ARNALDO E A PATRULHA DO ESPAÇO (1977-78) ADIOS, BRUXOS: UM POUCO ASSUSTADOR — DEIXE O GRANDE IRMÃO SE AFOGAR NA PIA
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ARNALDO E A PATRULHA DO ESPAÇO
(1977-78)
ADIOS, BRUXOS: UM POUCO ASSUSTADOR — DEIXE O GRANDE IRMÃO SE AFOGAR NA PIA
Nave que viaja ao centro das terras
Hinos para o Céu, portas abertas
O signo vê a verdade
Que em breves momentos
Estarei entre o Céu e a Terra
(Arnaldo Baptista)
O fragmento da letra inédita trata de uma jornada espiritual ou existencial, com ênfase na busca por uma verdade transcendente. O uso de metáforas como "nave", "hinos para o Céu" e "portas abertas" indica um movimento em direção a algo superior ou divino. A ideia de estar "entre o Céu e a Terra" sugere um estado intermediário de transformação, em que o eu lírico está à beira de uma experiência profunda de revelação e transcendência. A estrofe, portanto, reflete a busca por compreensão espiritual e a união entre o material e o espiritual.
Jesus Cristo foi crucificado aos 33, Robert Johnson aos 27, envenenado, Alan Wilson acampou pela última vez aos 27, Jimi Hendrix, revolucionário, aos 27, Janis Joplin, a dramática cantora, aos 27, Jim Morrison, o icônico poeta, tinha 27, Syd Barrett lançou seu último álbum aos 24, Robert Wyatt, baterista paraplégico, aos 27, Paul Kossoff, o guitarrista, tinha apenas 25, Bon Scott, de álcool, aos 33, Ian Curtis, aos 23 anos, tirou a própria vida antes de a banda pisar na América, John Bonham, a lenda da bateria, aos 32, de álcool, John Lennon, assassinado aos 40, Randy Rhoads, o virtuoso guitarrista, aos 25, Jean-Michel Basquiat, o renomado artista plástico, faleceu aos 27 anos devido a uma overdose, Kurt Cobain, tirou a própria vida aos 27, Amy Winehouse, aos 27, de álcool.
No Brasil, os gênios também morrem precocemente: Torquato Neto só tinha 27 quando se imortalizou, Glauber Rocha tinha 42, Arnaldo Baptista sobreviveu após voar aos 33, Marco Antônio Araújo e Renato Russo, só tinham 36.
Entre 1976 e 1979, é impossível saber quantas vezes Arnaldo Baptista navegou entre os extremos da dor e da transcendência. Após sofrer um acidente de carro nos Estados Unidos, retornou ao Brasil...
Naquele período, o Brasil foi marcado por uma luta fervorosa pela transição para a democracia, contra a ditadura e pela anistia aos presos políticos que haviam sido torturados. Nesse momento de turbulência pessoal e psicológica, trocou as pílulas de Orange Sunshine por ansiolíticos, medicamentos que devem ser prescritos por um médico, pois o uso inadequado pode ter efeitos colaterais e interações com outros medicamentos. Durante um período de reclusão, perdeu seu pai e, após o desquite, recomeçou sua vida, casando-se novamente e tornando-se pai pela única vez. Depois de mais uma internação, Arnaldo voltou à sua produção artística, dessa vez com a Patrulha do Espaço.
Em 1977, com a Patrulha do Espaço, na companhia de Kokinho (contrabaixo), Júnior (bateria) e John Flavin (guitarra), Arnaldo vivenciou quatro meses de intensos ensaios entre maio e agosto, culminando na gravação de 13 faixas no estúdio. Menos de um mês antes de uma grande apresentação em setembro, que reunirá bandas e artistas do Cone Sul, a Patrulha do Espaço sofreu a perda de seu guitarrista, que foi substituído por Dudu Chermont. Mesmo assim, a apresentação ocorreu de maneira tumultuada, devido a problemas técnicos na regulagem da mesa de som.
Com a formação: Arnaldo (composições, teclados e voz), Kokinho (contrabaixo), Rolando Castello Jr. (bateria) e Dudu Chermont (guitarra), de setembro de 1977 a maio de 1978, Arnaldo e a Patrulha do Espaço realizaram apresentações de forma constante, como uma gestação criativa. No entanto, ao final desse período, Arnaldo decidiu deixar o grupo. A exaustão emocional e o desgaste de sua saúde mental tornaram insustentável sua permanência na banda, levando-o a essa difícil decisão.
Em 1979, Arnaldo assina o processo legal de separação judicial. Nos anos seguintes, embora tenha participado de breves projetos e criado trilhas sonoras ao piano para teatro experimental, sua produção artística foi marcada por uma série de limitações. Apenas cinco canções inéditas foram registradas:
1. “Cacilda”:
Verdes campos e eu correndo
Só ao encontro dos problemas
Pirações que vão embora
Nessa estrada já trilhada
Há um lugar em que eu vivo
Só com os sinos
Da vereda tropical
Mas se eu sei que um dia eu vou
De foguete até a lua
Não me esquecerei de você
Pois ainda te amo meu bem
Cacilda, Cacilda
Te encontro atrás de uma palmeira
Verdes campos e eu correndo...
"Cacilda" introduz um contraste emocional, indicando que, mesmo cercado por um ambiente idealizado, o eu lírico não consegue fugir de seus desafios internos. Já a "estrada já trilhada" remete a um caminho familiar, possivelmente marcado por experiências recorrentes. Essa imagem pode transmitir tanto uma sensação de segurança quanto de exaustão, dependendo da perspectiva.
O lugar descrito surge como uma metáfora simbólica e íntima, talvez representando o estado mental ou emocional do eu lírico. Os "sinos" e a "vereda tropical" sugerem um cenário sereno e quase espiritual, mas também permeado de solidão, reforçando a atmosfera de introspecção e isolamento.
2. “Ciborg”:
Numa cápsula que deflagra todo o medo de explodir
Na espiral da elipse curta do abismo material
E no beijo estupendo, o que estou a fazer aqui?
A estrofe combina medo existencial e busca por transcendência, com metáforas que evocam movimento, perigo e conflito interno em um cenário futurista. A pergunta final, "o que estou a fazer aqui?", reforça o dilema humano e filosófico, condensando os temas centrais da letra de forma poderosa.
3. “Onda da Morte”:
É... o imenso gozo dos titãs
De aço e cabos de meadas infindáveis
De crianças tristes
Risos que soam depois do fim
E eu nem sei que fim levou o meu
Risos...
Essa estrofe parece explorar o contraste entre forças grandiosas e impessoais (titãs de aço, meadas infindáveis) e a vulnerabilidade humana (crianças tristes, risos). É um retrato de um mundo mecanizado e desconectado, onde o eu lírico luta para encontrar seu lugar e significado. A presença de risos, tanto tardios quanto enigmáticos, adiciona uma camada de complexidade, sugerindo uma tentativa de resistência ou aceitação diante do absurdo da existência. Uma reflexão sobre sua própria jornada ou destino.
4. “Tacape”:
Sentada em seda pura
Dá vontade de matar
Só por seu amor
Esqueço às vezes de Deus
Que rola em sua cama
E se apoia com vagar
Essa estrofe se destaca por sua intensidade emocional e pela dualidade entre o amor, o desejo e a violência. Essa passagem combina imagens poderosas e contrastantes: a delicadeza da seda, o impulso visceral de "matar por amor," e a ideia quase blasfema de esquecer Deus diante de uma paixão avassaladora. Ela encapsula o conflito entre o sublime e o terreno, o desejo e a espiritualidade, temas universais que ecoam com força.
5. “Ai Garupa”:
Ai Garupa!
Deixa eu gostar de você
Se o momento já se foi
Eu ainda não acabei
Se me agrupo
Deixa eu gostar de você
Eu tenho medo eu cuspo em tudo
Só não cuspo no chão e no violão
A estrofe retrata a luta interna entre o desejo de conexão e a resistência causada pelo medo, equilibrando fragilidade emocional e um pedido de aceitação. O gesto de "cuspir em tudo, só não no chão e no violão" simboliza revolta e respeito pela música, condensando temas de medo, desejo e busca por sentido.
Juntas com as faixas “Singin’ Alone”:
Tô' cansado de fazer amor
Com autômatos
Já que você
Roubou meu coração
Você robot
Isaac Asimov
Programo prum' programa de amor
Comigo
A estrofe explora a desconexão emocional em uma sociedade automatizada, com referências a Isaac Asimov, conectando o amor à tecnologia. O contraste entre o desejo de um amor genuíno e a experiência com autômatos destaca a solidão e o anseio por uma conexão verdadeira, abordando temas de alienação e busca por amor autêntico.
E “Um Dia Eu Pensei” (provavelmente uma variação de “Imagino”):
Eu só sei que vou sentir
Sem orelhas ou nariz
Ser amado sem ter sexo
Ser feliz como ninguém
Minha procura continua
Numa' enorme evolução
A estrofe explora a transcendência e evolução além das limitações físicas, sugerindo uma busca por felicidade emocional e espiritual. A ausência de referências corporais e o amor sem sexo simbolizam a busca por uma forma de amor mais puro. A "enorme evolução" destaca a continuidade da busca por algo além da morte, centralizando o tema de transformação e transcendência.
“Singin’ Alone” e “Um Dia Eu Pensei”, do repertório da Patrulha, completam um painel inquietante de fusão entre poesia e rock, que poderia facilmente integrar qualquer greatest hits ou antologia dos gêneros musicais e literários.
E se os planos não tivessem sido interrompidos? O pianista Arnaldo provavelmente teria desfilado no teclado, com convicção, na execução de “semifusas confusas”, que exigem uma agilidade ímpar, tocadas em passagens rápidas e virtuosísticas, demandando uma técnica refinada para garantir clareza. Como seriam os novos arranjos acústicos, belos e sonoros, para as baladas que pediram um grupo de cordas sob a regência do maestro Duprat? Como Arnaldo, em uma época marcada pela tecnologia moderna, utilizaria pedais para criar efeitos sonoros ricos e ressonantes, explorando novos timbres?
De onde viriam e de quem seriam inspiradas suas novas letras, agora focadas no amor e na inquietante situação das pessoas de nossos tempos?
A alma de Arnaldo é ligada às artes, com passagens por cursos de dança, línguas e viagens intercontinentais de observação. Cantor, escritor, poeta e virtuoso em timbres inimagináveis, após o acidente e a migração para um novo voo artístico, ele se aventurou no mundo das artes plásticas, expandindo seu catálogo de obras individuais.
Tardiamente, herdou as glórias da época dos Mutantes, mas, por isso mesmo, se tornou alvo de críticas de ex-integrantes da banda e de alguns amigos da época. Isso o levou a uma vida reclusa.
Este trabalho não será capaz de explicar a total genialidade de Arnaldo Baptista, nem sua inocência, característica dos gênios malditos. Já é hora de parar de explorar sua imagem como ídolo. Tenho minha lista de pessoas que poderiam ser entrevistadas sobre Arnaldo, mas sei que não falariam. As pessoas não sabem ou não admitem a importância que Arnaldo teve nos ventos da Tropicália e em tudo o que veio depois, como o próprio maestro Rogério Duprat afirmou.
O trabalho seminal de Arnaldo e a Patrulha do Espaço o permitiu ultrapassar os limites da caixa de Pandora, indo além do álbum-manifesto TropicáliaouPanis et Circensis, dos cinco álbuns dos Mutantes, dos dois discos solos produzidos para Rita Lee e do memorável Lóki?. Todo o trabalho anterior, de cunho poético e progressista, foi ultrapassado pela onda de hard rock pesado imposta pela Patrulha do Espaço, expandindo os limites das barreiras artísticas, existenciais e criativas. O compositor estava no limite!
UMA CARTA: Foi breve, mas intenso...
"50 ANOS DA SPACE PATROL: UMA CARTA DE ZÉ BRASIL"
DUROU POUCO, MAS FOI INTENSO...
“A Space Patrol foi a primeira banda de Arnaldo Baptista após sua saída dos Mutantes, em 1973. O nome foi sugerido pelo guitarrista e técnico de som alemão-argentino Alan Kraus, que chegou a participar dos primeiros ensaios. Ensaiávamos diariamente na Serra da Cantareira e realizamos duas apresentações no Parque do Ibirapuera, com um repertório baseado no disco Lóki?.
A formação inicial contava com Arnaldo Baptista (teclados), Marcelo Aranha (guitarra) e eu, Zé Brasil (bateria). Começávamos os shows com minhas músicas, que eu cantava acompanhado pela minha viola caipira Del Vecchio. Depois, Arnaldo e Marcelo se juntavam a mim com violões folk. Para apresentar as músicas do Lóki?, Arnaldo assumia os vocais e os teclados — tocando órgão, clavinet, sintetizador e fazendo o baixo com a pedaleira do órgão Hammond. Marcelo empunhava sua guitarra Gibson Les Paul De Luxe preta, com metais dourados, enquanto eu usava minha bateria Pinguim, incrementada com peças Ludwig, Premier e pratos Paiste e Zildjian.
“Nas faixas mais pesadas, Arnaldo assumia o baixo, e a Space Patrol se transformava em um power trio. Posteriormente, o baixista Sérgio Kaffa entrou na banda, gravando apenas uma faixa do disco, ‘Desculpe’. Fui o primeiro a deixar o grupo, em meados de 1974, para formar o conjunto Apokalypsis.
“Foi uma grande satisfação participar do projeto Lóki?, ajudar a fundar esse lendário conjunto e me tornar amigo de Arnaldo Baptista.” Zé Brasil — dezembro de 2023
Patrulha do Espaço: A Escolha do Nome e Suas Conexões Culturais e Sociais
A tradução de Space Patrol para Patrulha do Espaço surgiu pela primeira vez como subtítulo da música instrumental "Honky Tonky", última faixa do icônico LP Lóki?.
Embora Space Patrol pudesse ser traduzido literalmente como Patrulha Espacial, Patrulha do Espaço foi escolhida por ser mais coloquial e acessível, transmitindo uma sensação de aventura e exploração universal, típica das histórias de ficção científica. A adaptação também se conecta melhor com o público, sugerindo uma ideia mais poética de proteção e exploração do espaço.
A escolha de Patrulha do Espaço reflete a mesma inspiração que levou Arnaldo Baptista a adotar o nome "Mutantes" para sua banda, no sentido de se ligar à ficção científica e à ideia de um som "espacial". No entanto, esse som não atraiu a atenção do trio de Os Mutantes, o que torna a escolha do nome ainda mais significativa.
Em uma conversa com Rolando Castello Jr., ele comentou que a Patrulha do Espaço também podia ser vista como uma metáfora para a proteção do "espaço" ambiental, especialmente no contexto da crise de grilagem de terras que Brasília enfrentava na época atual. Assim, o nome transcende a ficção científica, conectando-se com questões ambientais e sociais da realidade brasileira.
FLASHBACKS
1969
31
DEZEMBRO
“Eu e Kokinho pegamos uma carona na Marginal Tietê e, após sete dias de viagem, chegamos a Arembepe. Três meses depois, estávamos de volta. Foi então que Kokinho comprou seu baixo Fender e mergulhou de vez no mundo do rock. Saudades eternas.” (Sérgio Kera)
★ “Trabalhei com ele por 5 anos, viajando por todo o Brasil e América Latina. Ele foi um grande amigo para mim. Em uma ocasião, estávamos prestes a subir ao palco no meio do nada, e estava um frio intenso. Ele percebeu que eu não conseguiria tocar daquela forma e me deu seu casaco para me aquecer. É mole?”
(Norba Zamboni sobre Kokinho Gennari😊)
Foto: Carlos Hyra
Magnetismo: O Contrabaixista Kokinho e seu precioso Fender Bass no Primeiro Festival Latino-americano de Rock, 1977
Rita Lee (Presidiária) — Clube Palmeiras, SP — 16/10/1976
📷 Grace Lagôa© — Fotógrafa
Recorte de 16 de outubro de 1974
Fins de 1975?
A nova viagem sonora começa quando Arnaldo estrutura seu "novo" grupo com uma velha ideia: reaquecer o som "lenha" da banda Patrulha do Espaço. Inicialmente, o grupo contava com o baterista Zé Brasil, mas agora, em sua nova formação, estava definido com Ruffino Lomba Neto e Dudu Chermont nas guitarras, Cenoura no contrabaixo e Arnaldo na bateria, explorando uma configuração incomum – dois chimbaus, um de cada lado.
Curiosamente, Ruffino Lomba, conhecido no rock nacional por seu trabalho como baixista, aparece aqui assumindo a guitarra. Já Dudu Chermont surge tocando guitarra ao lado de Arnaldo um ano antes de ser efetivado na Patrulha do Espaço, em setembro de 1977. Quanto a Cenoura, o contrabaixista, pouco se sabe – há quem afirme que havia, sim, um Cenoura na história.
Sobre a técnica dos dois chimbaus, ela proporciona maior fluidez, equilíbrio e versatilidade ao baterista. Talvez Arnaldo estivesse evocando Billy Cobham ou mesmo Neil Peart, já que essa abordagem permite tocar sem cruzar os braços, tornando a execução mais natural e ergonômica. Mas, sendo sincero, não entendo de bateria e jamais o vi tocando dessa forma – são apenas suposições!
Nessa nova encarnação da Patrulha do Espaço, a banda se limitava a ensaios caseiros, com pequenos amplificadores e a companhia silenciosa de uma televisão ligada sem som. Entre os poucos espectadores privilegiados desse experimento, estava ela: a TV.
1976
MARÇO
MUTANTES: TUDO NOVO
Após um período difícil, marcado por dívidas que ultrapassam Cr$ 100.000, os Mutantes tentam virar a página e resgatar a essência dos tempos áureos: som inovador e foco em resultados financeiros. As mudanças começam com a saída de Túlio Mourão (teclados), que planeja integrar o Ad-Canto, e de Pedro (contrabaixo), que decidiu abandonar o antigo esquema da banda. Enquanto isso, boatos circulam de que Arnaldo Baptista, um dos fundadores da formação clássica, estaria cotado para substituir Túlio. Já o posto de Pedro deve ser preenchido por Paul, ex-guitarrista do grupo Veludo. Com essas mudanças, tudo indica que, dos antigos Mutantes, restarão apenas o nome e a forte presença do talentoso guitarrista e líder Sérgio Dias.
★
Durante uma viagem pelos Estados Unidos, Arnaldo alugou um Pontiac e partiu de Los Angeles rumo a Nova York, com a missão de encontrar peças para motocicletas. No meio do trajeto, um dos pneus traseiros estourou, e o carro derrapou violentamente, girando fora de controle. No acidente, Arnaldo se feriu gravemente, fraturando parte da cabeça e precisando de pontos. Depois do ocorrido, ele voltou ao Brasil desiludido, com os danos físicos ainda visíveis, mas carregando também marcas psicológicas que o assombraram por muito tempo.
Durante essa épica road trip, a canção "Take It to the Limit" dos Eagles, que alcançou o quarto lugar nas paradas, acompanhava Arnaldo enquanto ele dirigia e cantava, imerso nas palavras:
"So put me on a highway
And show me a sign
And take it to the limit one more time"
A música, com sua busca por liberdade e superação de limites, refletia o momento de Arnaldo: a ideia de viver ao máximo, de levar tudo até o limite, repetidamente, mesmo diante das dificuldades e incertezas. As palavras "take it to the limit" ecoavam como um símbolo de sua natureza inquieta, sua ambição e sua vontade de seguir, apesar de tudo.
Anos depois, Arnaldo interpretaria essa canção ao vivo, proporcionando ao público um deleite ainda mais profundo, agora imbuído das experiências e reflexões que aquela viagem e aquela música representavam para ele.
1976
★
Para desespero dos amigos mais próximos, os companheiros de rock dos tempos da Pompéia, Arnaldo insistia em dizer que não os reconhecia. De nada adiantava chamá-lo: — Arnaldo! Sou eu! Fulano... Ele parecia completamente alheio, distante. Nos momentos de isolamento, Arnaldo conversava com a televisão, soltando um: — What? — deixando todos perplexos. Naquela época, a banda de rock que ele mais idolatrava era o Kiss.
Arnaldo chegou a passar dias no subsolo da casa da rua Pelotas, nº 497, imerso em uma de suas fases mais turbulentas. Naquele espaço, onde nada era descartável, tudo se transformava em combustível para sua própria sobrevivência. Ele falava um idioma estranho, que às vezes lembrava russo, e acumulava sacos de lixo nos cantos da sala, como se fossem tesouros indispensáveis, recusando-se a removê-los mesmo quando o cheiro se tornava insuportável. Vestia um sobretudo gasto, enquanto velas acesas tremulavam sobre os amplificadores espalhados pelo chão. A vida, em seu estado mais bruto e febril, alimentaria sua arte — e dessa experiência nasceria o conto “O Abrigo”.
“Eu já estava seguindo minha vida, longe dos shows, e nem sabia dessas histórias. Mas quem realmente pode confirmar que aconteceram? Acredito que sim, porque, embora eu não tenha mais contato com alguém que foi um dos meus melhores amigos, minha prioridade era a sobrevivência.
“ Fico chocado, mas era assim que as coisas aconteciam para o querido Arnaldo. No fim dos Mutantes — que, para mim, já começava quando a Rita saiu —, mesmo com nós quatro tocando em um nível acima do normal, a presença dela sempre fez falta.” (Dinho Leme)
“Que bom que você encontrou essa informação! Era exatamente esse texto que eu procurava. Achei que nunca mais fosse encontrá-lo. Fico curioso para saber de quem é esse relato.
E, cara, ele parece bem plausível, né? Mesmo tendo um tom um pouco folclórico, algumas informações realmente batem.” (Vítor Nesi)
Na coluna Let it Rock, Ezequiel Neves anunciava com entusiasmo: "Arnaldo Baptista, fundador dos Mutantes, agora atende por um novo nome: Billy Cheese. Ele trocou os teclados pela bateria — nada menos que uma imponente Ludwig Silver Sparkle com dois bumbos, para ser mais exato — e está mandando ver completamente sozinho, com solos capazes de enlouquecer o bairro de Higienópolis." O tom da coluna deixava claro que os vizinhos não estavam exatamente entusiasmados com essa nova fase musical. Sobre o nome Billy Cheese, Arnaldo explicou: "Foi uma inspiração que juntei do Billy Shears, da canção Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, com o Leslie West, do trio West, Bruce & Laing. O Leslie é meio gordão-de-queijo, e ele canta numa letra: 'meu coração é cheio de cheese e não há lugar para escondê-lo.' Que coisa, né? Gozado..." Quanto aos Mutantes, Arnaldo foi enfático: "De agora em diante, só toco bateria. Fim de papo."
Cinco vezes internado injustamente, tudo porque defendi a amplificação valvulada. — Arnaldo Baptista
Pode parecer um disparate para quem não entende, mas para Arnaldo Baptista, tecladista apaixonado por som e experimentação, a amplificação valvulada era uma questão de vida ou morte musical. Para ele, os amplificadores valvulados não eram apenas um equipamento: eram a alma do som. Eles adicionavam calor e profundidade ao seu teclado, realçando os harmônicos e suavizando as frequências agudas, essenciais para criar o timbre vintage de pianos elétricos (como o Rhodes e Wurlitzer) e órgãos Hammond.
No palco, Arnaldo usava amplificadores como o Fender Twin Reverb, não apenas para amplificar, mas para moldar seu som característico — limpo, brilhante, com headroom abundante. Era uma obsessão que ele cultivava, e que o tornava incansável, tirando a paciência dos mais próximos enquanto defendia o uso desses amplificadores. Ele não pensava na logística, nem no tempo que gastava para construí-los. A ideia de trazer aquele som ao vivo o consumia.
E, como se não bastasse sua relação com os amplificadores, Arnaldo, também um baterista solitário, se dedicava a treinar em sua bateria de dois bumbos. Explorava manobras complexas e exercícios de técnica, velocidade, independência e precisão. Mas a sua polirritmia, que se estendia entre os bumbos, a caixa, o tom e o surdo, de repente, cessou.
Uma quinta-feira triste
Dias depois, em 27 de maio de 1976, o destino golpeou mais uma vez. O pai de Arnaldo, Cláudio e Sérgio, e marido de Clarisse, faleceu em São Paulo, pouco antes de completar 63 anos. Jornalista (autor de uma crônica diária no jornal O Dia de São Paulo), escritor, poeta, cantor lírico na juventude, secretário particular de Adhemar de Barros e diretor em uma secretaria de Estado de São Paulo, sempre foi uma figura reverenciada pelos filhos. A perda foi um baque devastador, afastando Arnaldo ainda mais da música. Mas ele voltaria, como sempre, pois sua paixão pela arte e pelo som era maior que tudo.
O grave acidente automobilístico que resultou em um trauma na cabeça e a perda de seu pai. Esses acontecimentos contribuíram para o desenvolvimento de uma instabilidade emocional e mental, marcada por mudanças profundas em seus pensamentos, comportamentos e relacionamentos. Eles deram início a uma série de eventos que afetariam irreversivelmente sua saúde mental e trajetória artística.
★
“Quanto a Martha, não tenho muita certeza se a conheci em uma turma que morava perto do Mackenzie ou através de amigos da colônia judaica. Lembro-me que ela vivia com a família perto da minha casa, acho que na Alameda Jaú, quase na esquina com o Colégio Dante Alighieri. Também não tenho certeza, como já te disse, se fui eu quem os apresentei. Só sei que frequentemente íamos à casa um do outro, e muitas vezes a Silvia Helena estava junto conosco”. (Zé Brasil)
“Passei quatro anos num ostracismo. Não tinha ninguém, nenhuma mulher. Ninguém me queria. Não tinha amor.” (Arnaldo Baptista)
“O Daniel foi gerado com muito, muito amor. Havia muito amor entre nós, muita vontade de fazer a relação, o casamento, dar certo. Mas a vida era difícil naquela época. Eu tinha a sensação de que, naquele momento, ele estava um pouco abandonado pela mídia, pelas gravadoras e pelas pessoas que foram seus amigos durante a época dos Mutantes. Em certo momento, essas pessoas se afastaram do Arnaldo, e isso o deixava muito triste, deprimido.” (Martha Mellinger)
25
AGOSTO
Quarta-feira
Foi na mesma casa da Rua Pelotas, n. 497. Na Vila Mariana. Que Rita fora detida, acusada de posse de drogas. Ela estava em temporada com o Tutti Frutti, no Teatro Aquarius, um dia antes, 24 de agosto de 1976 quando os investigadores da Divisão de Entorpecentes do DEIC bateram à sua porta com um mandado de busca e apreensão.
Grávida de dois meses, Rita estava tranquila. Logo soubera da gravidez, tinha parado com tudo, até mesmo com os cigarros comuns. Por isso, ao ouvir dos policiais que teriam recebido a denúncia de que havia um quilo de maconha dentro de casa, ela respondeu com bom humor: “Se vocês tivessem passado aqui uns meses atrás teriam achado bem mais de um quilo. Mas agora não tem mais nada...”.
Rita acabou autuada em flagrante e levada para o DEIC. Além de um narguilé (uma espécie de cachimbo oriental), os policiais disseram ter encontrado pontas de cigarros de maconha. Coagida, ela acabou assinando um papel, no qual reconhecia ter droga em casa. Depois, foi enviada à Penitenciária Feminina, para aguardar o julgamento.
★ Em uma edição especial de revista dedicada a Rita Lee, é relatado um episódio curioso envolvendo sua prisão. Ao saber do ocorrido, Arnaldo Baptista tentou se juntar a ela de forma inusitada: apresentou-se em uma delegacia portando um enorme cigarro de maconha, com o claro intuito de ser detido. Contudo, os policiais, notando seu estado de confusão, explicaram que, mesmo que fosse preso, ele seria colocado em uma cela masculina, separado de Rita. Sem conseguir compreender completamente a situação, Arnaldo acabou sendo liberado e enviado para casa, sem sofrer maiores consequências.
Rita se assustou ao ver Arnaldo se aproximando das grades da cela, com o olhar perdido.
"De quem é o seu filho?", perguntou ele, ao saber da gravidez.
"Você não conhece...", respondeu Rita, tentando encerrar o assunto.
"Eu posso ser o pai do seu filho, se você quiser... se não tiver ninguém...", insistiu ele, com um tom hesitante.
"Cai fora, Arnaldo! Eu não preciso disso!
Meu filho tem pai, sim", retrucou Rita, firme.
Arnaldo permaneceu em silêncio, tentando absorver as palavras. A realidade se impôs: era tarde demais para declarações de amor.
16
OUTUBRO
Sábado
Rita Lee, vestindo um figurino de presidiária, se apresenta no Teatro Aquarius, dentro do Ginásio do Palmeiras, em São Paulo. Nesse período, Roberto de Carvalho passa a integrar a banda.