Imagine uma F.O.D.A. Pública sem boletins de ocorrência
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F.O.D.A. Pública sem boletins de ocorrência
“Eu contra meu irmão. Eu e meu irmão contra nosso primo. Eu, meu irmão e nosso primo, todos nós contra o forasteiro” – Provérbio beduíno
Por Michel Aleixo
Tomar um choque de microfone no dente incisivo central é uma das experiências mais vivas da performance ao vivo. Você está lá tentando tocar guitarra, cantar e posar de bacana ao mesmo tempo, e, de repente, a realidade nua e crua bate à sua boca. Tudo isso em conjunto com moléculas de etanol oriundas da lata de cerveja quente fazendo seu trabalho na corrente sanguínea e retardando os reflexos. Acredito que todos os músicos que tiveram o privilégio de participar de qualquer das sete edições da Festa de Ocupação Dinâmica de Área Pública, ou simplesmente F.O.D.A. Pública, não imaginavam que o gerador movido a gasolina proporcionaria esse tipo de choque pesadelo. E é exatamente aí que está a beleza da coisa. Basta um motor de sete HPs, partida manual e tanque de 15 litros para gerar horas de música capazes de romper o silêncio dos inocentes em ambientes ofuscados por todo tipo de apatia física e emocional, enquanto um suspiro de juventude sônica transmite sua arte com dentes eletrizados.
Estive presente na edição especial da F.O.D.A., no sábado, 21 de junho, e testemunhei como esse bacanal sonoro pôde reunir muita gente disposta a simplesmente festejar. A dinâmica é simples: o gerador é ligado em praças, quadras e outros espaços onde o poder público é ausente, e bandas locais são convidadas a tocar para quem quiser ouvir. A ocupação é respaldada pela Lei Distrital Nº 4821/2012, que garante liberdade de qualquer “censura, coerção, proibição, taxas, emolumentos, tributos, impostos, autorização e inscrição” a manifestações artísticas e culturais em ruas, avenidas e afins. Na ocasião, a F.O.D.A. rolou solta na área central de Taguatinga, mais precisamente na CSB 2, em frente à loja Porão 666, onde o rock “veste você dos pés à cabeça”, segundo o slogan, um oásis de danaçãofashion para a roqueirada local.
A edição foi especial por dois motivos: recebeu bandas da Transfusão Noise Records, selo do Rio de Janeiro que divide com a F.O.D.A. as mesmas aspirações estratégicas do mantra “faça você mesmo” pós-internet; e também por estrear a primeira edição das oficinas de som e vídeo que também compõem o projeto. A proposta é disseminar conhecimento gratuito para que bandas e músicos saibam autogerenciar suas carreiras, outra atitude fraternal com a marca F.O.D.A., livre de subsídios governamentais e interesses partidários. No início da tarde, Pedro “Machim de Mamãe” Barros, o engenheiro de som do gerador, levou à garotada noções básicas de microfonação, equipamentos e técnicas de estúdio. “Minha mãe me disse ‘estuda’ e eu entendi estúdio, me fodi e fico feliz em ajudar outros a se foderem também”, disse ele mais tarde. Em seguida, o videomaker Irlan Joney ofereceu a uma plateia variada enquadramentos de câmera, estilos de gravação e outras dicas valiosas do universo audiovisual.
As oficinas ocorreram enquanto o “palco” terminava de ser montado em frente à loja, no espaço de calçada entre dois edifícios residenciais que formam um cânion de concreto morto e cercas elétricas vivas a 20 metros do Alameda Shopping. A proximidade ao centro de compras elevou o índice de audiência rotativa do show, em razão da quantidade de transeuntes que passavam pela F.O.D.A. sem entender direito do que se tratava. Davi Kaus foi o primeiro a empunhar as seis cordas, trazendo canções de seu primeiro trabalho solo ainda a ser lançado e alguns covers. Lêndea viva do rock da cidade, Davi fez o mesmo de todas as vezes em que plugou sua guitarra Giannini vintage cicatrizada: despejou ondas sonoras cobertas com o tipo de pureza ectoplasmática cada vez mais rara nesse ramo. Sejamos francos, que outra pessoa teria a audácia de encerrar sua apresentação fazendo uma roleta russa noise sapateando os patches digitais da Zoom 505, o mais canastrão dos pedais de efeitos, e ainda assim fazer disso um espetáculo.
A essa altura o evento já ostentava público sólido de punks pré-adolescentes, pais de família pós-roqueiros da Geração Y e suas crianças; moradores que se esgueiravam das janelas e resolviam descer e conferir de perto; e aquele caleidoscópio de personagens típicos que você não espera encontrar, mas aparece em eventos ao ar livre, com destaque para uma dupla siamesa de mórmons. Não é todo dia que o rock bate a sua porta ou bloqueia seu caminho, dependendo do ponto de vista. Toda F.O.D.A. de respeito tem suas regras, e antes da próxima atração, a organizadora Nina Puglia esclarecia no microfone as intenções do projeto: “Colocamos sacos de lixo em vários lugares, vamos dar o bom exemplo e manter o local limpo, galera; a ideia da F.O.D.A. Pública é levar cultura para espaços públicos de maneira democrática…” e por aí vai.
Em seguida se apresentou o duo carioca de guitarra/bateria Chapa Mamba e seu garage rock que poderia ser definido como uma centopeia humana dissonante unindo por suturas Arnaldo Baptista, Captain Beefheart e Ty Segall. Será que eu deixo esse absurdo no texto? Vou deixar. Os caras arrebentaram, e seu estilo minimalista não poderia encontrar clima melhor que o daquela F.O.D.A. Por ali a música soava honesta e livre de amarras, ao contrário de casas de show com cervejas superfaturadas, cartões magnéticos de controle de entrada e seguranças que odeiam o som ao redor e estão sempre prontos para encaixotar o primeiro engraçadinho que tirar a roupa ou dançar passos folclóricos russos. O Chapa Mamba lançou seu último trabalho pela Transfusão Noise Records e junto à Lê Almeida eram os grandes convidados da edição especial.
Na sequência Pedro e Irlan tiraram o cabaço de sua nova banda, a No 10. Os caras estavam cheios de amor pra dar, em especial o vocalista Pedro, que dedicou o show a seu filho prestes a nascer e listou os animais que se assemelham à cara de cada integrante. O hardcore do quarteto antropomórfico deixa qualquer espetáculo de zoofilia mexicano no chinelo, e sem dúvidas o grupo tem potencial. Prova disso é o primeiro hit, “Exu Monumental”, composto em parceria com Biu, o guru da F.O.D.A. Pública, ausente na ocasião. A No 10 tocava e o lance todo já se tornara um evento que não podia ser ignorado, concorrendo de igual para igual com a FIFA Fan Fest, que acontecia a três quilômetros dali. A vantagem era custar muito menos e acrescentar muito mais ao estado de espírito da noite taguatinguense.
Chegou a vez de Lê Almeida e banda, o cara que comanda a Transfusão Noise. Criado por ele em 2004, o selo tinha a pretensão inicial de colocar as bandas da Baixada Fluminense no mapa, até que, em algum momento, Lê percebeu que muito mais gente nesse mundo deseja que sua falta de voz seja ouvida. Segundo ele, perdeu as contas de quantos discos já lançou de artistas nacionais e internacionais, seja produzindo o disco, confeccionando a arte gráfica, seja apenas carimbando o nome da gravadora. “Lá no Rio não tocamos na rua, temos um espaço chamado Escritório, onde cabem no máximo 30 pessoas. Não é nada além de um cubículo e tomada disponível, e as poucas pessoas que ainda se interessam em assistir a um show longe do computador vão lá fazer amizade e se divertir”, me disse com seu semblante tão introspectivo e low-fi quanto o estilo de som comum a quase todas as bandas do catálogo da Transfusão.
Ao vivo, o som de sua banda remete a figuras clássicas dos anos 90, como Pavement e Sonic Youth, todavia, para ele, não passa de um “som melódico e distorcido”. Fale o que quiser, mas quando o sujeito com a guitarra em riste arrasta os dedos por mais de 15 segundos além do 20ª traste do braço do instrumento e distribui palhetadas desconcertadas, é porque ele bebeu da fonte do mais significativo movimento roqueiro dos últimos 20 anos. Especialmente se a guitarra em questão é uma Jaguar ou Jazzmaster – no caso do Lê – exemplares lançados por Leo Fender no final dos anos de 1950 sob a promessa de serem a “mais requintada guitarra de corpo sólido jamais oferecida ao público”, porém fracassaram miseravelmente em razão do complexo duplo circuito eletrônico que desagradou as massas. Foi justamente a estigma de patinho feio e o puta visu que as fizeram cair nos braços das estrelas do underground americano 40 anos depois, e assim se popularizarem com a explosão do rock alternativo dos anos 1990.
Passava das 19 horas e a F.O.D.A. precisava chegar ao fim. Contudo, após uma refinada performance de dança do ventre embalada por clássicos do rock, o último ato ficou a cargo dos pesos-pesados do Terror Revolucionário. Por mais que os ponteiros do relógio ultrapassassem o planejado, encerrar seu show de rock com a antológica banda liderada por Fellipe CDC é o equivalente em prestígio a assistir Agnaldo Rayol animando as Bodas de Diamante de sua estimada avó italiana. Se você não sabe de quem estou falando, acredite, é um elogio. Em mais de 15 anos de estrada apenas com o Terror, Fellipe atravessou todas as supostas crises do undergroundcomo o anti-herói errante que sempre foi, pouco se importando com o que subia ou descia na bolsa de valores do punk. Seu modus operanditambém permaneceu o mesmo, distribuindo panfletos rudimentares em papel A4, de shows em redutos do mal, com seu inseparável guarda-chuvas a tiracolo. Pouco antes do show, ele me disse que a iniciativa da F.O.D.A. é louvável por mostrar aos garotos que nesse ramo não tem para onde correr, é preciso arregaçar as mangas. “Nada cai do céu e, quando vejo esse tipo de iniciativa, acredito que o atual momento da cena desbanca para uma nova fase positiva. O que ainda falta é ter mais gente deixando a comodidade da internet e saindo de casa para conhecer bandas”, disse.
William Burroughs escreveu sobre a Simopatia, condição que, segundo o autor, aflige em sua maioria oficias das Forças Armadas que começam a exibir comportamento semelhante a símios devido a fortes níveis de estresse. Talvez essa seja a maneira de explicar a conduta da garotada nas rodas de pogo em um show do Terror Revolucionário. O público não sabe responder de outro jeito ao nível elevado de batidas por minuto do baterista Jefferson e o vocal gutural de CDC, senão batendo de frente uns com os outros num balé de cisnes negros que, apesar de não parecer, é tudo menos violento. Àquela altura, as mais de cinco horas de música reverberavam com mais força nas mentes daqueles que desaprovavam a F.O.D.A sob suas janelas, com o peso do Terror servindo de insulto final. Fellipe até tentou forçar amizade com um espectador lá do alto, perguntando o placar do jogo da Copa do Mundo. De qualquer forma, cerca de 20 músicas e pouco mais de 22 minutos depois, eles encerraram sua apresentação, e a festa chegou ao fim sem boletins de ocorrência.
Pareceu consenso entre os entrevistados que a suposta falência da cena roqueira é ocasionada pela geração tão viciada na internet que acha trabalhoso demais sair de casa para prestigiar bandas autorais. E nessa era de espertinhos vidrados em seus “smart”phones, a quantidade de heróis da resiliência que ainda sentem tesão em segurar a cópia física de sua música favorita está diretamente relacionada à presença de público nesses eventos, onde a rapaziada gasta muita sola de sapato e dinheiro que não tem para apenas serem capazes de dizer que tocam numa banda de rock e tomar choques nos dentes. Culpar unicamente a internet me parece superficial demais. De toda forma, os falsos profetas emergem nos tempos de perdição. E não é à toa que muita gente está estuprando o conceito do Fundo de Apoio à Cultura, da Lei Rouanet e outros projetos de incentivo, fazendo deles o sustento de sua nulidade. Alguns vão tão longe que, ao perceberem a dimensão do bom negócio, usam a arte como máscara de politicagem profissional em tempo integral. A exemplo do Fora do Eixo e seu mentor Pablo Capilé, que já parecia perigoso quando era um mero caixeiro viajante da demagogia cultural, e piorou e muito quando aperfeiçoou seu discurso a ponto de hoje parecer um Jim Jones distorcido pregando em seu púlpito de conexão livestream a uma legião de perdidos que curtem, comentam e compartilham sua conversa fiada.
É preciso empalar esses forasteiros com classe e a melhor maneira de fazer isso é nas trincheiras. A F.O.D.A. é foda justamente por se apresentar como uma supernova de sinceridade nesse círculo. Seus organizadores viram de perto o maquinário dos “partidos da cultura” e preferiram voltar às origens. Porém, não vale a pena gastar ficha com isso. Prefiro encerrar esse ensaio retrocedendo algumas horas na narrativa. No ápice da bagunça, Biu me mandou de casa mensagem de texto no celular que dizia: “Eae, gonzo, ta rolando?” Considerei como melhor resposta para explicar a F.O.D.A., enviar a foto da coisa toda ao vivo, a cores e sem filtros, o que o levou a retrucar: “um arquivo maior q a capacidade do meu cel, a edi espec do foda, pelo q entendi”. Eu não descreveria melhor, brother.
Fotos: Marcos A. Gomes