NO PALCO, OS MUTANTES E O TERÇO HOMENAGEIAM OS BEATLES (1977)
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24 DE ABRIL DE 1977
BEATLES AO VIVO EM DISCO E NO PALCO
texto de mário pazcheco
revisão de roberto gicello
assessoria de dado nunes
fotos de clarissa lambert
Eu farei o possível e o impossível para relembrar essa loucura
• Naquele domingo, compramos o jornal e, antes de sujar os dedos nas páginas de esporte e de bandoleirismo explícito, folheamos o caderno de aluguel de imóveis. Mudaríamos para as QNJ de Taguatinga. Depois, sim, eu retirei da edição os nomes das escalações dos jogadores de futebol e colei extasiado nos botões. Inocente, puro e besta, ainda passeando pelo jornal, li uma nota sobre o show dos Mutantes na ACBB. Eu queria muito ter ido ao show (deles e d’O Terço). Alguém me levou – o milagre aconteceu.
Populares entre a garotada brasileira, “Os Mutantes” em 1977 eram tão famosos como Beatles.
Desafiando uma remota possibilidade, Brasília teve o privilégio de assistir aos Beatles ressurrectos pelos Mutantes e pelo O Terço. A cidade (que ainda não se tornara a capital do rock nacional, mas já era extorquida pelo frêmito de guitarras e baterias) retribuiu o regalo de forma escalafobética e alucinada, dançando o tempo todo da apresentação – uma manifestação apoteótica e talvez somente vista nesse concerto (inusitadamente realizado em ginásio coberto, como bailinhos dançantes de formatura de ensino médio).
No Ginásio da AABB a febre da Beatlemania – ainda inflamada na memória coletiva daquela geração – foi mais do que comprovada. Não há registro de uma apresentação de qualquer artista (ou grupo) em Brasília que tenha conseguido mexer tanto com o público. Do início ao fim do espetáculo, o ginásio inteiro suou, suingou, saracoteou e guardou lembranças indeléveis para gastar nos duros dias das idades avançadas. Nas arquibancadas, nas galerias e na quadra, a meninada botava os bichos pra fora dançando freneticamente.
Mutantes
Sérgio Dias, guitarra Fender
Paul de Castro, contrabaixo Giannini Jazz Bass
Rui Motta, bateria Ludwig dupla
Luciano Alves, Mini Moog, Mini Korg, pedais
Primeiro os Mutantes fizeram o show cantando e tocando músicas do seu último disco (Ao Vivo) e algumas composições novas. Como Sérgio Hinds foi acometido por uma febre altíssima momentos antes da apresentação e teve de ser levado às pressas para o hospital, o público não pode curtir o som do conjunto carioca isoladamente. Deste modo, a segunda parte do show foi consagrada a um magnificente tributo em homenagem aos Beatles, com os Mutantes e o Terço em parceria transcendental.
O Terço
Flávio Venturini, Rhodes Fender
Sérgio Magrão, Fender Jazz Bass
Luiz Moreno, bateria Ludwig dupla
O bombardeio começou com “She Loves You”, “Day Tripper”, “Yesterday”, “Help!”. Em “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts CB”, as fardas do Sargento Pimenta luziam, e o show seguiu pela toada de "Magical Mystery Tour" e outros grandes sucessos dos Cavaleiros de Sua Majestade.
Momento em que Flávio Venturini canta 'Yesterday', acompanhado pelo violão de Sergio Dias!
Na sinestesia de mundos e épocas, muito provavelmente os dois grupos avistaram, desde o palco, os alaridos coloridos da plateia aloucada, magnetizada pelo apelo do “Get back, get back / To where you once belonged...” – magia presente e exuberante no solo de Sérgio Dias. A audiência, privilegiada, redimiu-se por alguns minutos de meteórica introspecção ao vocal solo de Flávio Venturini em “Let It Be”. Incrível! “Uma loucura!”, como observou uma menininha (destas que os frangotes chamam de “gatinha”) que dançava como se não houvesse amanhã.
Os Mutantes e o Terço fizeram o Ginásio da AABB viver um autêntico happening, talvez o último destas grandes bandas. O final apoteótico, com todo mundo cantando, dançando, batendo palmas, assoviando gritando e se manifestando de outras maneiras menos convencionais, aconteceu com os dois grupos atacando de “Hey Jude”, uma das composições mais bonitas dos Beatles. Para todos, valeu a pena ter ido à AABB para ver Como Nos Bons Tempos. Histeria coletiva é uma expressão gasta, mas, para efeito imaginativo, confere um quê de verossimilhança ao que se viveu naquela noite brasiliense.
Os grupos brasileiros de rock tiveram seus corações espetados pela cruz da inquisição da crítica nacional – carola e ensimesmada, a cara da classe média botocuda. Num período histórico de resistência, a mídia exercia a incurável patrulha ideológica e se excedia, como se excede tudo que é carente, seja de pão, seja de inspiração. As resenhas do show foram parcas e porcas; a destoante foi a de Irlam Rocha Lima, do Correio Braziliense que se esbaldou, mas não insultou.
Não dá pra saber se os caras da imprensa encangada às gravadoras tinham razão ou propositalmente sabiam no que estavam se metendo. A mídia impressa que depende dos resultados de vendagem de suas edições se afundou num messianismo compulsivo, digo indulgente. E os bons tempos foram embora pra Passárgada. A crítica impiedosa e flibusteira estaria certa? Era justo seu veredito sentenciando aquela linha melódica progressista à morte natural? Percebe-se que seus críticos de plantão não apuraram os ouvidos com suficiente interesse quando escutaram os novos discos, os quais mostravam revelavam, se não um triunfal, pelo menos um obstinado retorno ao campo minado de suas escolhas estéticas.
Essa mídia teria sentido os tremores do punk-rock ou o sismógrafo estava escangalhado e seus ponteiros tortos viraram mais um item da coleção de desafetos interessados em dividir o palco com seu ídolos?
Em Brasília, o público se impressionou com a espuma colorida flutuante, suspensa em frente ao palco e com o calibre dos decibéis. Não estavam interessados nas colunas de jornais, mas na interpretação de Sérgio Dias, cantando “Lady Madonna” e de “Penny Lane” com o coração e demais músculos.
Em Brasília, não houve um corpo de policiais ostensivamente enviados para garantir o clima de paz e amor. Não houve ingressos com preços pra todo gosto nem cadeiras numeradas revestidas de veludo.
Sintomaticamente, na capital federal, tudo voou pelos ares, num distúrbio dissipado de jovens apocalípticos, desintegrados. Foi proibido proibir numa sucessão de excessos. Pulou-se, dançou-se, fumou-se – sem depredação. E muitos doidos e inebriados voltaram para casa, para ouvir mais Beatles. Tudo só iê-iê-iê e adrenalina.
SINCRETISMO
Pelas calçadas dos teatros em Londres ou Nova Iorque, cartazes estampavam o espetáculo Beatlemania. Uma peça que conduzia o público ao chororô, ao histerismo, ao êxtase e à total entrega aos quatro cabeludos de Liverpool. Na verdade, eram bandas meia-boca sem as virtudes e o virtuosismo de um Mutantes ou O Terço. Apresentações onde reluziam coberturas de plástico, em filmes de perucas falsas projetados sobre nossas cabeças. O Brasil seguiu no vácuo dessa nostalgia, economizando dólares com uma produção caseira – em brilho, digna do Municipal –, mas aquém do furor cosmogônico das grandes plateias.
BEATLES VERSUS 17.000 PULMÕES JOVENS
Acabado, o espetáculo Como Nos Bons Tempos, o show deve continuar: basta colocar na vitrola o recém-lançado LP The Beatles At The Hollywood Bowl, o primeiro e único disco oficial de gravações ao vivo do grupo em concerto. O problema é que o fato de ser oficial não ajuda muito na qualidade técnica do som, o qual, em última análise, prejudica o resultado final do que é mais importante: a música (e a musicalidade).
Gravados em duas oportunidade – 23 de agosto de 1964 e 30 de agosto de 1965 – o LP capta imperturbavelmente a Beatlemania no apogeu: menininhas desmaiando, as histerias e convulsões, gritos agudos e lágrimas em torrentes de paixão. Esse gênero de coisas significa muito barulho e pouca música. E, em que pesem os esforços do produtor George Martin e do engenheiro de remixagem, Geoff Emerick, quem quiser realmente ouvir o som dos Beatles no disco acaba ficando na mão. Pouco adiantou o experiente George Martin reclamar da posição dos microfones mais direcionados para captar a plateia.
Doze anos depois, Martin trata logo de se justificar na contracapa do LP: “Para falar francamente, eu não era favorável à gravação do concerto. Tinha certeza que não poderia ficar tão boa quanto as que fazíamos no estúdio, mas resolvemos tentar assim mesmo. Tecnicamente os resultados foram desapontadores, as condições de trabalho dos engenheiros foram extremamente difíceis. O caos – quase posso dizer pânico – que reinava nesses concertos era inacreditável, a menos que você estivesse lá. Os gritos incessantes de 17.000 pulmões jovens e saudáveis tornariam inaudível até mesmo um avião a jato”.
De uma forma ou de outra, The Beatles At The Hollywood Bowl funciona como documento de uma época das mais interessantes do quarteto – aquela em que eles curtiam ao máximo a condição de superestrelas e em que ainda eram considerados o suprassumo do conjunto popular, que buscava realmente o contato com o público. Pelo disco, você ouve e percebe que eram rocks que faziam a cabeça da garotada sem grandes macetes, como "Twist And Shout", "Dizzy Miss Lizzy", "Boys", "Roll Over Beethoven", "Long Tall Sally", ao lado de canções um pouquinho mais sofisticadas da dupla Lennon & McCartney, como "Ticket To Ride", "Help!", "All My Loving", "Things We Said".
PARCIALMENTE INÉDITO
A legião de beatlemaníacos que batia ponto na porta das importadoras, desde 1973, conhecia o show do Hollywod Bowl de 1964. E o maior feito do DJ Big Boy foi lançar pela etiqueta Napoleon, no Brasil, o LP And The Beatles Were Born, com apenas um lado da gravação pirata do show de 1964. Foi o primeiro disco pirata nacional. Nele escutam-se até algumas falas cortadas do lançamento oficial. E o mais engraçado é que a matriz desse pirata pertenceu a algum dos quatro Beatles que, separadamente, ganhou uma copia da apresentação gravada pela Capitol, o selo americano que distribuía os discos da banda nos Estados Unidos.
The Beatles At The Hollywood Bowl é recomendável, portanto, a todos os fãs doentios e àqueles que desejem conhecer o clima de ouriço de um concerto no início dos louquérrimos 60s.