e isso passou a ser um problema também para o lado do rock´n´roll.
Onde estava minha música feita para dançar? Será que teria de partir para a disco music para poder chacoalhar o esqueleto? O rock tinha se tornado grande demais e chato demais para “as massas” e só quem era do meio sabia o que estava rolando, precisávamos tirar esse cordão de isolamento entre pessoas que faziam música e as que assistiam, ainda mais que estava todo mundo envolvidíssimo nas mesmas paradas.
Os discos gringos começaram a chegar e percebemos que os selos centrais dos vinis estavam bem diferentes daqueles a que estávamos acostumados, outros nomes de gravadoras muito mais criativos, coloridos, com impressões imprecisas, figuras deformadas com frases e poses ameaçadoras. Tudo o que a gente queria em forma de arte e atitude, pois alguém em algum lugar estava com o mínimo fazendo o máximo, utilizando o que tinha na mão, o que às vezes era bem pouco para tanta criatividade. O toque já havia sido dado: Faça Você Mesmo! Só cabia a nós fazer a coisa acontecer e transformar nossa cruel realidade em algo mais interessante.
A partir daí, surgiu uma leva de garotos que empunhavam textos existencialistas, carregados de uma urbanidade juvenil e como o princípio da coisa era musical, nada mais natural que alguém surgisse com algum instrumento e começasse a tirar algumas notas, mesmo não sabendo tocar porra nenhuma.
Os textos produzidos pela molecada acabavam servindo para uma tentativa de se fazer encaixar nesses poucos acordes que insistiam em sair de violões baratos, muitas vezes emprestados de algum parente com alguma aptidão musical. Formavam-se rodas para essas audições, geralmente em aulas cabuladas e regadas a vinho barato nas portas das escolas do bairro e quem já sabia alguma coisa ensinava para o outro e aí uma vontade enorme de se fazer uma banda tomou conta do pessoal.
Pelo menos duas bandas de punk rock nacional eu vi nascer dessa maneira e como estávamos na vanguarda brasileira em termos de discos de vinil, tanto dos malditos dos anos 60 e 70 quanto das mais atuais bandas punks que acabavam de sair lá fora, nossa influência passou a ser toda essa bagagem musical, voltada para uma sonoridade mais rude e de uma certa forma existencialista.
As primeiras bandas que realmente tinham toda essa vivência dentro desse tipo de rock’n’roll, seja no sentido musical ou de comportamento, foram Restos de Nada e Condutores de Cadáver. Começaram no final de 1977 a ensaiar suas músicas não apenas por diversão ou para se tornar astros do rock, mas sim, para, com estilo, ser a Nova Onda rebelde que varreria, como um tsunami, toda a pose patética dos velhos rockstars, criando uma nova forma de se fazer música, ou seja, com o mínimo fazer o máximo, ou como diria T.V. Smith: “One Chord Wonder”.
Ariel
Nota Sobre o Autor
Ariel, é músico punk (participou das bandas Restos de Nada, Desequilíbrio, Inocentes, atualmente na Invasores de Cérebros), anarquista militante dentro do grupo Ação e Anarquia, poeta e editor dos Cadernos da Sarjeta e também colecionador de discos raros.
As cinco personalidades mais importantes do movimento punk brasileiro!
Esta lista abaixo é de responsabilidade do Barbieri e está ordenada por ordem de criação de bandas.
Acredito que os líderes destas bandas desempenham um papel importante e fundamental para o movimento punk no Brasil.
Ariel Restos de Nada |
Redson Cólera |
Fábio Olho Sêco |
Clemente Inocentes |
João Gordo Ratos de Porão |
Barbieri Comenta
Acredito que esta trilha sonora que vocês estão ouvindo, complementa muito bem este texto escrito pelo Ariel. Trata-se de uma coletânea em vinil que virou museu da cena punk/hardcore brasileira. Ronda Alternativa foi lançada em 1987 pelo selo “Devil Discos”. Tem DZK, III Mundo, Tropa Suicida, Kaos 64, Catedral da Desordem, Falange, Voraz, Via Sacra, Doutrina Decadente, Vírus 27, Excomungados, Vienna, Repressão X e Pupilas Dilatadas. Ronda Alternativa era um programa de rádio de Santo André, no ABC paulista que levou e deu muita botinada na cena punk de SP nos anos 80. (fonte: Mofonovo)
Ronda Alternativa
01 - III Mundo - Crianças Bastardas
02 - Voraz - Fardão
03 - Vienna - Sexo Arrogante
04 - Catedral da Desordem - Informe
05 - Falange - Falange Suburbana
06 - Via Sacra - Conflito
07 - Doutrina Decadente - Contretação
08 - Pupilas Dilatadas - Maníaco Depressivo
09 - Excomungados - Hospícios
10 - Repressão X - Nada é Impossivel
11 - Kaos 64 - Guerreiros Suburbanos
12 - Tropa Suicida - Desordem Nacional
13 - Vírus 27 - Grito Oi
14 - DZK – Juventude
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