Verdadeiramente Underground
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Verdadeiramente underground
(Mário Pacheco)
Nova York não é somente Bob Dylan, o papa da folk music. Mas Dylan é sua maior expressão no rock: um reflexo sócio-político da mudança dos tempos em meados da década de 60.
E quando estas novas ideias começam a ser assimiladas, surgiram os anos 70, que bagunçaram novamente o cenário pop. E para certificarem de que “o sonho acabou” e a realidade da cidade ficou, para quem quisesse ver ou ouvir os chamados malditos da era do poder da flor se tornaram os profetas de seu tempo e espaço, Lou Reed e Patti Smith e o punk outro rótulo maldito dos anos 60, foi reciclado como desprezo ao esquema multinacional das gravadoras, novamente o underground ressurgiu aproximando-se de sua função original libertar-se dos intentos de corrupção por parte dos esquemas tradicionais.
O outro rock de Nova York começa com um grupo chamado The Fugs (poetas marginais, críticos violentos e mordazes da sociedade americana) e com o Blues Project (a primeira banda branca de blues dos Estados Unidos).
Apesar das diferenças musicais, este pessoal compartilha uma história inteira por trás, envolvendo tanto os aspectos políticos como sociais e culturais, reflexos diretos herdados da América conformista e repressiva da década de 50, que explodiu através deles nos anos 60. As músicas deles refletem uma quebra nos valores da sociedade, até hoje irreparados, que começou com a Beat generation e foram acrescentados à contracultura os valores do Buda, mestre da auto-perfeição; Gandhi, praticante, na política, da tática da não violência; Cristo, com “o amor acima de tudo”; São Francisco de Assis, pregador do desapego de todos os bens materiais; Príncipe Kropotkin com seus ideais anarquistas, onde ninguém é chefe de ninguém; Tolstoi e Thoreau, pregadores da volta do homem à Natureza. O sociólogo Theodore Roszak que estudou o fenômeno da contracultura no livro "The Making of a Counter Culture", diz: “Pergunte a qualquer psicanalista e ele dirá que um dos maiores focos de doença em nossa sociedade reside nos homens que combatem e sufocam o componente feminino de sua personalidade e nas mulheres que sufocam o componente masculino”.
Convertido ao rock, Bob Dylan materializa no álbum-duplo "Blonde on Blonde", uma forma visionária quase apocalíptica que na sua essência refletia uma percepção muito mais viva e visceral do seu meio do que as suas mensagens mais explícitas de antigamente. "Blonde on Blonde", lançado em maio de 1966, testemunha a acentuação das fórmulas posteriores e marca o início de um longo silêncio do poeta.
O Living Theather encena essas alegorias visionárias, que são caricaturizadas, comercializadas, ou filmadas por Andy Warhol e expostas aos jovens que se opuseram à guerra do Vietnã e ao imperialismo, pregando uma inversão na moral vigente, um retorno aos valores básicos do humanismo.
É sabido que em princípios da década de 60, os estudantes americanos começaram a mobilizar-se contra o racismo, pelo desarmemento nuclear e contra a presença americana no Vietnã. O rock’n’roll dos anos 50 perde toda a sua força de expressão - era música de garotos - enquanto rebelião: os jovens preferiam ouvir o folk que refletia, nesta época até o festival de Newport em 1965, um protesto contra a situação vigente. Nesse ano, uma pesquisa entre universitários americanos sobre ídolos colocou a cantora Joan Baez entre Luther King, Albert Schweitzer e Sartre. Magra, 28 anos, meio escocesa, meio mexicana, ela fez de si mesma um instrumento de protesto e de seu canto um meio de combate. Presente nas passeatas contra a discriminação racial nas cidades sulistas, fez discursos contra a guerra atômica e foi presa em várias manifestações.
Ou, ainda, o blues, num gesto de interesse solidário aos negros em sua luta pela igualdade de direitos.
Nesse ambiente de contestação criou-se um circuito marginal entre Boston e Nova York, que chegou ao seu auge em 1965, em meio a uma situação onde a guerra do Vietnã dividia opiniões e os jovens começavam a se mobilizar em protestos, rasgando as convocações militares, organizando os teach-ins (palestras nas universidades contra a guerra) e a praticar o drop-out (cair fora da escola, de casa etc). Eram os sinais de mudança e oposição à Amerika. Quem melhor retratou toda esta movimentação em música foi Bob Dylan.
Em cena os marginais
The Fugs não foi um grupo de rock comum. Ed Sanders, Ken Weaver e Tuli Kupferberg conhecem-se nos happenings de leitura, eram poetas mais chegados a chocar a audiência com suas sátiras e obscenidades. Suas atividades com a poesia levaram-nos a entrar em contato como o pessoal de Onan City, na Califórnia, onde viviam os sobreviventes da Beat generation. Sanders chegou a lançar uma antologia de poemas inéditos de Allen Ginsberg, William S. Burroughs, Norman Mailler etc., que tinha o simpático (e pornográfico) nome de Fuck-You, A Magazine of Arts - pouco tempo depois teve que ser vendida por correspondência, devido à censura que se opôs violentamente.
Este pessoal era a nata do underground de Nova York - marginais por excelência e radicais por definição. Quando resolveram cair no rock, transportaram o “essencial” de suas poesias para os shows onde, no mínimo, as alusões ao sexo em suas músicas eram representadas ao vivo. Isto chocava aos desavisados e moralistas, mas era a essência de suas contestações de um dos seus números favoritos (uma sátira aos valores americanos mais sagrados e em seguida cenas de torturas no Vietnã), foram criando uma sólida reputação e um lugar na história do rock.
The Fugs foi o primeiro grupo verdadeiramente underground nos Estados Unidos, abrindo caminho para gente pesada como Stooges e MC5, possibilitando toda uma vertente musical que, a seu modo, o punk americano dos anos 70 assimilou, dando continuidade e atualidade ao trabalho.
Nova York. East Village. Pela rua Joe MacDougal passa muita gente, entre a qual se destacam bastantes turistas. Numa esquina, tráfego paralisado. Os policiais convidam os peões a circular, mas ninguém sai do sítio. Contemplam os escaparates (armário envidraçado) no vestiário do MacDougal Street Players’s Theatre. Para aquela noite anunciam-se três espetáculos - três vezes o conjunto The Fugs, o agressivo conjunto novaiorquino, que pode considerar-se como um dos mais “maliciosos” do mundo.
Tomamos lugar nas cadeiras. Ar condicionado. A cortina deixa antever o palco e as luzes os seus focos sobre o corpo de um moça completamente nua. Três guitarristas, dois bateristas e um comentarista executam um rock-pesado espécie de hino a esta moça, a esta supergirl.
Quero uma moça / Que possa amar como um anjo
Cozinhar como o diabo / Mover-se como uma bailarina / Trabalhar como um cavalo /Sonhar como um poeta /Fluir como uma corrente
Em seguida, os músicos dispõem-se como um coro e cantam a higiênica sociedade norte-americana ou incensam a Igreja. De repente, desaparece toda algazarra e mostram-se cenas terríveis, apresentadas de maneira extremamente realista: uma cena de tortura no Vietnã, ao mesmo tempo que The Fugs cantam o seu hit sobre a matança em prol da paz: Kill for Peace.
Tuli Kupferberg escreveu esta canção. Não foi famoso como músico, mas sim como poeta underground. Vive na Lower East Side que significa bairros de lata, criminalidade. O Lower East Side é para a população branca de Nova York, o que Harlem é para a negra. Ali, manifesta-se de forma clara a brutal discrepância da injusta sociedade americana, é o subúrbio onde se refugia o underground e onde ele mesmo foi assaltado e roubado três vezes em meio ano.
“Sou o líder do The Fugs e talvez o mais velho cantor rock. Antes de iniciar o movimento Beat eu vivia de forma mais ou menos boêmia. Nasci em Nova York e fui criado no meio do bairro Oeste de Manhattan, onde se misturam todas as nacionalidades européias. Aos treze anos de idade, radicalizei-me politicamente até que abandonei a casa paterna e me transferi para o Village”.
Como poeta, ganha a vida com trabalhos eventuais. As suas publicações multiplicam-se. A sua coleção de sugestões obteve um êxito espetacular e contém os 1001 caminhos para alcançar a felicidade na vida, sem trabalhar, encontrar o amor e evitar a guerra:
Sugestão 332: Reza para que Deus seja um pacifista.
Sugestão 471: Evita a prisão ou
Sugestão: 472: Casa-te.
Sugestão 473: Casa-te duas vezes ou
Sugestão 474: Evita duas vezes a prisão.
Sugestão 475: Casa-te três vezes e corre ao psiquiatra.
Sugestão 1001: Leve a paz ao Vietnã. Arranja férias e obriga toda gente à alegria.
Os três companheiros trabalharam no início como letristas, sem terem muito a idéia do que era a música. Mas em 1965 tiveram a “vivência de conversão”. Passaram a ouvir os Beatles e Bob Dylan e descobriram deste modo, uma possibilidade de transmitir as usas idéias nas suas canções beat. Enquanto que os Beatles se aproximaram do novo idioma através da música, The Fugs fizeram-no através dos textos, método que, aliás, seria criticado por mais do que um crítico.
Eminentemente político
Juntaram alguns instrumentos musicais. Tuli conseguiu uma quantidade apreciável de trastes velhos e duas enormes malas pretas para transportá-los. Fizeram um espetáculo em que Tuli ilustrava o argumento com bonecos, gestos, etc. Até aí The Fugs só eventualmente tinham experimentado o campo musical. Produzem um espetáculo total com cerca de hora e meia de duração. Durante os dez minutos iniciais, há pelo menos dez pessoas que abandonam a sala. Geralmente são pessoas da alta burguesia.
“Mas o nosso intento é conseguir que uma grande parte dos espectadores indecisos se ponha do nosso lado. Isto acontece todas as noites. No início do show há muita insegurança e nervosismo. Alguns espectadores abandonam a sala e outros olham nervosamente a reação dos vizinhos. Mas como há sempre alguns que se divertem e aplaudem, também outros reagem do mesmo modo, primeiro timidamente, depois com maior entusiasmo. Assim começam a entender o espetáculo e a aplaudi-lo por sua conta. Desta forma se desenvolve uma espécie de processo educativo”. (Tuli Kupferberg).
O espetáculo dos Fugs é eminentemente político. Resulta evidente na sua crítica social quando na canção Nothing contrapõem ao ídolo da produtividade norte-americana a negação total do nothing. Significativamente, encabeçam as manifestações de rua em Nova York, altura em que Tuli anuncia:
“As nossa ações precipitam-se. Será algo de grandioso e excitante, conseguirmos sobreviver a tudo isto”.
A ordem é acabar com os preconceitos
Mas, do outro lado do rock havia um pessoal mais interessado em música, que vinha fazendo, como os Fugs, muito sucesso pelos clubes do Village, Muita gente os chamavam de Beatles Judeus, a primeira banda de blues e ainda por cima branca: The Blues Project. Era um grupo de excelentes profissionais, veteranos nos círculos do folk, que apresentava dois destaques: Danny Kalb - um guitarrista espantoso - e Al Kooper - que fez nome tocando nos primeiros discos de Bob Dylan. Mas o que fez o Project? Simples: músicas dos mais variados estilos como rock, folk e blues. Acabou com o preconceito de que para sobreviver era necessário gravar compactos ou músicas longas, pois nunca teve que dar satisfações à parada de sucessos. Resultado: um dos maiores grupos de rock dos Estados Unidos, em todos os tempos.
O Blues Project foi muito importante por influenciar muitos outros grupos e dando origem ao Blood, Sweet and Tears, em 1967, fundado por Al Kooper e Steve Katz - recém-saídos do Blues Project - numa tentativa de fusão do jazz com o blues e o rock. Muita gente não gostou, mas mesmo assim valeu, e hoje, o Blues Project é considerado um dos principais valores do som de Nova York.
E chega o underground
Entre 1964 e 1967, o rock se desenvolveu e tornou-se popular no mundo inteiro, sendo que os mais diferentes estilos foram se interpondo, como o dos Rascals, por exemplo, um grupo que atacava de rock, blues e soul, fazendo enorme sucesso entre 1965 e 1968. Ou, ainda, o próprio Blood, Sweet and Tears, que lançou um estilo, trazendo atrás de si um monte de gente e a atenção dos rockeiros para os metais que, a partir daí, viraram moda no rock.
Mas, foi a música underground que trouxe as maiores inovações: com a guitarra de Jimi Hendrix - descoberto por Chas Chandler, ex-baixista do legendário The Animals (de onde saiu Eric Burdon), no Cafe Wha, no Village, em Nova York - com seus blues psicodélicos, que expandiu as fronteiras do rock e explorou as possibilidades da guitarra a extremos nunca antes alcançados por nenhum outro guitarrista; ou o Vanilla Fudge, considerada a primeira banda pesada, explorando os efeitos clássicos do órgão no rock pesado; ou, ainda, a United States of America, tida como a primeira banda eletrônica. Mas foi com Lou Reed e o Velvet Underground que o espírito do submundo de Nova York veio à tona.
Sexo e política
A revolução do rock contra Mr. and Mrs. Clean White America definição de Frank Zappa com a ajuda dos ritmos negróides e os textos políticos, dirige-se contra a repressão, que se manifesta com especial clareza no âmbito sexual da jovem geração.
“A sociedade estava sexualmente reprimida, pelo que o baile, constituía uma tentativa desesperada para estabelecer um pouco de contato com o outro sexo” - Frank Zappa.
Desde o momento em que os jovens deixam de fazer caso dos tabus sexuais, começam a por em causa a autoridade paterna.
“A mamã e o papá não estavam informados sexualmente e eram uns recalcados sexuais (muitas das coisas corrompidas da nossa sociedade são uma conseqüência direta do fato de, os indivíduos que fazem as leis, serem sexualmente recalcados) e não viam razão alguma para que os seus filhos crescessem de forma diferente. (Porque razão teriam eles de desfrutar de um momento para outro, de toda essa inibição?). O sexo é para procriar” - Frank Zappa.
Tuli Kupferberg formula observações igualmente claras a respeito das relações entre sexo e política: “Regra geral, os indivíduos que cometem crimes políticos, são uns desgraçados no campo sexual”.
Com estas afirmações, tanto Kupferberg como Zappa, referem-se aos trabalhos realizados por Wilhelm Reich que alcançou enorme audiência entre os jovens norte-americanos, muito antes de ser conhecido na Europa. O psicanalista vienense, foi o primeiro a equacionar as relações entre a moral sexual e a falta de liberdade social do homem. Os seus resultados levaram-no à fundação da Gesellschaft fur Sexualekonomei und politik, SEPOLL (Sociedade de economia e política sexual).
“Durante cinco mil anos, tomamos o sexo como algo maléfico e repugnante e demos-lhe, deste modo, mais importância da que ele realmente possui” - Tuli Kupferberg.
A invenção do disco-pirata
Equivalente ao estrondo da invenção da pólvora foi o disco-pirata. De imediato muitos perceberam o raio de ação e exclamaram: -“Pronto, furaram o sistema. Está aqui na Rolling Stone. Leia! Um tal de Larry Gutenplan acaba de inventar o disco-pirata.
Larry Gutenplan, o inventor, foi preso no Village vendendo um punhado de cópias do bootleg The Best of 67, com sucessos dos Beatles, Stones, The Doors e até os Monkees com I´m a Beliver. O disquinho custava 1 dólar e 79.