Nos céus de compota
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Nos céus de compota
(Mário Pacheco)
Tudo começara dois anos antes em San Francisco e na verdade, esse estranho verão de 1967, vibrava... tudo parecia possível, e para sempre nadava-se em pleno idealismo florido; os breves sonhos e fugas proveniente da Califórnia, que acabava de invadir Londres, e ninguém importava-se com a efêmeridade do fenômeno.
A Inglaterra não ficaria atrás da anarquia sonora americana, e teria personagens, bardos e mártires. O fogo se propagava por um universo mais colorido - uma reação muito normal para quem abria a sua mente numa cidade cinzenta, mas o movimento era então underground no sentido mais estrito do termo, reservado a um punhado de iniciados e de precursores que se juntavam numa pequena sala de Tottenham Court Road, batizada UFO (Unidentified Flying Object) e em alguns outros clubes, ao som de grupos cujos nomes eram ainda mais surpreendentes: Soft Machine, cujo título fora tirado de um livro de William Burroughs, nesse ano invadiu as paradas de sucesso do Reino Unido com um compacto que trazia uma música cantada por um sujeito cuja voz passava bem longe dos padrões comerciais, a música era Love makes sweet music e o cantor Robert Wyatt também baterista. Pink Floyd, resultado da obseção de Syd Barrett, em ser maior que os Beatles... Um tempo que o heavy-metal era apenas uma expressão maluca no meio de um outro livro de ficção científica, o Nova Expressa, de William Burroughs.
Donovan, baladeiro hippie escocês, ligado à Índia e “praticante de suavidades libidinais, discerniu a alma do folk tradicional, elevando-o a estrepolias cristalinas”. O som do Incredible String Band utilizava um instrumental riquíssimo, que variava do violão à cítara, do gimbri ao piano, em trabalhos de imaginação incomum vivendo às custas de paraísos artificiais. O prodígio Steve Winwood encerra o Spencer Davis Group para inserir o jazz no psicodelismo do Traffic. Roy Wood, um anarco-dandy, forma o dadaístico The Move, liderando happenings sarcásticos de 1965 a 1971. Marc Bolan, um gênio, cria o abismo do romantismo psicodélico com seu Tyranossaurus Rex. David Bowie, na época, liderava o desconhecido Davey Jones & The Lower Third.
Enquanto não cessam de aparecer novos grupos (Badfinger, Bonzo Dog Band, The Nice, The Crazy World of Arthur Brown e seu circo de horrores) e a realeza consagrada dos Beatles, Kinks, Who, Stones fazendo reverências infinitas.
E, depois bruscamente, alguns meses mais tarde, “isso” tinha literalmente explodido publicamente. As ruas cinzentas e feias de Londres, de repente tinham-se identificado com as de Frisco, belas e luminosas, vertiginosas, pela magia de uma horda florida e de cores berrantes, que deixava atrás dela odores de incenso e de cannabis.
Em maio, os jornais e correspondências comentavam sobre os hippies de Londres: flores nos cabelos, sininhos à volta do pescoço, etc.
Aliás quem vivia na capital apenas há um ano, estava manifestantemente fora da situação, mas a proporção real da juventude londrina que de diversas formas se identificava com o movimento, tornou-se rapidamente majoritária. Eles vinham de todos os meios, eram estudantes ou operários, para várias vezes se encontrarem drop-outs em conjunto, indo as suas idades dos quinze, ou menos, a uma juventude indeterminada. Os pais, cujos filhos desapareciam de casa, os jornais e as autoridades de todas as espécies que viam a sua bela juventude inglesa a degradar-se, a fazer amor, a vestir-se com cores berrantes e a esquecer os valores tradicionais do Império, interrogavam-se com fleuma inglesa sem compreenderem exatamente ou receberem respostas como seus homólogos da Califórnia.
A unidade e a espontaneidade reais desta juventude não ia durar muito, é sabido, mas no meio de tudo isso, as centenas de estudantes europeus borbulhosos que, como todos os verões, desembarcavam em Londres, continuavam a amontoar-se no “Kilt” ou no Enfants Terribles, para aí “recrutar companheiras inglesas” nos light-shows.
Talvez pudesse ter sido de igual modo para a maioria. Quando desembarcavam na Waterloo Station não valiam muito mais do que eles, apesar de tudo - somente um pouco mais curiosos, um pouco mais insatisfeitos, um pouco mais em dia, um pouco mais cabeludos (tão pouco!)... Foi a combinação de tudo isso, aliado a um pouco de sorte que fazia os visitantes rapidamente a descobrir que o UFO estava instalado num velho depósito dos caminhos de ferro sem utilidade pública, conhecido pelo nome de Roundhouse...
É impossível esquecer o choque da onda que apanhavamos quando entravamos nesta imensa (pelo menos parecia-o) construção circular, antiga, com o teto alto. Aí pairava uma fumarada onde o incenso se misturava a outros odores, então desconhecidos... por muito mais tempo. E essa multidão estranha, cabeluda, coberta de flores, de colares e de bijuterias bizarras, uns vestidos de peles, outros quase nus... Essa multidão que ondulava como num sonho, ao ritmo de um raga indiano, ou explodia alegremente ao som de Rainy Day Woman, de Dylan, essa multidão banhada pela luz dos light-shows, era bela... Uma beleza miraculosa, impossível, tão frágil, que não podia ser senão efêmera, é certo, mas uma beleza que não hesitava em ser uma reminescência... Descobria-se o que a palavra vibração significava.
Tudo se passou então muito depressa, durante várias semanas Vivia-se em pequenas vagas baratas, na Russel Square, alimentava-se de leite surrupiado das portas logo depois da passagem do leiteiro ao amanhecer, no regresso das noites irreais do UFO ou de outras. Desse tempo restou apenas um caleidoscópio de imagens e de sons: todos cobrindo-se, todos os dias, de rendas, de veludos e de cetim, e também das flores colhidas nos canteiros da Russel Square; vários percorrendo o UFO em todos os sentidos, perguntando com um acento que tornava a tentativa ainda menos cool: Tens?; sorrisos em caras de desconhecidos ou desconhecidas, que rapidamente se tornavam familiares e que nunca mais voltariam a ver. Sem fronteiras, tudo era simples, tudo era possível...
Este gênero de festa continuou mais tarde num local mais pequeno, depois sucessivamente no Middle Earth, no Alexandra Palace e novamente no Roundhouse que acolheu o Pink Floyd como banda permanente. Pontos de encontro da contracultura londrina. A atmosfera era nova e se se tornava necessário mudar de recinto porque todos os pretextos eram bons para fechar as portas desses “templos” onde toda a gente se sentia tão bem. Falava-se de droga mas, em proporção, não havia mais pessoas a “fumar” que bons burgueses a beber a alguns metros ao lado.
Futilidade, inconsciência? Talvez. É de bom tom, hoje, ser cínico a propósito deste período, mas o sonho, por mais breve que fosse, era paradoxalmente real. E envolvendo tudo isso como um catalisador irresistível, a música: no UFO.
Soa o sinal para começar. A bateria dá o primeiro golpe que se ampliando sem pressas: uns acordes de guitarra fluem tenuemente do conjunto. Assim nasce uma colagem, música das esferas onde os diferentes campos sonoros se sobrepõem uns aos outros: música eletrônica, órgão, contraponto, solenidade religiosa, pesadelo e mudança repentina de ânimos; primeiro um fragmento doce, logo seguido de sons estranhos, como assobios, rugidos, gritos de cuco. Misturavam-se bramidos, sinos, choros.
A tudo isso se juntam efeitos luminosos sempre novos e variados, com cores que dão nas vistas e que obrigam a uma absorção completa de jogos sonoros e de luzes do conjunto.
Entre a passagem dos grupos, nas rádios piratas (abençoadas sejam elas), por toda a parte... All you need is love, clamavam os Beatles, enquanto que Scott McKenzie trazia uma visão da terra prometida no seu San Francisco (Be sure to wear flowers in your hair), e que os Stones tornados mártires do flower-power, quando da prisão de Mick Jagger e Keith Richards, declaravam: We love you, iniciada tendo por fundo o ruído de uma porta de cela rangendo... Estavam a levar a todo o mundo, a ampliação essencial dos meios tradicionais da música.
Todos falavam de amor, já não do amor galante - She loves you, dos anos precedentes, mas um amor universal que ia, com a ajuda do LSD e de alguns joints, mudar o mundo. McKenzie era o único americano a penetrar nas paradas inglesas, sempre ocupadas por Tom Jones e outros Tremeloes. Pelo contrário, as estações piratas e os clubes underground passavam regularmente os seus discos e encontrava-se aí a mesma mensagem, em particular nos Jefferson Airplane, os convidavam a encontrar Somebody to love e faziam uma interpretação sob o efeito do ácido, de Alice no país das maravilhas - White Rabbit.
Um casal de holandeses, Simon Posthuma e Marijke Koger, designers de roupas com cores vivas inspirados, nos desenhos, pela arte nova de 1900. Tinham montado uma pequena empresa para produzir e escoar a sua mercadoria: The Fool. Paul McCartney recorreu a eles para a abertura da boutique Beatles Apple Shop, n 49 em Baker Street. As lindas cores muito vivas, muito ácidas atingiam todos os grupos musicais, todas as artes plásticas. Os Stones, depois Hendrix, os Cream, vestiam-se com a fantasia mais desabrida, como boêmios de luxo.
A explosão de vitalidade que a capital inglesa vivia durante 1967 não se limitava às roupas. Uma atividade muito mais profunda parecia estar a manifestar-se, conhecida no exterior unicamente pela vaga designação de flower-power. Desde o consumo do ácido pelos músicos ingleses, durante o biênio 1965-66, que um certo número de intelectuais se tinham ligado a atividades culturais diferentes das que existiam na altura.
Poetas organizavam happenings (Mike Horowitz, Jeff Nutall); jovens autores tentavam fazer mexer os media. Uma equipe formada por Miles, Jack-Henry Moore, Jim Haynes, tinha montado uma livraria Lovebooks, onde se podia encontrar toda a espécie de livros sobre a experiência alucinógena, a poesia da Beat generation, os textos sagrados da Índia, do Japão, do Tibete.