1981: SHINING ALONE: O EMPRESÁRIO IMPROVISADO E O SHOW QUE VIROU PREJUÍZO (PARTE 5)


1981

 

 14/15

FEVEREIRO
Sábado/Domingo

SHINING ALONE: O EMPRESÁRIO IMPROVISADO E O SHOW QUE VIROU PREJUÍZO

Jesse era um cara que tinha morado na Irlanda por muitos anos. Quando voltou ao Brasil, trouxe consigo sua esposa (ou companheira) irlandesa, e foi apresentado ao Arnaldo. Encantado com as músicas inéditas que Arnaldo mostrou, ele se apaixonou imediatamente pelo trabalho e propôs produzir um show. Animado, perguntou ao Arnaldo onde ele gostaria de tocar e que equipamento seria necessário.

Arnaldo, sempre sonhador, respondeu que queria tocar no Tuca. Ele listou suas exigências: um violão elétrico, um sintetizador, um órgão Hammond, um piano Yamaha electric, uma caixa Leslie, entre outros. No entanto, o produtor não entendia nada de divulgação e acabou pagando preços altos por tudo, chegando ao ponto de pegar dinheiro emprestado com agiotas. Apesar dos esforços, o tamanho do teatro contrasta com o público reduzido, e o show teve uma baixa lotação. O resultado foi um grande prejuízo.

A divulgação do show Shining Alone incluiu a distribuição de ingressos ao vivo na FM Bandeirantes durante uma entrevista, e uma nota com foto apareceu na revista semanal Visão. Além disso, na televisão, Arnaldo participou de uma breve e esclarecedora entrevista que promovia o evento, e, nessa ocasião, ele apresentou a música inédita 'Ciborg' em versão acústica ao piano. No entanto, não se sabe se essa gravação foi feita no interior do Tuca, antes dos shows. O que restou como saldo, infelizmente, foi um retorno muito aquém do esperado.

Desesperado, o produtor fechou outro show no Teatro Augusta, que, na época, ficava em uma rua conhecida por boates e vida noturna de prostituição, sem tradição alguma no  

rock. No primeiro dia, o show nem aconteceu por falta de público — dizem que só o Barbieri apareceu. No segundo dia, Arnaldo tocou para umas seis pessoas.

Sem alternativas, o produtor tentou levá-lo para outras apresentações em São Paulo, mas já 

não tinha dinheiro nem para alugar equipamentos. Ele conheceu o Barbieri de uma forma curiosa: sem pedir permissão, Barbieri fez uma dúzia de camisetas do show no Tuca e distribuiu para a produção e amigos, como Luiz Carlos Calanca, da Baratos Afins.

O show Shining Alone marcou um momento especial na carreira de Arnaldo Baptista, apresentando um formato que, para os padrões de hoje, poderia ser considerado um "unplugged." Alternando-se entre os teclados, Arnaldo trouxe uma performance intimista, mas o contexto por trás dos bastidores revelou uma série de desafios e infortúnios.

1981

O Show Shining Alone e a História por Trás da Produção

Por: Antônio Celso Barbieri

A produtora Brajet Promoções entrou no radar com o pôster ou panfleto do show Shining Alone (Brilhando Sozinho). Durante essa época, enquanto imprimia camisetas de rock, surgiu a ideia de criar uma camiseta específica para o evento, utilizando uma foto de Arnaldo Baptista. Foram feitas poucas unidades, distribuídas gratuitamente para pessoas próximas ao artista. A memória exata é vaga, mas é possível que uma camiseta tenha sido dada a Luiz Carlos Calanca e duas ao casal responsável pela produção do show.

O casal, que foi visitado em seu apartamento, revelou detalhes sobre sua história. Ele, brasileiro, e ela, irlandesa — ou talvez escocesa ou inglesa — haviam vivido no Reino Unido por um bom tempo. De meia-idade, o homem parecia profundamente admirado pela música e figura de Arnaldo Baptista, tratando-o como a lenda que de fato é. Apesar de sua admiração, sua falta de experiência com a cena musical brasileira e desconhecimento sobre a condição mental de Arnaldo contribuíram para uma série de problemas.

A determinação do produtor em "mover montanhas" para realizar o show no Tuca acabou sendo um esforço cego. A ignorância em lidar com o contexto local e com a fragilidade emocional do artista resultou não apenas em um fracasso financeiro, mas também em impactos emocionais que agravaram a situação de Arnaldo.

Durante a visita, o produtor gentilmente permitiu que fosse feita uma cópia da gravação do show diretamente da mesa de som. Hoje, com o passar do tempo, surgem pessoas que negam a origem dessa cópia ou recontam a história com variações. No universo da música, onde os egos muitas vezes se sobrepõem, esses detalhes se tornam parte de uma narrativa em constante disputa.

08
MARÇO
Domingo

No Auditório Augusta, realizou-se a Primeira Mostra Musical dos Beatles, promovida pelo fã-clube Revolution. O evento contou com uma programação especial: a exibição de vários filmes e apresentações ao vivo de dois grupos dedicados exclusivamente ao repertório dos Beatles, o Comitatus e o Beatles 4 Ever.

Como atração extra Arnaldo Baptista também participou, fazendo uma performance única ao piano. Sozinho e sem acompanhamento, ele encantou o público com interpretações marcantes de músicas dos Beatles, todas no seu estilo característico, com pitadas de improviso e até trechos autorais. 

Dois membros originais da Patrulha do Espaço se reencontraram em uma ocasião memorável. Rolando Castello Júnior foi o responsável por montar e operar o som, uma tarefa viabilizada pela pequena empresa de locação de som que o Patrulha mantinha na época.

 “Naquele dia, Arnaldo tocou algumas canções dos Beatles no piano, e eu fui responsável por montar e operar o som”, relembra Rolando Castello Jr.

Infelizmente, essa noite especial não foi gravada. “Éramos muito burros”, lamenta Marco Antônio Mallagoli, um dos organizadores. Mesmo assim, o evento ficou registrado na memória de quem teve o privilégio de presenciá-lo. 

 

Arnaldo e Barbieri, 1981

 

Foto: Arquivo Rolando Castello Júnior. 

1981

25/26

MARÇO
Quarta-feira-quinta-feira 

 

Paulicéia Desvairada

Desesperado, o produtor agendou um novo show na sobreloja Paulicéia Desvairada, localizado na Avenida Brigadeiro Faria Lima, em um pequeno shopping center. Contudo, sem recursos para alugar os instrumentos necessários, ele contou com a ajuda surpresa de Antônio Celso Barbieri e George Romano, dono de uma fábrica de órgãos voltados para igrejas, cedeu um modelo improvisado, que foi transportado em uma Kombi dirigida pelo próprio Arnaldo.

A chegada à sobreloja trouxe mais complicações: a casa estava fechada, e, quando finalmente abriu, descobriu-se que a energia havia sido cortada. A atmosfera do local, permeada pelo consumo de álcool e drogas, era tensa e hostil. Ainda assim, Arnaldo, sempre otimista e desarmado, subiu ao palco com apenas um órgão e um microfone.

O público, no entanto, não era receptivo. Após a primeira música, começaram os gritos de “Toca rock!” e “Põe som de fita!” Arnaldo tentou seguir em frente, mas a situação rapidamente se tornou insustentável. Preocupado com a possibilidade de algo pior, como o incidente da semana anterior em que Jorge Mautner foi atingido por uma lata de cerveja, o produtor finalmente interveio, retirando Arnaldo do palco.

A ruptura entre Arnaldo e o produtor ocorreu pouco depois, marcada por acusações de ambos os lados. Este episódio não apenas simboliza os desafios enfrentados por artistas em momentos delicados de suas carreiras, mas também serviu como um triste reflexo da falta de preparo e sensibilidade de alguns envolvidos na cena cultural da época.

“Eu estive nesse show e confesso que senti pena do Arnaldo. A plateia foi brutal...

(...) Esse tipo de violência foi ainda pior na casa Paulicéia Desvairada, onde eu mesmo fiquei responsável por arrumar um teclado para ele. Durante o show, cheguei a implorar ao empresário para tirá-lo do palco antes que alguém atirasse uma lata de cerveja em sua cabeça — algo que, na semana anterior, havia acontecido com Jorge Mautner, que realmente levou a ‘latada’.

(...) Sempre que me lembro desse show, é impossível não imaginar o Arnaldo tentando, desesperadamente, agradar um público estúpido que só queria ouvir ‘pauleira’. Não foi a sua melhor performance, mas sim uma loucura angustiada, uma súplica por aceitação que corta o coração.”

(Antônio Celso Barbieri)

A Odisseia de Arnaldo Baptista nos Palcos: Um Sonho Que Se Desfez

O produtor do Shining Alone, um entusiasta determinado, enfrentava graves dificuldades financeiras. Envolvido em dívidas com agiotas, sua solução foi continuar produzindo shows com Arnaldo na esperança de recuperar o prejuízo. Após o show no Tuca, ele planejou uma temporada de cinco dias no Teatro Augusta. No entanto, o local, conhecido mais por suas peças teatrais do que por eventos musicais, ficava em uma Rua Augusta que, à época, já tinha perdido o glamour da Jovem Guarda, tornando-se sinônimo de decadência.

Com a divulgação precária e um ambiente inapropriado, a temporada foi um fracasso. No primeiro dia, o show sequer aconteceu por falta de público, e no segundo, apenas meia dúzia de pessoas compareceu. Arnaldo, com sua disposição generosa, tentou agradar o pequeno público, mas a performance ficou marcada por um clima fragmentado e desolador.

 

1981

Arnaldo Baptista: Genialidade, Excentricidade nos Palcos da Contradição

 

"Eu sempre acompanhava os ensaios no lugar onde ele morava na Vila Mariana. Um dia, foi muito engraçado: um show super cheio, e o Arnaldo esqueceu de levar o piano!" (Mari Pereira Olinto)

Os Mutantes, ainda na época da Cantareira, não foram à casa de Arnaldo tirar satisfações sobre o episódio em que ele, de forma provocativa, ficou repetindo ao microfone: “Ar... nal... do... R... now... do...”. Também não foi durante o show anárquico da Space Patrol que o maestro Arnaldo, "desregendo" tudo o que havia sido ensaiado, testemunhou a turma da Cantareira — composta por dealers e freaks — cantar e dançar alucinadamente, embalados pelos improvisos caóticos de seus teclados.

 

 

Não foi em 1974, no Teatro Bandeirantes, que Arnaldo fazia participações especiais nos shows dos Mutantes enquanto metade do público o vaiava? 

Arnaldo & Phoenix não se apresentaram em clima de tensão na Tenda do Calvário?

Tampouco foi no primeiro Festival de Icanga que ele permaneceu empoleirado em uma árvore enquanto sua banda era anunciada?

Em 1977, no I Concerto Latino-Americano de Rock, não foi a Patrulha do Espaço que teve sua apresentação prejudicada porque Arnaldo insistiu que um amigo controlasse a mesa de som? E não foi Júnior quem percebeu que as improvisações e as "besteiras" ditas no palco não eram para qualquer ouvido? 

 1981

 

Arnaldo Baptista e Suzana Braga, nos tempos de felicidade

 

Júnior observava claramente como o comportamento de Arnaldo mudava drasticamente dos ensaios para as apresentações ao vivo.

Durante o revival dos Mutantes no Anhembi, não foi Sérgio Dias quem, ao perceber a insatisfação da plateia que esperava rock progressivo, foi ao encontro do irmão para cantar “Balada do Louco”, tentando salvá-los dos apupos?

No verão de 1980, na Sala Funarte, no Rio de Janeiro, não foi Arnaldo quem se limitava a apresentar pequenos fragmentos no piano, tocando boogie-woogie durante os shows? E não foi na véspera da estreia de Heliogábalo ou o Anarquista Coroado — uma peça carregada de simbolismos e excessos, com cenas de atores seminus refletindo a decadência do imperador — que Arnaldo sofreu um surto?

A obrigação de cair na estrada para fazer muitos shows era algo que quase o transtornava. Embora ele demonstrasse alegria durante os espetáculos de Shining Alone, os sinais de insatisfação com os locais, a aparelhagem e o público foram o afastando dos palcos. Arnaldo chegou a realizar recitais solo, sem banda, muito antes de o conceito de "unplugged" se popularizar.

Sua trajetória foi marcada por uma genialidade ímpar, mas também pelos desafios de conciliar sua arte com as demandas da indústria musical e a pressão das expectativas externas.

“Pelo que me lembro, conheci Suzana Braga no Estúdio Abertura em São Paulo, onde Arnaldo gravou o Singin' Alone e onde gravamos tanto o segundo LP da Patrulha quanto o quarto LP da banda. O que recordo é que a encontrei no estacionamento em frente ao estúdio, trocamos algumas palavras e foi isso. Ela me pareceu uma pessoa muito doce, querida e, acima de tudo, dedicada ao Arnaldo. Depois disso, não saberia dizer quanto tempo se passou nem como ela conseguiu meu telefone, mas ela me ligou perguntando sobre a possibilidade de lançar um disco de forma independente, já que com a Patrulha éramos pioneiros nesse tipo de iniciativa, e me pediu uma ajuda. Como eu não podia ajudar de forma material, lembrei do Luiz Carlos Calanca, que era grande fã do Arnaldo e estava começando seu selo. Pensei: ‘Se o cara é fã do Arnaldo, deve rolar.’ Então, coloquei a Suzana em contato com ele, e o disco aconteceu. Fiquei feliz em poder ajudar a Suzana, pois, como mencionei antes, ela era uma pessoa muito doce, além de poder ajudar o Arnaldo e, por que não, a Baratos Afins também, pois foi o primeiro disco de fôlego que o selo lançou e que deu um grande status ao selo. E foi isso.”  (Rolando Castello Júnior)

 

Na Direção do Giroscópio: Uma Entrevista com o Baterista da Banda Ghi, que Foi a Última a Ensaiar com Arnaldo Durante o Ano de 1981 Antes de Seu Acidente

 

O baterista Milton Le Cury

1981

Na Direção do Giroscópio: Uma Entrevista com o Baterista da Banda Ghi, que Foi a Última a Ensaiar com Arnaldo Durante o Ano de 1981 Antes de Seu Acidente 

 

Se você observar atentamente a contracapa do álbum Singin' Alone, verá uma foto em que Arnaldo, enquanto acende um cigarro, apoia o braço sobre um caderno equilibrado em seu joelho. Seria aquele o caderno de suas composições? Após tantas mudanças repentinas, lares desfeitos e até um passaporte extraviado, será que alguma composição inédita de Arnaldo conseguiu sobreviver ao tempo?

Em 2005, Zé Brasil e Silvia Helena gravaram a inédita parceria entre Arnaldo Baptista e Zé Brasil, “Cabelos Dourados”. A letra, entregue por Arnaldo a Zé Brasil em 1974, passou por pequenas alterações antes da gravação. Esse marco representou a primeira vez que uma composição inédita de Arnaldo, nunca antes registrada por ele mesmo, foi gravada.

Curiosamente, em 1981, o baterista Milton Le Cury também recebeu diretamente de Arnaldo a letra de “Garota de Sucesso” para musicar. No entanto, apenas em setembro de 2020, durante a pandemia, a gravação de “Garota de Sucesso” veio à tona, revelada em vídeo, com Milton Le Cury cantando e tocando violão.

 

Quem sabe se um dia o amor se encontrar
Na paz do nosso lar
A tangência de uma dor
Que ainda tento esquecer ao encontrar

Não sei não
Quem sabe onde estarás
Se um dia o amor vier bater à porta
Vou voar de um sertão que é só meu

Nunca se arrependa nunca do que um dia pensamos em ter
Se meus lábios ainda quentes de um beijo que um dia eu sonhei

Se foi isso em vão
Se foi na vida um turbilhão
Com a história da garota em coquete de sucesso iê

Mas ainda vou pensar em encontrar na minha casa
O seu encanto encantador
Meu Deus
Mas ainda vou pensar em encontrar na minha casa
O seu encanto encantador

Início da Jornada

“A proposta do Arnaldo era gravar Singin' Alone com a gente” (Milton Le Cury)

A bordo do Ford Maverick dirigido por Arnaldo, no banco do carona, fosse ao lado do baterista Milton Le Cury ou do técnico de som Plínio Hessel Jr., Arnaldo sempre explicava com entusiasmo a função que o giroscópio teria em sua nave espacial. E aqueles garotos sabiam: o giroscópio era o coração de tudo! Ainda lembram com nitidez das manhãs em que desciam a serra com Arnaldo, rumo ao pé da montanha para comprar pão, no primeiro horário, a toda velocidade no lendário Maverick.

  Arnaldo dirigia um Maverick?

Milton Le Cury:   Sim, ele acelerava aquele Maverick pela serra, enfrentando a neblina, sempre que íamos buscar pizza lá embaixo ou pão na padaria. Conhecia aquela estrada como a palma da mão. Numa dessas idas, com Arnaldo ao volante, João Diniz (piano) e Robson Vernalha (guitarra), ele desceu a toda velocidade pela Serra da Cantareira e, ao chegar, soltou: "Tenho saudades da minha Corvette..." Imagina! Se já fazia miséria com o Maverick, o que não faria com a Corvette?

Arnaldo se orientava e se movia através da sua criatividade e do seu jeito de viver, sempre buscando novas formas de expressão e conexão.

“Arnaldo dava aulas de passos de ballet clássico para a gente logo que acordávamos, rs.” (Milton Le Cury, o baterista, tinha 23 anos na época).

“O Arnaldo não tinha perfil para negócios. Ele era totalmente dedicado à arte.”

“Tenho um exemplar do Lóki? autografado por ele. Escreveu algo como: ‘Para o maior baterista do universo’ haha!”

No início, "Garota de Sucesso" era um blues.

— Vocês eram músicos? Quem na banda era mais próximo do Arnaldo?

Milton Le Cury:  Sim! Somos músicos, e todos éramos fãs dos Mutantes. Já conhecíamos o arranjador Rogério Duprat, que era muito próximo de Milton Takada, um dos guitarristas da banda Ghi.

Creio que todos éramos próximos do Arnaldo de alguma forma, porque a gente morava lá metade da semana, rs. Mas eu era próximo, e o Renato Comi, o guitarrista, também.

— Como era a formação da Ghi?

Milton Le Cury:  A Ghi já existia desde 1981. Já éramos uma banda quando conhecemos o Arnaldo em uma loja de instrumentos musicais, onde fomos comprar dois amplificadores e uma mesa de som Giannini.

(...) Eu na bateria, João Lisanti Neto no contrabaixo, Renato Comi na guitarra solo e voz, além de dois guitarristas, Robson Vernalha e Milton Takada. João Diniz tocava piano acústico e teclados, e Roberto Comi fazia os vocais de apoio (backing vocal). Em algumas músicas, como “Corta Jaca”, eu também fazia backing vocal. Arnaldo queria reduzir a formação e manter apenas eu, Renato Comi, João Diniz no piano e, possivelmente, Miltinho Takada. A banda era grande, e ele preferia algo mais compacto.

— Gravaram algum ensaio?

Milton Le Cury:  Sim, a gente gravava. O Plínio fazia as gravações. Acho que ele não tem mais, não posso afirmar com certeza... Eu tenho uma gravação em K7. Pretendo passar para CD e conseguir um link, mas ainda não fui atrás disso. A qualidade não é boa, bem "trash", gravação direta... roots (risos). Depois que conhecemos o Arnaldo, ele quis ver a gente tocar e foi a um ensaio da banda em Itapecerica da Serra. Depois disso, nos convidou para tocar com ele em sua casa, onde morava com Suzana, na Serra da Cantareira. Tenho algumas fotos desses ensaios, mas poucas em que o Arnaldo aparece. Eram fotos tiradas com câmera de filme, e algumas ainda tenho reveladas.

—  Rolava alguma coisa dos Mutantes?

Milton Le Cury:  Dos Mutantes, a gente não tocava. Apenas brincávamos tocando algumas coisas na forma de medley. Tínhamos muita liberdade para criar e arranjar as músicas dele. 

Por exemplo, em "Ciborg", a gente tinha um fraseado de duo de guitarra bem original. Tocávamos todas as músicas do Singin' Alone! Íamos para a casa dele, do Arnaldo e da Suzana, na Serra da Cantareira, nas quartas e ficávamos lá até domingo, tocando e ensaiando. Nossas versões eram incríveis! As músicas dele são muito boas: "Trem", um blues incrível, e "Corta Jaca", que era ótimo porque tínhamos um backing vocal com terças... A gente criava junto, e ele dava algumas direções de arranjo que gostava no piano. A voz dele era boa, com uma extensão vocal incrível e muito afinada, com aquele sotaque caipira, paulista.

— Ele comentava sobre a recente volta dele do Rio para São Paulo?

Milton Le Cury:   Não! Ele estava totalmente focado nos ensaios. Tinha uma energia incrível, e os ensaios eram como verdadeiros shows, super dinâmicos.

— Qual foi o processo de criação da música ‘Garota de Sucesso’?

Milton Le Cury:    'Garota de Sucesso' , Arnaldo escreveu a letra naquele ano de 1981 e me deu para musicar. A poesia de Arnaldo está neste lugar onde ele sempre habitou, uma dimensão profundamente ligada à criatividade, de uma forma muito pura e genuína. É algo que vem direto do coração, o que a torna realmente incrível. Fiz duas versões. Mostrei uma para o Sérgio Dias, mas durante a pandemia, fiz outra música. Gosto mais dessa versão. Estou trabalhando nela.

— Durante o tempo que você esteve na Cantareira, ele recebia visitas? Ele falava com vocês sobre os dias dele com os Mutantes?

Milton Le Cury:   Não. Arnaldo comentava sobre os Mutantes, mas só sobre algumas histórias bacanas. Nunca falou sobre sua saída da banda, nem sobre a Rita. Depois que tocávamos, ele se retirava para o quarto, enquanto a gente ficava na sala, onde também ensaiávamos. Suzana sempre pedia para não fumarmos na presença dele — ela cuidava dele com carinho. De qualquer forma, já evitávamos fumar perto dele. 

Suzana era um verdadeiro doce de mulher e mãe. Ela tinha um negócio de cerâmica de família, localizado na rua Frei Caneca. Era muito criativa também. Eu gostava muito dela. Fomos bastante próximos nessa convivência lá na Cantareira. 

Suzana Braga não cantava com a gente. Ela tinha dois filhos pequenos, André e a filha mais velha, Ariana, com quem também convivíamos durante os dias de ensaio.

Arnaldo era extremamente sensível e inteligente. Ele adorava amplificadores Marshall valvulados, os famosos tube amps, e também curtia muito tocar no piano dele. Apesar de ter uma condição neurológica que era classificada como algum tipo de loucura, ele era lúcido dentro da própria loucura... sabe o que quero dizer? A gente percebia isso, mas era algo normal. Ele era muito sensível, criativo e extremamente amoroso.

— Ele falava de Lou Reed?

Milton Le Cury:  Sim, ele gostava e também era fã do Elton John.

—  Arnaldo viajou para a Europa ou Estados Unidos nesse período?

Milton Le Cury:  — Não! Ele sumiu por uma semana e voltou dizendo que tinha ido para a Inglaterra. Mas acho que não... Foi só uma viagem dele...

— Essa ‘sumida’ era um eufemismo para uma internação rápida?

Milton Le Cury:   Era mais relacionado a essa situação.

— Como você soube sobre a queda dele?

Milton Le Cury:  Suzana nos contou o que havia ocorrido. Fomos informados por ela.

— Como foi para você encontrar Martha Mellinger no Hospital do Servidor Público, naquele momento tão delicado após o acidente do Arnaldo, e mais tarde ouvir dele próprio sobre o episódio envolvendo a tentativa de se atirar e a influência da música ‘Let Me Try Again’? E como foi esse reencontro inesperado com ele no metrô anos depois?

Milton Le Cury: Encontrei Martha Mellinger uma única vez, quando fui visitar o Arnaldo no Hospital do Servidor Público, logo após o acidente. Eu estava entrando no elevador, e ela saía acompanhada de Rita Lee. Mas não me dei conta de que era a Martha. A ficha daquele encontro inesperado na entrada do elevador só caiu depois, quando a conheci pessoalmente no ano passado, em 2024, e percebi que era ela quem estava ao lado da Rita. 

 

Quando Arnaldo recebeu alta e já conseguia falar novamente, contou-nos que havia tentado se atirar. Porém, a blusa do uniforme de internação ficou presa na maçaneta, interrompendo o movimento. Nesse momento, ele se lembrou da música de Frank Sinatra, "Let Me Try Again", e decidiu se lançar novamente. Havia uma marquise. Ele caiu sobre ela. Anos depois, cruzei com ele no metrô. Foi um encontro inesperado que me deixou atônito. 

OBS: Na versão da revista Manchete, diz-se que “Arnaldo caiu no chão de cimento do pátio de estacionamento”. 

No entanto, a versão mais plausível é que ele estava do outro lado, na fachada principal, onde havia uma marquise na entrada do edifício (porta principal). Anos depois, cruzei com ele no metrô. Foi um encontro inesperado que me deixou atônito.

— Pós-acidente: quais foram os shows que vocês fizeram com o Arnaldo, e quem mais dividiu o palco com vocês?

Milton Le Cury:   Nós tocamos com ele no Lira Paulistana e fizemos outro show no Tuca, que foi o último antes do teatro pegar fogo. Com a gente, o Arnaldo apenas cantava. O pianista era o João Diniz, da formação clássica também. Frequentemente nos encontrávamos e tocávamos juntos, como naquele show no Tuca, onde dividimos o palco com o Belchior.

2025

— Você trabalha como ator?

Milton Le Cury: Sou ator também. No ano passado, conheci e reencontrei Martha Mellinger quando trabalhamos juntos no longa Fé para o Impossível. Durante as gravações, fui descobrindo mais sobre ela, até que tudo se encaixou. Só então percebi que já a conhecia — enquanto conversávamos, a lembrança veio nítida à minha mente: aquele encontro na porta do elevador do hospital.

 

Na foto, o ator Milton Le Cury aparece à direita, no set do longa Fé para o Impossível, dirigido por Ernani Nunes.

Fé para o Impossível é baseado em uma história real sobre uma família religiosa cuja mãe sofreu uma agressão violenta no Rio de Janeiro, mas conseguiu uma recuperação milagrosa. Eu e Martha interpretamos os avós das crianças dessa família. Os protagonistas do filme são Dan Stulbach e Vanessa Giácomo, e eu interpreto o personagem do pai de Dan.

 

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