POR QUE MORRISON É UNIVERSAL?”

jim morrison lapide

 

   POR QUE MORRISON É  UNIVERSAL?

por Roberto Gicello

 

Às 8h57 da manhã, do dia 29 de abril passado, meu editor-chefe, Mário Pazcheco, me fez uma pergunta-pauta assim, do quase nada: “Gicello, me explica por que o Jim Morrison é universal?”

 Durante uma quinzena, não me eludi nem me iludi – porquanto não fujo de desafios, tanto mais fico ouriçado quando desconheço algum assunto ou personagem. Minha erudição conicquiana e meus pesquisamentos me ajudaram a fazer esta matéria, a responder à questão-título, que me incomodou desde o início como uma dor de dente.

 Para começar, depois de me debruçar sobre 14 acepções do adjetivo “universal” encontradas no Dicionário Aurélio Digital, escolhi a número 6 para trabalhar o conceito: “Que não se atêm a uma especialidade; que abrange quase por inteiro um campo de conhecimentos, de ideias, de aptidões, etc.”, ou seja, pode-se dizer que Jim Morrison seria universal porque seu espírito estava acima das paixões comezinhas.

 Aí a questão toma um rumo tão fascinante quanto espinhoso: por que Morrison teria seu espírito acima das paixões comezinhas?

 Embreemo-nos pelo espírito do seu tempo (o irretroativo Zeitgeist alemão).

 

James Douglas Morrison nasceu em Melbourne, litoral da Flórida, exatamente dois anos após os Estados Unidos entrarem na 2ª Guerra Mundial – dia 8 de dezembro de 1943. Portanto, o encontro de todos os fantasmas das duas gerações de norte-americanos que o precederam viveram e lutaram nas grandes guerras. Ele próprio cresceria sob as ameaças da Guerra Fria e logo avistaria os espectros descarnados de seus conhecidos na Guerra do Vietnã.

A construção do mito

Em 1947, o pequeno Jim teria testemunhado um acidente de carro no deserto: um caminhão com índios nativos americanos capotou e deixou diversas vítimas ensanguentadas à beira da rodovia. Jim faria uma alusão ao acidente na música do Doors, "Peace Frog", no álbum Morrison Hotel de 1970. Morrison afirmava ter sido este o evento mais formativo de sua vida, o qual abordava recorrentemente nas imagens de suas músicas, nos poemas e até nas entrevistas. Como não se criam mitos sem narrativas simbólico-imagéticas, sua irmã, Anne Robin, teria dito sobre o episódio: "Ele gostava de contar essa história e exagerá-la. Ele disse que viu um índio morto na beira da estrada, e eu nem sei se isso é verdade".

Um amigo de Jim declarou no documentário “Rock Poet” (2010), de Jon Brewer, que “A verdadeira tragédia de Jim Morrison é que ele tentou obter, a todo custo, uma forma de arte popular basicamente dionisíaca, como o rock, e uma forma de arte basicamente apolínea, como a poesia”.

Para não nos perdermos em exibicionismos esquizóides e academicismos burlescos, vamos facilitar as coisas:

 

Mitoglossário #DoProprioBolso

Apolo

Dionísio

Deus do Sol, luz, oráculos, conhecimento, cura, doenças, música, poesia, canções, dança, arco e flecha, manadas e rebanhos e proteção de jovens

Deus da videira, colheita da uva, produção de vinho, vinho, fertilidade, loucura ritual, êxtase religioso, teatro

 

Difícil, dificílimo andar na corda bamba entre estas duas deidades.

Desde cedo, Morrison foi leitor voraz. Inspirou-se e deliciou-se em diferentes filósofos, poetas e romancistas. Friedrich Nietzsche, cujos pontos de vista sobre estética, moralidade e a dualidade apolínea e dionisíaca confirmam este viés de sua personalidade artística e existencial. Preciso lembrar que, ainda adolescente, seus professores flagraram-no lendo obras sobre demonologia dos séculos XVI e XVII, obtidas na Biblioteca do Congresso Americano. O estilo do poeta simbolista francês Arthur Rimbaud mais tarde influenciaria a forma dos curtos poemas em prosa de Morrison.

Por conta do fato de seu pai ser militar, Jim morou em mais de uma dúzia de cidades norte-americanas durante sua infância e adolescência. Aos 19 anos, foi preso em Tallahassee, depois de fazer uma brincadeira enquanto estava bêbado em um jogo de futebol – pilhéria de mal-gosto, impatriótica e ofensiva aos valores americanos.

No mesmo ano em que Morrison se muda para Los Angeles e ingressa na Universidade da Califórnia (UCLA), seu pai comanda uma divisão de transportes de tropas norte-americanas que produzem um sério incidente no Golfo de Tonkin, na fronteira marítima entre o Vietnã e a China. Na UCLA, Morrison conhece o teatro surrealista de Artaud, o qual lhe impacta fundo e exuma sua sensibilidade poética sombria através de uma teatralidade cinematográfica. No ano seguinte, ele se gradua em Artes Teatrais da Faculdade de Belas Artes. Chegou a fazer uns poucos filmes, experimentais e documentais – retalhos de cinema.

The Doors

No verão de 1965, em Venice, Califórnia, com Ray Manzarek, Morrison fundou o Doors. A banda viveu dois anos patinando na obscuridade, até explodir como uma granada numa gruta de estalactites: "Light My Fire" de Robby Krieger virou o o single número na América dos Estados Unidos.

Daí em diante, Morrison escreveu (e co-escreveu) muitas canções Thos Doors: "Break On Through", "The End", "Moonlight Drive", "People Are Strange", "Hello , I Love You "," Roadhouse Blues "," LA Woman "e" Riders on the Storm ". Gravavaram um total de seis álbuns de estúdio. Todos venderam bem e foram agraciados pela crítica e pelo público.

The Doors, e sua cosmogonia, com tintas fortes de blues, eram compostos por John Densmore, na bateria, Robby Krieger, na guitarra, Phil Manzarek, nos teclados, e Jim Morrison, the vocal-leader.

Após dobrar as esquinas da fama e da fortuna, Jim Morrison & The Doors viram-se no palco soteriológico dos 1960, dedicados ao papel de sacerdotes da nova religião para a juventude do pós-2ª Guerra: o rock’n’roll. As amabilidades antiquadas dos musicais de Hollywood e dos bailinhos da década anterior eram sufocadas pela fúria da contracultura antiguerra do Vietnã, antirracismo ancestral – tudo antídoto contra o tédio e contra a opressão. O som e a fúria das imprecações açoitando a sociedade do consumo. Jim Morrison representava – como seus pares, psicodélicos turistas das estratosferas – o indócil e indomável, o doce e o gentil. O palco girava em luzes e versos doridos, como um tabernáculo lisérgico, como As Portas para a Assembleia dos lucifanáticos, entrebêbedos, entredoidos entretidos pelo LSD – que deixava o público confortavelmente entorpecido pelo concerto de algumas poucas horas – como monges arrebatados por longos recessos nos mosteiros medievais, ao som de cantos gregorianos, à alva de cada dia de recolhimento e fé na esperança da salvação.

Sendo o próprio abismo, sem hipocrisias e punitivismos vãos, o rock’n’roll salva! Tire a voz do rockeiro e ele estará definitivamente condenado – como condenado à fogueira foi o pensador italiano Giordano Bruno, que teve a língua decepada antes de ser amarrado à estaca e arder na Piaza dei Fiori, na Roma dos papas no ano de 1600, por ter escrito coisas tais como "O mundo é infinito porque Deus é infinito. Como acreditar que Deus , ser infinito, possa ter se limitado a si mesmo criando um mundo fechado e limitado?".

O Rock’n’roll – de Morrison e seus contemporâneos – é fenômeno da sociedade capitalista, que faz recrudescer as demandas espirituais da juventude sufocada pelas ruínas e pelos apelos ideológicos de um mundo cindido, como plangidos nos versos de Jim, disparados como balas de uma metralhadora poética, sacada do livro Wilderness: “What are you doing here? / What do you want?/ Is it music? / We can play music. / But you want more. / You wnat something & someone new. / Am I right? / Of course I am. / I know you want. / You want ecstasy / Desire & dreams.(...)”.¹

Guilherme Gontijo Flores, do sítio Escamandro – Poesia e Tradução Crítica, afirma que Jim Morrison “(...) sintetiza o peso da mensagem na leveza do verso e na simpleza das palavras, e abre um grande leque de possíveis interpretações à escolha dos que o lêem”, e que “Xamanismo, cultura ameríndia, expansão da consciência e transcendência da mente são temas recorrentes na sua poesia”.

Paris e Κατά τον δαίμονα εαυτού

Páginas e páginas aqui não preencheriam o vazio do universal de Jim Morrison. Mesmo porque já existe material infinito falando de seu gênio, de sua poesia, de seus achaques e relacionamentos, do álcool e da heroína e de seus últimos instantes.

Fui orientado, num sonho editorial, a escrever algo “vulgar”. Não levei a mal, mas não levei a sério meu sonho. Devo dizer que nosso herói pode ter sido tudo neste mundo, menos vulgar. Morreu aos 27 anos. Ah, os 27 anos! Idade letal, idade ideal e lendária para morrer no zênite da consagração no universo do rock’n’roll e do pop – e que não nos deixam mentir Janis Joplin, Jimi Hendrix, Alan Wilson e, já na casa do Terceiro Milênio, Amy Winehouse. Aliás, numa entrevista concedida em outubro de 1970 (sete meses antes de sua morte) foi-lhe perguntado o que estaria acontecendo estes ícones da música e “por que eles estariam morrendo assim [tão jovens]”. Ele respondeu, com ar blasé:

Eu acho que a grande explosão criativa de energia que aconteceu há três ou quatro anos e foi difícil de sustentar e, para pessoas sensíveis, eu acho que elas podem estar insatisfeitas com qualquer coisa – exceto as alturas – e quando a realidade deixa de cumprir sua visão interior, eu acho que eles ficam deprimidos. Mas essa não é minha teoria sobre o porquê as pessoas morrem...

Pode-se imaginar, neste epílogo parisiense, sua inexcedível sensação de protestar seus silêncios interiores, sufocando as tensões com cálices de vinho caro e favos de mel preenchendo o vazio da solidão. E com as drogas mais danadas e danosas, quem sabe à sombra das lembranças dos tempos da inocência. Escutasse águas-vivas cantantes, hosanas em céus violáceos, quem sabe retornasse à sua adolescência livresca, fresca – tempos de zumbidos de medos, tempos de gritos dragontinos. Quem sabe, na banheira do derradeiro banho ele não rebobinasse a fita do público ardente – atreito aos feitiços e às energias primitivas que emanavam de sua voz, de seu riso liberto e libertino, improvisando uma vocalofagia verde-zinco, a fita do público em êxtase incoercível, sob sua derradeira bênção, vivendo densos momentos de glória e de esquecimento.

Jim Morrison morreu em Paris, no dia 3 de Julho de 1971, na banheira de seu apartamento – oficialmente de “ataque cardíaco”: para um poeta, morrer do coração é quase destino; para um roqueiro, é uma infâmia.

Em seu túmulo estão as inscrições, Κατά τον δαίμονα εαυτού (Katá ton Daímona Eautoú), em grego moderno: “Criou seus próprios demônios”. Vira e mexe, ao redor de sua lápide, entre rosas murchas, encontram-se rodinhas de fãs, soltando fumaça de marijuana em alta voltagem reverencial. Alguns cantam em tom respeitoso.

Para quem quiser mandar algum buquê de flores para sua sepultura, pode fazer a encomenda pela internet em alguma floricultura de Paris e pedir para depositar no seguinte endereço:

Tombe de Jim Morrison

emplacement: división 6

Cimetière du Père-Lachaise

16 Rue du Repos 75020

Paris – France

 

¹ “O que você faz aqui? / O que deseja? / Música? / Nós podemos tocar música. / Porém você quer mais. / Você quer algo & alguém novo. / Estou certo? / É claro que estou. / Eu sei o que você deseja. / Você quer êxtase. / Desejo & sonhos”. Tradução de Guilherme Gontijo Flores.

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