A LENDA DA "AVE MACABRA!"
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Fui convidado uma única vez para o abençoado ensaio da Ave Macabra! em Assombrado City. O lugar escolhido era um galpão mal acabado, onde o carismático líder-cantor atuava como vigia. Desde o início, notei que o portão de madeira estava acorrentado, sinalizando um cuidado fora do comum. Algum tempo depois, fiquei sabendo que a banda tinha sido alvo de uma batida policial, pois um molecote detido havia mencionado aquele local como ponto de encontro.
A verdade veio à tona mais tarde. No começo, a ideia era passar a noite naquela construção, afogados em garrafões de vinho e ver o dia nascer ali mesmo. Transformar aquele sábado numa noite inesquecível, cheia de animação. Mas com tanta gente, o curto ensaio se transformou em festa do rock. O primeiro ônibus da manhã ainda estava longe de chegar na rodoviária quando essa farrança aconteceu.
Johnny Marcello Boy era completamente obcecado por gírias como "Sabe, Man!", "Lembra daquela vez?", "E aquela gata!?", e no meio dessas expressões curtas, soltava um grito escandaloso, seguido de um blues falado que mudava constantemente. De repente, ele soltava um grito à la Jim Morrison e começava uma versão com todo vigor de "Ando Meio Desligado": Eu nem vejo a hora de lhe dizer / Aquilo tudo que eu decorei / E depois o beijo que eu já sonhei / Você vai sentir, mas, por favor /Não leve a mal / Eu só quero que você me queira / Não leve a mal. Nessa estrofe inicial Johnny Marcello alisava a parte mais sensual do corpo, fixamente olhando para as meninas.
Num piscar de olhos, a música é invadida pelo riff de "Paranoid", e eu simplesmente surto de empolgação! Johnny, o vocalista, começa a adaptar a letra para o português e eu me pego gritando com todas as minhas forças: "Você pode me ajudar? Ajudar a minha mente?". Johnny se contorce e cambaleia no palco, num momento ele até simula que uma arma está apontada para sua cabeça, fazendo meu coração quase sair pela boca. O lugar está abarrotado de pessoas, a energia é eletrizante, e a caipirinha vai de mão em mão, alimentando ainda mais a atmosfera já frenética.
O desenho de um corvo no bumbo da bateria era impressionante, e todos gritavam "Ave Macabra!", "Ave Macabra!" No centro do palco, Johnny assume uma postura imponente, com as pernas afastadas e o corpo levemente inclinado para a frente, como se estivesse segurando o guidão de uma moto. Ele realiza movimentos firmes, simulando o ato de pisar no pedal de partida de uma moto imaginária. Acelerando e soltando o acelerador, em sincronia com o som característico de uma moto feito pela boca. Johnny anima a multidão a embarcar em uma viagem e começa a cantar: "Get your motor runnin' / Head out on the highway / Lookin' for adventure." O clima está eletrizante, com casais encostados na parede de madeira do fundo do palco.
A noite era gélida, extremamente gélida, ao meu lado um indivíduo com um poncho e bigodes à la mexicana! Quase todos usavam botas. As garotas estavam vestindo blusas bonitas e cachecóis. Eu estava usando um paletó marrom que combinava com as minhas botas de cano curto. Em vez de meias, eu estava usando um meião de jogador de futebol. E porque a calça era um número maior, eu tinha que usá-la com um calção por cima da cueca. Minha blusa com gola alta era azul marinho e eu sabia que essa combinação de roupas não iria passar despercebida por muito tempo. A solução era sair para tomar um ar fresco e alguns tomaram a iniciativa de ir embora, e eu não fui o único com essa ideia. Quando sai, Ave, Macabra tocava nos acordes de "Gimme Shelter". Fiquei imaginando quais músicas eles continuariam tocado, talvez "Dandelion"? Ou teriam se imergido em algum tema inspirado no estilo do Pink Floyd?
Conheci "Nem" em um show de rock na Asa Norte. Foi ele quem me convidou para o ensaio da Ave Macabra. Descobri que, seu nome era Renê e que nos encontraríamos em Sobradinho, onde ele me ofereceu um lugar para ficar em sua casa. Eu estava tão imerso no momento que quase esqueci do "Nem" a quem costumava chamar de "Estou Nem aí". Ele chegou pedalando uma bicicleta branca com pneus pretos de faixa vermelha, e foi incrivelmente gentil. Para minha surpresa, descobrimos que tínhamos a mesma idade. "Nem" inicialmente me contou sobre a "Feto Podre", outra banda de Sobradinho. O nome, apesar de assustador, nada tinha de punk. A peculiaridade da banda estava em seu estilo, que transitava pelo rhythm and blues, entoando blues lisérgicos de Janis Joplin. Infelizmente, nunca tive a oportunidade de assisti-los.
No palco, o enérgico Johnny Marcello tirou uma gaita do bolso e começou a tocar "The Wizard". Ficamos todos hipnotizados e, aproveitando o clima da gaita, ele soltou um impressionante "Roadhouse blues". Foi nesse momento que ele nos avisou que estava na última música da noite, "Whole lotta Rosie", e não havia palavras para descrever a figura voluptuosa de Rosie ("42, 39 e 56"). Houve uma demanda por mais: "Breaking all the rules", e o público demorava a retornar à realidade. O galpão era pequeno e todo feito de madeira, com mesas e bancos apertados, e um pequeno palco na frente com os quatro músicos apertados e uma iluminação fraca. Suava-se muito e os corpos se movimentavam freneticamente.
Ao ar livre, um fogo feito de pedaços de papel de saco de cimento ardia. Como eu fui um dos primeiros a chegar, tive a oportunidade de conversar com algumas pessoas. Johnny Marcello havia deixado São Paulo há quase um ano onde viveu de maneira precária, dormindo todas as noites em um quarto estranho de uma pensão. Para ele, viver bêbado na guarita era como um oásis, enquanto economizava dinheiro do aluguel para se mudar para o sul ou norte do Brasil. Ele trabalhava no turno das 7 da manhã às 7 da noite, quando era substituído por outro vigia. O único problema era que a polícia passava quase todas as noites para verificar o movimento dos que chegavam de carona para conversar.
O guitarrista se chamava Ted e ele me contou que sua amada guitarra pertencia a um dos grandes ícones da Tropicália e havia sofrido um acidente. Ele me disse que era como a guitarra noiva de Frankenstein, uma Gibson padrão e possivelmente original, com uma alavanca de tremolo que ele habilmente usava. Eu nem sabia o que essa alavanca fazia. Ele também mencionou que grande parte da guitarra teve que ser reconstruída e que ele trocou as tarraxas e os botões de controle de volume e tom, conhecidos como knobs. Esses botões costumam ser encontrados no corpo da guitarra, geralmente perto dos captadores.
O baixista, que tocava de forma econômica, tinha um mixer em cima da caixa de graves do contrabaixo, muitas vezes chamada de cabeçote do amplificador. Isso desempenha um papel essencial no sistema de amplificação de um contrabaixo elétrico. Muito tempo depois, descobri que ele era aluno da Escola de Música, e então o baterista começou a tocar seus ritmos.
A noite estava se esgotando nossa paciência, então chegou a hora de ir para a casa do "Nem". Ele, de bicicleta, perguntou se eu me importava de ir em pé na garupa. Descemos como dublês pela gigante alameda mal iluminada, seguindo em linha reta até o portão de uma mansão muito bem iluminada. Mal chegamos, ouvimos o latido feroz de vários cachorros. Na frente da casa, havia um aterro alto e gramado, e no centro, uma piscina. Pensei que era uma casa legal! Continuamos descendo por uma trilha, como se estivéssemos em um parque. Foi quando avistamos uma casinha que parecia ser antiga. Os móveis eram simples, as janelas de madeira, e havia um sofá e um lampião a gás. Foi ali que dormi. No dia seguinte, perguntei que lugar era aquele, e o "Nem" respondeu que ali, na outra margem, tinha acontecido a "Rockonha" há alguns anos atrás. Subimos até o portão de entrada da chácara, e foi quando pude ver que a piscina tinha formato circular, e as paredes também eram circulares, com portas alinhadas em um átrio. E no salão que dava para a piscina, havia uma longa parede de vidro fumê que permitia ver a cena. A casa era cinematográfica!
Após mais uma imersão no submundo do rock, senti-me satisfeito por ter vivenciado dois momentos distintos em uma mesma noite. Sem a parada de ônibus à vista, aguardei o ônibus da marca "Caio" da TCB - Transporte Coletivo de Brasília no asfalto diurno. Na rodoviária, debati-me sobre esperar o restaurante chinês "Dragão" abrir, ansioso por saborear bolinhos primavera acompanhados de uma cerveja preta.
No retorno para casa, os problemas me aguardavam, podendo me surpreender tanto ao chegar quanto ao sair pela praça principal da quadra. Anteriormente, havia defendido um morador de rua, respondendo com uma garrafada ao suposto agressor dele. Agora, a turma deste último estava em meu encalço, motivo pelo qual decidi passar um tempo escondido em Sobradinho.
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"Nem", que havia sumido da cena do rock, acabou mantendo nossa amizade. Muito tempo depois, descobri que a casa onde ele morava era dos pais dele, e que seu pai era responsável pelas filmagens internacionais dos presidentes ditatoriais na antiga república. Eu sabia que a família do "Nem" era protestante. Décadas depois, um amigo em comum revelou que "Nem" era o chefe dele na companhia de seguros. Foi assim que ele me colocou no telefone para desejar boa noite. Respondi: "Que bom que você soube aproveitar as oportunidades que a vida lhe ofereceu."
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Em minhas trocas regulares de correspondências com Johnny Marcello, surpreendentemente, ele se ofereceu para passar alguns dias em Brasília, reavivando a nostalgia da guarita e, quem sabe, resgatando os sons do passado.
Quando Johnny desembarcou do trem, mal pude reconhecê-lo; uma barba eriçada moldava seu rosto, e seu aspecto estava inchado. Não consegui guiá-lo adequadamente nos dias que passamos em minha casa, nas proximidades da cidade. No centro urbano, na padaria, ele consumia diariamente uma mistura de vódica com suco de laranja, deixando para trás uma conta astronômica. Suspeitei que havia mais algum aditivo, talvez LSD. Johnny dedicou seu tempo a escrever em um caderno de capa dura verde, moldando poemas que viriam a se tornar as músicas de seu primeiro trabalho solo.
Após os intensos 10 dias, conduzi Johnny até a estação de trem no Núcleo Bandeirante, pertinho de casa. A experiência foi como conviver com Syd Barrett, mas carregava a essência única de um Júpiter Maçã que, naquele momento, ainda desconhecíamos por completo.
Eu: Poderia nos contar um pouco sobre o significado por trás do nome Ave Macabra e como ele está relacionado com o conceito artístico e filosófico da banda?
Johnny: Claro! Antes "Ave Lúcifer" é uma expressão em latim que significa "Salve, Lúcifer" em português. Em contextos artísticos, literários ou filosóficos, ela carrega ideias simbólicas ou provocativas relacionadas ao conceito de luz e escuridão, rebeldia ou conhecimento proibido. Além de "Ave Lúcifer", existem outras aves, como as Aves Sangria, de Veludo e por fim, a Macabra. Escolhemos esse nome para representar a essência da nossa música, que busca explorar esses temas de forma poética e intrigante
Eu: Como essas referências se conectam com a proposta artística da banda?
Johnny: Ave Macabra evoca uma atmosfera sombria e assustadora, inspiradas na obra de Edgar Allan Poe. Elas adicionam um toque de mistério e melancolia aos nossos temas musicais, criando uma conexão com o lado mais obscuro da experiência humana.
Eu: Interessante! E o uso da figura do Corvo como símbolo da banda, como surgiu essa ideia e qual é a mensagem por trás dela?
Johnny: Inicialmente, eu pensei em transformar a logo da banda em um morcego, mas percebi que isso remeteria demais ao Batman, o que não era nossa intenção. Então, optamos pela figura do Corvo, aumentando a melancolia dos nossos temas musicais. O Corvo é um símbolo associado à morte e, nesse contexto, representaria um homem em luto pela perda de sua amada. Além disso, acredito que a imagem do Corvo falante, que repete incessantemente a palavra "Nunca mais", ou "Never Say Die", em inglês, traz uma mensagem de perseverança diante das adversidades, mesmo em meio à escuridão.
Eu: Entendi. Parece que há muitas camadas conceituais por trás da proposta artística da banda. Como vocês esperam que o público se conecte com essas ideias e mensagens?
Johnny: Nosso objetivo principal é criar uma experiência sensorial e reflexiva para o público através da nossa música e conceito artístico. Esperamos que as pessoas possam se identificar com as emoções transmitidas pelas nossas composições, e que elas sejam estimuladas a refletir sobre questões complexas da existência humana, como o luto, a rebeldia e a busca pelo conhecimento. Queremos despertar curiosidade e provocar pensamentos profundos, proporcionando uma imersão na atmosfera sombria e artística que definem a nossa identidade como banda.)
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Johnny Marcello Boy era quatro anos mais velho que eu, e ele se tornou nosso ídolo, aquele "cara doido" que admirávamos. Eu já o conhecia pessoalmente e por meio de correspondências, e passamos incríveis 10 dias compartilhando o mesmo teto. Naquela época, eu mergulhava nas obras de autores como Bukowski, Kerouac e outros praticamente americanos, mas escapava da influência de Oscar Wilde e Kafka.
Para mim, os verdadeiros inspiradores de Johnny eram claramente Ozzy Osbourne, Jim Morrison, Rob Halford e Freddie Mercury. No entanto, ele me revelou que o verdadeiro ícone para ele era Arnaldo Baptista. Johnny foi o primeiro a me contar sobre o dia em que viu Arnaldo Baptista tocar rocks dos anos 50 e, antes de martelar seu teclado, soltou um grito tão potente que subiu o ânimo de toda a plateia como um termômetro. Foi nesse momento que ele decidiu que queria ser um cantor de rock, corrigindo com um sorriso: "Cantor de mambo".
Além disso, Johnny compartilhou detalhes do último encontro que teve com Arnaldo Baptista, descrevendo o músico com cabelo curto e vestindo uma camiseta com design dos anos 60. A camiseta tinha uma faixa vermelha no pescoço e, descendo pela gola, alternava entre faixas brancas e vermelhas até alcançar a cintura. Ele estava convencido de que aquela camiseta era fabricada, deixando uma marca única no estilo de Arnaldo.
Não sei ao certo, mas depois que Johnny compartilhou comigo sobre Arnaldo Baptista, o músico Mutante, ele se tornou uma presença constante em meus pensamentos. Envolvi-me tanto quanto ele, e essa influência foi como a mais potente droga que poderia me transmitir!