O NOVO VOO D'AVE SANGRIA
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SHOW
Ave Sangria: animal raro em Fortaleza
Resgatados pelas novas gerações, grupo pernambucano Ave Sangria traz a psicodelia nordestina ao CDMAC
Formação clássica, no sentido horário: Almir de Oliveira (gorro branco), Ivson Wanderley, Marco Polo, Israel Semente, Agrício Noya e Paulo Raphael
por Antonio Laudenir - Repórter - http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/mobile/cadernos/caderno-3/ave-sangria-animal-raro-em-fortaleza-1.1873888
4 jan. / 2018 - A premissa de sucesso nas artes, vez ou outra, escorrega em uma série de sensos comuns. Em específico no ramo musical, o sonho de ser um astro materializa-se por fama, turnês apoteóticas e cachês milionários no bolso. Entretanto, as constantes transformações nas formas de consumo e distribuição da música abalaram essa estrutura mercadológica. A noção de ser bem-sucedido com música deixou de ser binária.
Muitos grupos e compositores, por inúmeras razões, trilharam jornadas diferentes dos ditos realizadores do "mainstream". Uns nunca deixaram o underground e seguem ativos, outros construíram breves e luminosas carreiras. Gravaram pouco (ou quase nada), fizeram diminutas aparições ao vivo e, em sua maioria, ganharam reconhecimento do público apenas décadas depois. Um caso exemplar neste olimpo de "desgarrados" é certamente a banda brasileira Ave Sangria.
Os pernambucanos se apresentam neste sábado (6), às 19h, no Anfiteatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC). Resgatados por uma nova geração de fãs, a banda nunca se apresentou na capital cearense e o show promete um passeio pelas músicas do mítico álbum homônimo de 1974. Batizado Noite Psicodelia do Sertão, o evento abre a programação do Férias no Dragão e ainda reúne shows da banda Trovador Eletrônico e do cantor e compositor cearense Abidoral Jamacaru.
O único registro de estúdio do grupo tornou-se uma lenda e objeto de culto ente colecionadores. Maldito, foi atacado pela Ditadura Militar - o que significou o fim das atividades da banda. Diferente de muitos projetos que estacionaram pelo caminho, o Ave Sangria tinha fôlego para continuar por mais algum tempo na cena musical daquele Brasil dos anos 1970.
Por telefone, o vocalista Marco Polo descreve esse atual momento do Ave Sangria. "De um modo geral achamos que essa perpetuação, esse redescobrimento do público jovem mostra que não é um trabalho datado. Atribuo isso, em parte, à postura questionadora do moralismo e do conservadorismo que sempre tivemos, coisas assim que a juventude compartilha. A letras psicodélicas te dão outras interpretações e isso é importante para este público, outros pontos aliados são a qualidade das músicas e dos arranjos que com,pletam esse pacote sedutor", descreve. Antes de evidenciar os eventos responsáveis por conferir o status de obra cult a este disco, vale uma contextualização do momento artístico daquele instante.
Caleidoscópio sertanejo
Imersos na dita psicodelia nordestina, denominação gerada entre público e artistas, estes músicos despontam no limiar da década de 1970, logo na esteira do tropicalismo. Alguns marcos construíram essa história. Alceu Valença e Geraldo Azevedo convidaram Rogério Duprat (1932-2006) pra orquestrar algumas faixas de Quadrafônico, de 1972. Pelas mãos do maestro, a dupla revirou a psicodelia através de ritmos como coco, viola caipira e rock.
O Udigrudi, movimento contra-cultural recifense, conciliava rock psicodélico e música regional. Reverberava também peças teatrais, textos, cinema, artes plásticas e até artesanato. Conhecida por artistas e intelectuais da cidade, a Fábrica de Discos Rozenblit deu vez a esta turma. Única grande gravadora brasileira localizada fora do eixo Sul-Sudeste do País, funcionou no Recife entre 1954 e 1984.
Um ano depois de Quadrafônico, a gravadora produziu Satwa (tomado pelos fãs pernambucanos como o primeiro disco de rock psicodélico independente gravado no Brasil), de Lula Cortês e Lailson, e Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol, de Lula Cortês e Zé Ramalho. Este trabalho incluiu um time de primeira. Além dos já citados Geraldo Azevedo e Alceu Valença, contou com participações dos guitarristas Ivson Wanderley, Paulo Rafael e do flautista Zé da Flauta, músicos da Ave Sangria.
Outros destaques dessa safra de realizadores são Flaviola e o Bando do Sol (1974), Marconi Notaro - No Sub Reino Dos Metazoários (1974) e Jardim da Infância (1977), de Robertinho de Recife.
O Ave Sangria refletia esse momento efervescente. Inicialmente foram batizados Tamarineira Village - nome que mistura a referência a hospital psiquiátrico localizado na Vila dos Comerciários, onde a maioria dos músicos morava, com o nome do bairro Greenwich Village (seminal ponto de encontro para a contracultura nova-iorquina).
Durante 1973, o grupo chegou a se apresentar com esse nome em cidades como Salvador, Natal e João Pessoa.
Contrato
Após o sucesso dos Secos & Molhados e dos Novos Baianos, as gravadoras nacionais abriram as portas para experimentações desse tipo. No fim de 1973, a Continental chegou a Recife, viu um show do Tamarineira Village e ofereceu a eles um contrato para gravar um disco.
Foram feitas duas exigências: primeiro que a banda trocasse de nome (Tamarineira Village soava estranho demais) e que houvesse uma formação definitiva para o grupo. Foi onde se estabeleceu o núcleo fundamental da banda, composto por Marco Polo (vocais), Ivson Wanderley (guitarra solo e violão), Paulo Raphael (guitarra base, sintetizador, violão, vocal), Almir de Oliveira (baixo), Israel Semente (bateria) e Agrício Noya (percussão).
Em maio de 1974, partem rumo ao Rio de Janeiro para gravar o primeiro e último disco da carreira da banda.
As condições de confecção do álbum foram precárias. Além da inexperiência com estúdios, os integrantes suaram a camisa com apenas uma semana de trabalho e isso reverberou decisivamente no produto final. Nesse prazo de tempo registraram 11 canções e um instrumental pensado por Ivson (a faixa "Sob o Sol de Satã"). Lançado em junho,
Ave Sangria contou com produção de Márcio Antonucci (1945-2014), conhecido no meio artístico da época pela bem-sucedida dupla da jovem Guarda, Os Vips. O som não carregava a crueza e a pegada das apresentações ao vivo da Ave Sangria, e foi considerado comportado e "engomado" demais. A inabilidade de Antonucci em trabalhar com esse tipo de sonoridade, segundo os integrantes, seria um fator.
Por sua vez, em entrevista ao jornalista pernambucano José Teles, autor entre outros livros de Do Frevo ao Mangue Beat (2000), o produtor negou qualquer interferência da Continental no som do Ave Sangria. A culpa teria sido da baixa qualidade de captação do estúdio.
Censura
Ave Sangria angariou boa circulação até mesmo nas rádios da conservadora Recife. Entre as músicas do grupo, a primeira faixa do lado B, "Seu Valdir" atingiu o 11º lugar na Super Parada Global, da Rádio Globo. Foi justamente essa canção que ferveu a mente dos censores. A letra, uma suposta declaração de amor entre dois homens, foi demais para o Departamento de Censura da Polícia Federal.
Com apenas um mês e meio de vendas nas lojas, o LP foi proibido e os exemplares que ainda não tinham sido vendidos foram recolhidos das lojas. O disco chegou a ser relançado em dezembro sem "Seu Valdir", porém o estrago já estava feito contra aqueles cabeludos.
A censura significou um prejuízo imediato para gravadora. O Ave Sangria tinha contrato para mais um disco, mas a ideia foi engavetada pelos empresários. Um maldição caía sobre a banda e dificilmente outro estúdio iria querer gravar com o grupo.
A mítica ave chegou a fazer mais alguns poucos shows depois - os dois últimos foram os do projeto Perfumes Y Baratchos, que juntou 2500 pessoas por dois dias seguidos em um teatro que só cabiam 900 pagantes. O áudio dessa apresentação foi resgatado e lançado em disco anos depois.
O silêncio provocado pela opressão ainda ecoa na memória do grupo. A Ave Sangria entrou com um requerimento que pede anistia e reparação pelos danos sofridos pela censura que ocasionou o fim do grupo. "É muito estranho o que acontece no Brasil e no mundo. Pessoas que pedem a volta da Ditadura Militar não tem a pálida noção do que aquilo representou. Entramos na justiça mais pelo efeito simbólico do que na tentativa de ganhar algum dinheiro. Eles cortaram uma careira que era crescente, proibiram o disco, castraram nossa música. Propomos essa forma de protesto, conta o vocalista.
Da formação original, os sessentões Marco Polo, Almir de Oliveira (violão e voz) e Paulo Rafael (viola e guitarra) se unem aos músicos Juliano Holanda (baixo), Junior do Jarro (bateria) e Gilú Amaral (percussão) para construir esse novo voo e batalha da Ave Sangria.
Shows
Abre a "Noite Psicodelia do Sertão" a banda Trovador Eletrônico, de Sobral, com o show Outros cearenses, cujo repertório reúne canções autorais e versões de músicas de artistas que são influência para a banda - como Daniel Groove, Soledad e Cidadão Instigado, além das canções do Pessoal do Ceará.
Natural do Crato, Abidoral Jamacaru é um dos mais reconhecidos representantes da música popular produzida na região do Cariri. Teve participação fundamental nos movimentos artísticos contraculturais da década de 1970 no Ceará, cuja intenção era aproximar regional e universal. No show do Dragão, Abidoral Jamacaru & Banda seguem essa vertente, convidando o público a girar em cirandas, a dançar na batida do côco e a sentir a força dos riffs do rock e do blues.
Mais informações:
Noite Psicodelia do Sertão, com Ave Sangria, Abidoral Jamacaru e Trovador Eletrônico, no Anfiteatro do CDMAC (R. Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema) Gratuito (retirada de ingressos liberada 2h antes, na bilheteria do Dragão - 1 ingresso por pessoa) Contato: (85) 3488.8600
26 março 2011 • Velório de corpo de Lula Côrtes será na Câmara Municipal
A psicodelia pernambucana revivida no palco
Arquivos do Próprio Bol$o / 1972 Facebook
Show sábado, no MAR, reúne músicos do movimento experimental que mobilizou Recife nos anos 1970 e ainda ecoa na produção atual
Silvio Essinger
O Globo 29/03/14
RIO - Se o Nordeste teve algo próximo de um Woodstock, foi a Feira Experimental de Música. Realizada em 11 de novembro de 1972, no distrito de Fazenda Nova, no mesmo Teatro Nova Jerusalém onde todo ano é encenada a Paixão de Cristo, o evento reuniu, na plateia e no palco, um grupo de jovens radicados em Recife que buscava novas formas de expressão — musical, cênica, comportamental — e que mais tarde produziria alguns dos discos mais cultuados da psicodelia brasileira.
No sábado, dentro das comemorações do primeiro aniversário do Museu de Arte do Rio (MAR), acontece a partir das 19h30m um encontro de alguns dos nomes mais importantes da cena para relembrar suas criações musicais. Para marcar o último final de semana da exposição “Pernambuco experimental”, Tiago Araripe (do coletivo Nuvem 33), Lailson Cavalcanti (das bandas Satwa e Phetus), Marco Polo (do Tamarineira Village e do Ave Sangria) e Flávio de Lira (do Flaviola e o Bando do Sol) estarão pela primeira vez, enfim, juntos. A noite terá abertura do artista Paulo Bruscky, com a performance “Parto de música”.
Cearense, Tiago Araripe conta ter encontrado, ao chegar a Recife, no começo dos anos 1970, um ambiente de inquietação pós-tropicalista, com ares de contracultura, encarnado pelos happenings do Laboratório de Sons Estranhos (LSE), do qual fazia parte um guitarrista chamado Robertinho de Recife.
— Eu lia muita ficção científica na época e escrevi uma novela chamada “Nuvem 33”, que acabaria dando nome a esse grupo performático de atores, músicos e artistas plásticos — diz o músico. — Fizemos um show no Teatro do Parque, que se chamou “Retreta eletrônica”. Era aberto a todos os músicos e não tinha hora para terminar.
Em 1972, Lailson, que contava apenas 19 anos de idade e era um curioso pela cena, foi convocado para organizar a Feira Experimental de Música.
— A diferença é que Woodstock aconteceu de dia. Lá (em Pernambuco), foi do pôr ao nascer do sol, com portas abertas e gente vinda de vários estados — recorda-se ele, que durante o festival conheceu o seu mais importante parceiro, Lula Côrtes. — Ele tinha acabado de voltar de Marrocos, e eu, do Sul dos Estados Unidos. Em janeiro de 1973, nós lançamos “Satwa”, o primeiro LP independente do Brasil. Era uma mistura do som do Oriente com o do Ocidente, principalmente do blues. Um disco instrumental, para não ter que levar as letras à Polícia Federal.
Quando Lula (falecido em 2011) se bandeou para outros projetos — como o estranhíssimo LP Paêbirú, lançado em 1975, em parceria com um ainda desconhecido Zé Ramalho —, Lailson criou o Phetus, grupo mais progressivo e barroco, com o guitarrista Paulo Rafael e Zé da Flauta. “Seria o que hoje a gente chama de world music”, diz ele.
Misteriosamente, todos os registros do trio na época sumiram ou foram apagados. No entanto, Lailson conseguiu recuperar algumas das canções, como “Vacas roxas”, que será tocada no MAR por ele, Paulo e Zé, junto com músicas de “Satwa”.
Presente à Feira Experimental, o poeta, jornalista e cantor Marco Polo criou o grupo Tamarineira Village, que, mais tarde, para não precisar ficar explicando as razões de seu nome, acabaria sendo rebatizado de Ave Sangria.
— A gente fazia uma fusão da música tradicional do Nordeste com o rock — conta Marco. — Era uma coisa chocante na época ter uma banda influenciada por Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Beatles, Rolling Stones e Led Zeppelin.
Marco Polo chegou a vir ao Rio para gravar um disco com o Ave Sangria, cujo destaque foi o samba de breque “Seu Waldir” (“Seu Waldir, o senhor/ magoou meu coração/ fazer isso comigo, Seu Waldir/ isso não se faz, não”):
— Era uma música que eu fiz para a Marília Pêra cantar. Mas aí ela não quis, e então resolvi eu mesmo cantar, para dar uma peitada no machismo pernambucano. Reza a lenda que a mulher de um general ouviu a música, achou um absurdo, e ela foi censurada. Pouco depois disso, a banda acabou.
Ao lado dos integrantes originais Paulo Rafael e Almir Oliveira (baixo), Marco Polo reviveu o Ave Sangria em 2011, no festival catarinense Psicodália:
— Foi impressionante, o pessoal cantava todas as músicas do disco. E há hoje em Pernambuco bandas como Anjo Gabriel (cujos integrantes acompanham o trio na nova versão do Ave Sangria), Tagore e Dunas do Barato que promovem um ressurgimento da estética psicodélica, tendo a gente como referência.
Hoje radicado no Rio, diretor musical de espetáculos de teatro como “Dzi Croquettes em bandália”, Flávio de Lira nem pensava em voltar ao grupo Flaviola e o Bando do Sol (que teve participações de Lula Côrtes e Robertinho de Recife). Reeditado nos anos 2000 (junto com “Satwa” e “Paêbirú”) pelos selos Time Lag (EUA) e Mr. Bongo (Inglaterra), ele conquistou novos fãs — o que animou Flávio a retomar canções como “O tempo” e “Palavras”.
— Se tivesse feito apenas as músicas desse disco, teria deixado para lá e pedido para um outro cantar. Tenho muitas composições novas — avisa.
Foto: Ave Sangria
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