The Doors Desesperado niilismo

The Doors Desesperado niilismo
(Mário Pacheco)


Da fresta da porta da percepção independente e distante a uns seiscentos quilômetros de San Francisco, Jim Morrison e os Doors, planavam alto, e já não fechavam qualquer das portas da consciência, evidênciando uma confusão que se estabeleceu em 1966-1967, quando esta vaga musical, inacreditavelmente rica, emergiu da costa Oeste dos Estados Unidos. Falou-se, fala-se ainda, de West Coast Sound, englobando sob esta designação, grupos muito diferentes, em conseqüência de fatores geográficos, que à primeira vista, pareciam menores sobretudo à escala americana. Contudo estes fatores geográficos, são fundamentais. Genuinamente, só os Jefferson Airplane, os Grateful Dead, Quicksilver Messenger Service, os Charlatans e toda uma miríade de outras formações com nomes que ficaram mais ou menos desconhecidos, eram puros produtos de San Francisco, tanto na sua forma musical, (o que se denominou de acid-rock o ritmo binário e os movimentos individuais (a improvisação) coordenam-se progressivamente até um ritmo sumariamente controlado e preciso como no seu espírito (love, flower-power e ácido).

San Francisco é uma cidade magnífica, essencialmente composta de casas baixas e pitorescas, situada num quadro natural que é um dos mais belos do mundo. Ela não dá nunca a impressão de ser uma grande cidade, ainda que tenha quase um milhão de habitantes (o que, aliás, não é muito para os Estados Unidos) e reina aí uma atmosfera calorosa e sossegada, verdadeiramente única. Los Angeles é, portanto, completamente um outro mundo.

Além disso existe um velho antagonismo entre as duas cidades, ao qual o rock não escapou, por mais surpreendente que isso possa parecer. Como explica Ray Manzarek: “San Francisco e Los Angeles têm uma espécie de rivalidade entre elas. Creio que isso acontece de um modo mais acentuado, por parte de San Francisco... Eles são reticentes em aceitar que se seja natural de Los Angeles. É particularmente verdade na música e também nas equipes de baseball, os San Francisco Giants e os Los Angeles Dodgers”.

Mesmo assim é ser sonhador querer encontrar no rock, esse pretenso testemunho de uma contracultura, uma tal característica, tanto mais que o baseball é um dos elementos mais tradicionais desta América da bandeira estrelada, viril e reacionária, cara a John Wayne.

Como quer que seja, as condições culturais nas duas cidades ao longo dos anos 1965-1966, eram diametralmente opostas. San Francisco foi a sede de um desenvolvimento comunitário e marginal absolutamente único, que se desenrolou isoladamente, totalmente fora dos circuitos tradicionais. É claro que a partir do momento em que ele ultrapassou um nível estritamente local foi rapidamente recuperado, mas em Los Angeles as circunstâncias eram absolutamente diferentes, em conseqüência da herança de Hollywood, pátria do showbiz.

Enquanto que em San Francisco os grupos tocavam sobretudo por prazer e na indiferença geral de love-ins em concertos gratuitos, os Doors tinham desde o início feito parte de um sistema onde o valor se conta em dólares. No fim de 1967, o grupo não se exibia por menos de 10.000 mil dólares por concerto. Seis meses mais tarde este número tinha duplicado. E quando de uma conferência de imprensa em Londres, em setembro de 1968, Jim Morrison iria por as coisas na ordem do dia, para benefício dos espíritos europeus cheios de underground: “Se ser underground significa dar dinheiro e não ganhá-lo, então não somos underground. Dirigimos o nosso próprio campo de atividade. Penso que o termo adequado para designar-nos seria mais o de homens de negócios”.

Era sem dúvida uma maneira um pouco exagerada de assumir a situação comercial do grupo, mas ela era característica da inclinação de Jim Morrison para a provocação, particularmente face à mídia.

Na realidade, retrospectivamente, os Doors aparecem na época como um dos dois únicos grupos importantes cuja música exprimiu plenamente a realidade americana em toda a sua sombria violência. Todos os outros afirmavam essencialmente um novo “sonho americano”, em diferentes graus, é certo, indo do puro idealismo (Dead, Airplane) a um intelectualismo mais acerbo (Mothers of Invention, Fugs), mas em todos os casos com uma vocação marginal ou elitista.

A partir deste momento e durante dois anos, pelo menos, até à aparição dos MC5 e Stooges, apenas dois grupos vão na contracorrente da tendência geral e criam um rock que veicula pessimismo e violência, e também uma certa noção de decadência que só veremos impor-se muito mais tarde. São os Doors em Los Angeles e, em Nova York, um grupo de quem o primeiro disco sairá dois meses depois do deles, o Velvet que tinha o Underground no nome reconhecido como o pioneiro do rock underground.

A analogia entre os dois grupos é singular, se bem que o segundo nunca tenha conhecido a grande popularidade dos Doors. Cada um deles estava ligado a uma grande cidade no seio de um binômio absolutamente indissociável, e as duas cidades em questão são as duas excrescências urbanas mais monstruosas que a civilização americana produziu. É claro que há diferenças consideráveis na música e no estilo geral dos dois grupos, mas estas mesmas diferenças continuam o paralelo, porque correspondem a maior parte das vezes àquelas fundamentais que existem entre as duas cidades.

Nova York, situada na costa leste e carregando portanto uma herança histórica bem mais antiga, é uma espécie de variante desproporcionada da concepção tradicional, européia, da cidade. Apesar do desenvolvimento dos arredores do Bronx, de Queens e de Brooklyn, a verdadeira Nova York, a de Greenwich Village e de Harlem, é Manhattan, limitada em superfície pela sua situação insular. Por isso desenvolveu-se em altura e profundidade, tornando-se uma selva cada vez mais inquieta e incontrolada. É uma outra forma de excesso urbano, caótico e adulterado, enquanto que em Los Angeles ele é geométrico e mecanizado. De um lado, Sodoma, do outro o “melhor dos mundos”, Andy Warhol e Hollywood. Esta distinção é, evidentemente, muito esquemática, mas corresponde apesar disso a uma realidade que encontramos na música dos dois grupos. Insidiosa, depravada, distorcida, a do Velvet Underground é o sumo imaginário de uma Nova York arquetípica de fim de século. O perfume das ruas de Nova York ou do seu sórdido metropolitano arde, queima, entontece. E fede. Sabemos como a dos Doors se identifica com Los Angeles. Mas, quer seja com o suporte da voz insípida de Lou Reed ou com a sonoridade da de Jim Morrison, ambas exprimem a mesma angústia torturada, a das cidades americanas, cabendo ao novaiorquino a tarefa do herói para a década seguinte: lixeiro poético dos restos do sonho.


Dito isto, não seria no entanto conveniente concluir que os Doors representavam uma negação do movimento que animava a juventude americana desta época. Bem pelo contrário, eles constituíam um elemento fundamental e indispensável. Contrabalançando com o otimismo alucinado em que o movimento planava, eles permitiram-lhe manter-se em contato com uma realidade que iria em breve fazê-lo voltar a si, de uma maneira cruel. Quando a bela viagem hippie se tornou bad trip, a surpresa não foi total e a energia existente não sucumbiu completamente, mas mudou de forma de expressão. A partir desse momento, os Doors, tal como os Velvet, fizeram cada vez mais o papel de precursores. E a sua música envelheceu melhor.

 

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