DISCOS: ARNALDO & PATRULHA DO ESPAÇO & RAUL SEIXAS (1988)
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O pesadelo múltiplo e a lucidez da loucura
(Mário Pazcheco*)
Discos
A Pedra do Gênesis - Raul Seixas
Faremos uma noitada excelente... - Arnaldo & a Patrulha do Espaço
Disco Voador - Arnaldo Baptista
Raul Seixas e Arnaldo Baptista são dois experientes e controversos autores de um capítulo à parte na história do rock nacional. Arnaldo é o mutante melancólico, que se nega a fazer concessões em troca do sucesso fácil. Já Raul, é herdeiro de Elvis Presley; o homem que conhece cada esquina do rock'n'roll; o artista que gravou um LP de rocks antigos antes de John Lennon. Ambos são ex-produtores, com carreiras acidentadas e abaladas por retiros, internações, detenções, resultando em altos e baixos. Se expressam em outras línguas (francês e inglês), pois para eles, o lado artístico exige um complemento e a liberdade de se sentir universal.
A Pedra do Gênesis, de Raul Seixas abre com rock'n'roll; o ritmo que predomina é o shang-a-lang; a voz está diferente, mais forte, em interpretações muito pessoais. Sua ironia está à pleno vapor. São cenas que conhecemos de outros discos seus, e que agora, ele reclia, atualizando A Sociedade Alternativa em A lei. Deve-se destacar aí que o mandamento "faze o que tu queres", não é exatamente o mesmo que "Faze aquilo de que gostas" mas sim "descobre o modo de vida mais de acordo com tua natureza íntima e então vive intensamente". As histórias são bem brasileiras como é o caso de Check-up e Fazendo o que o diabo gosta mostrando cenas de um casamento que deu certo. Ambas poderiam ter sido gravadas por qualquer dupla caipira.
Lado b: depois de cantar Direito de viajar sem passaporte e "reler Alice no país das maravilhas", Raul renuncia a todas as drogas na engraçadíssima: Não quero andar mais na contramão - I don't really need you anymore é repetitiva, e também não precisava ser cantada em inglês. (Não acrescenta nada). Apenas preenche esse lado um country eletrificado a la Carl Perkins. Lua bonita é romantismo anos 50, onde ele preserva o sotaque. As letras atingem uma certa loucura em Senhora dona Persona, um pesadelo encerrado com Areia da ampulheta, releitura de Gita, onde aqui o autor é o tempo. São músicas com breves mensagens e comentários rabiscados a qualquer hora da noite ou do dia, ao sabor da (ins) piração. Após um curto intervalo, ouve-se outra mensagem, que passa para a seguinte chegando ao fim, inicia o outro lado, altere as faixas para uma segunda audição para não incidir em monotonia. Raul continua fiel a sua herança de produtor: não se mexe em time que está ganhando.
Passemos agora a Arnaldo Baptista; um artista com um pé no passado e outro no futuro em Faremos uma noitada excelente... O disco é o registro, com 10 anos de atraso, de sua passagem pelo Patrulha do Espaço, um produto paulista, com vigor de garagem, um som saturado e lindo, apesar da qualidade da gravação ser precária. Emergindo da ciência, um tema de piano em tom progressista. A voz afiada avisa: "Eu não sei porque fui me envolver/Eu não sei porque fui sofrer", de repente um riff stoniano do mais frenético rock'n'roll é mesclado à mais pura melodia de uma caixinha de música, é a ousadia do mutante.
Um pouco assustador, tem o sabor sangrento de um blues marcado por uma guitarra chorada: "Como vai você/Qual o seu nome mesmo?", toda a sinceridade de uma banda entrosada e o profético verso: "Mas há momentos na vida em que tudo parece que vai acabar", Arnaldo está cantando ao vivo sem truques ou correções. Sua música promove aquela magia contagiante ausente por muito tempo dos discos e shows.
I feel in love one day, balada pungente: "Eu me fiz de tolo/Me mostre o caminho". Cowboy é o momento da Patrulha, hard rock, a proposta que seria levada ao ápice pela banda após a saída de Arnaldo; e um longo solo de bateria com phaser põe fim. O show no disco encerra com Hoje de manhã eu acordei (apesar de acordado ele ainda se mantém em dúvidas e um teclado jazz põe fim às dúvidas).
Completadas as gravações de seu segundo álbum solo Singin' alone em 1981, no último dia do ano, Arnaldo atirava-se do 3.º andar de uma clínica psiquiátrica, tudo igual à letra de O suicida, primeiro compacto que ele gravou com Rita e Sérgio, falando de um cara que se joga do viaduto do Chá. Mais uma vez a vida imita a arte. O disco que veio depois do acidente é Disco Voador, que não chegou à imprensa (é mal gravado, carente e masterizado em dois canais). Expõe o pesadelo vivido, documento que motra Arnaldo de volta às atividades. Ele está mais maduro e feliz. O mergulho na ciência continua em Eu.
O pesadelo múltiplo e a lucidez da loucura, in JOSÉ (Jornal da Semana Inteira - setembro de 1988)
Lembranças
"Acompanhei a evolução do 'Arnaldo & Patrulha do Espaço', que Cokinho, no baixo e o Arnaldo iniciaram.
Os ensaios eram na loja de móveis Oca, do pai do Junior (bateria) na rua Augusta. Na guitarra já era o Dudu, junto ao clavinete do Arnaldo. O lugar tinha uma acustica privilegiada, cheio de estofados e divisórias, ótimo para ensaiar uma rock band. A presença musical e a personalidade do Cokinho eram essenciais para aquele grupo funcionar. (...)
"Destes ensaios resultou um dos concertos mais instigantes e criativos que presenciei: a estreia da Patrulha no Teatro Treze de Maio. O Arnaldo estava atrasado, o público e a banda impacientes. Resolveram iniciar o show só os três. De repente, o Arnaldo entra no meio da primeira música, dançando. Uma dança alucinante, improvisada. Uma amostra do viria a seguir. Daí pra frente foi uma cascata de harmonias díspares, cacofonias, batidas poderosas, driving bass, canto gutural, e nada, mas nada convencional. Uma música invadia a outra, uns estavam terminando, mas outros já estavam na próxima. Uma avalanche. O público estava de boca aberta. Eu sorria extasiado".
Fabio Gasparini (Mona, Sunday, Scaladacida, Magazine)