Billie Holyday: 50 anos sem Lady Day
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Billie: 50 anos sem a diva da voz vulnerável
Jotabê Medeiros
Após infância miserável e prostituição, cantora se tornou um parâmetro do jazz
Ela renasce a cada nova temporada, e sua voz pode ser encontrada em muitas vozes contemporâneas: Corinne Bailey-Rae, Neneh Cherry, Madeleine Peyroux, Céu, Lila Downs, Macy Gray, Nnenna Freelon, Beth Gibbons, Cassandra Wilson, Amy Winehouse.
19 jul. / 2009 - Na sexta-feira, completaram-se 50 anos sem Billie Holiday, cantora referencial do jazz. Ela morreu aos 44 anos, no dia 17 de julho de 1959. Lady Day, como foi conhecida um dia, alternava em sua arte interpretativa muitas personas, paixões e sentimentos até conflitantes: rendição e desespero; altivez e convicção; força e vulnerabilidade.
"Billie Holiday ajudou a definir o canto no jazz. Seu fraseado sempre foi criativo e imprevisível, com notas tortas e perfeitas, e a emoção de quem sabe porque está cantando tais palavras", diz Luciana Souza, cantora brasileira radicada nos Estados Unidos, três vezes indicada para o Grammy de melhor cantora de jazz da atualidade.
Mas Billie, obviamente, não foi um fenômeno de autogênese. Ela mesma deu crédito aos predecessores que a influenciaram. "Eu sempre quis o som massudo de Bessie (Smith) e o sentimento de Pops (Louis Armstrong)", admitiu a cantora em sua controversa autobiografia, Lady Sings the Blues, de 1956 (reeditada por Jorge Zahar Editor em 2003). Ela também dizia que o saxofonista Lester Young era sua alma gêmea, e sempre pretendeu que sua voz soasse como um instrumento, um sax ou um lamento de trompete.
Nascida Eleanora Fagan Gough em 7 de abril de 1915 (é o que dizia; sua certidão de nascimento nunca foi encontrada), ela ajudou a mudar definitivamente a arte do canto popular, deixando ao menos quatro performances inigualáveis - Lover Man, Don't Explain, Strange Fruit e God Bless the Child, composição própria.
Don't Explain (que a diva moderna Cat Power cantaria ontem à noite em São Paulo), foi feita em parceria com Arthur Herzog. Lady Day a endereçou a um ex-marido, Jimmy Monroe. Ele estava pulando a cerca com uma loira inglesa. Chegou com batom no rosto em casa. "É uma canção que eu não poderia cantar sem senti-la a cada minuto. Ainda não consigo. Muitas grã-finas me disseram que desabam toda vez que ouvem a canção. Acredito que se alguém merece crédito por ela é Jimmy. E os outros que continuam chegando em casa com marcas de batom no rosto."
A mãe de Billie a teve com apenas 9 anos (o pai tinha 15 anos na época). Aos 12 anos, ela perdeu a virgindade com um trompetista de uma big band, "no chão da sala de visitas de minha avó". Aos 13 anos, já se prostituía, mas nunca clamou por inocência nessa iniciação no bas-fond. "Em questão de dias tive minha chance de me tornar uma call girl a US$ 20 por cliente, e a agarrei."
Em plena Depressão, então com 15 anos, Billie largou a vida de prostituta e foi viver com sua mãe no Harlem. Um dia, pedindo emprego pelos lados da Sétima Avenida, entrou na Rua 133 e num lugar chamado Pod?s and Jerry?s. Disse que era dançarina e queria um emprego. O proprietário mandou-a dançar perto do pianista. "Comecei, e foi uma coisa deplorável", ela lembra. Então, o sujeito perguntou: "Garota, você sabe cantar?" Ela respondeu: "Claro que sei cantar, mas de que adianta isso?". Ele insistiu, ela pediu ao pianista que tocasse Travelin? All Alone. A boate inteira ficou em silêncio. "Quando terminei, todo mundo estava chorando no copo de cerveja, e apanhei US$ 38 no chão".
Sua estreia como cantora profissional foi em 27 de novembro de 1933, com a gravação de Your Mother's Son-in-Law. Já então integrava um pequeno grupo liderado por Benny Goodman. "Já me disseram que ninguém canta a palavra 'fome' como eu. Ou a palavra 'amor'. Talvez seja porque eu me lembre do significado dessas palavras", ela "ditou" para seu ghost writer, William Dufty, amigo que a acompanhou até o fim (coautor de sua autobiografia).
Sua vida cruzou com dezenas de pessoas interessantes, muitas completamente rendidas ao seu talento, e nem isso a afastou da miséria e da tragédia. Por exemplo: uma vez ela pediu ajuda a um sujeito que tentava consertar o carro na beira da estrada, e ele a ajudou a consertar o seu. Depois, saíram juntos e seu protetor nocauteou um cara numa boate que lhe tinha feito um gracejo racista. O "mecânico" era Clark Gable.
Durante sua primeira temporada como cantora na Califórnia, conheceu um cineasta que estava mergulhado na feitura de seu primeiro filme, Cidadão Kane. Ninguém menos que Orson Welles. "Orson estava em Hollywood pela primeira vez, como eu. Gostei dele, ele gostou de mim e do jazz. Começamos a sair juntos. Quando eu terminava meu show, nós íamos para a Central Avenue, o gueto negro de Los Angeles, e eu o ciceroneava por todos os inferninhos e buracos. Tudo isso me enchia de tédio", ela contou.
Logo depois que Billie morreu, seu herdeiro, o ex-marido Louis McKay (de quem já tinha se separado), ligou para a cantora inglesa Annie Ross e disse: "Estou com o casaco de visom da Lady. Ela sempre quis que o casaco fosse seu. Posso deixar por US$ 500..."
Não está sendo uma data gloriosa, apesar das credenciais de Billie. Somente um lançamento interessante chegou às lojas por esses dias. Trata-se de uma reedição do vinil Lady in Satin, de 1958, remasterizada, mais pesada (180 gramas), ricamente restaurada e cheia de takes alternativos, sobras de gravação.