O Reggae feito por Matty Duncan em constante luta consigo mesmo

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O Reggae feito por um homem em constante luta consigo mesmo
Escrito por Antonio Celso Barbieri

Vivendo em Londres desde 1987, 7 anos depois, achei que já estava falando inglês suficientemente bem para fazer um curso especializado. Então, no final de 1994, comecei estudar no Lambeth College em Brixton, fazendo um curso de Access to Sound Engineering (Acesso Para Engenharia de Som).

 

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Livreto de registro da escola

Access Courses são cursos de tempo integral com 1 ano de duração que servem para fazer a equiparação escolar com o ensino recebido no país de origem do estudante e, ao mesmo tempo, preparar o aluno para os rigores da vida universitária.

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Comprovante de pagamento do curso

Este tipo de curso, ainda existe hoje em dia e, é a solução perfeita para os estrangeiros cuja língua inglesa não é sua língua principal. Outra coisa importante, é o fato de que, não ha necessidade do aluno apresentar nenhum tipo de diploma anterior. Existem cursos de preparação e equiparação escolar em praticamente todas as áreas.

Para o curso que eu tinha escolhido, a única exigência feita foi um teste de matemática básica (básica mesmo!) e uma entrevista com o professor responsável pelo curso para que ele tivesse certeza de que meu domínio da língua inglesa era suficiente para entender as aulas. Para mim, pareceu-me apenas uma formalidade, tirei de letra e fui aprovado imediatamente.

Para quem não sabe, o bairro de Brixton, mais conhecido no universo do rock, como o berço de nascimento de David Bowie, é um reduto étnico dominado pela presença africana. Aliás, confesso que tinha a errônea impressão de que os negros eram, genericamente, fisicamente todos iguais. Certamente, tinha à ver com minha visão preconceituosa, forjada na minha mente desde criança e, também pela minha ignorância em não levar em consideração que os negros brasileiros foram trazidos para o Brasil de uns poucos países africanos. Na verdade, para mim, Brixton foi um choque cultural, uma Torre de Babel negra.

Como é sabido, o Continente Africano é imenso e, em Brixton vivem negros de toda a África, sem contar os descendentes de escravos que vieram de muitas partes do mundo, inclusive do Brasil. Existe também no caso da Inglaterra, milhares e milhares de negros vindos de suas colônias no Caribe que, foram incentivados, à mais de 50 anos atrás, à vir trabalhar na Grã-Bretanha.

Em 1994 eu já morava onde moro hoje, perto de Old Street no bairro de Hackney, bem próximo do centro de Londres. Mas, à quase 20 anos atrás, eu morei em Brixton e, na época, trabalhando num hotel no centro de Londres, tinha que tomar o metrô bem cedo. Como Brixton é o fim da linha Victoria, geralmente quando chegava na plataforma o trem já estava lá parado, esperando seu horário para partir. Muitas vezes quando entrei no trem, meu carro, já estava cheio de gente e para minha surpresa, eu era o único branco. Como era muito cedo, a maior parte do povo ajeitava-se para tirar um cochilo matinal até que o trem partisse. O tempo de espera variava, poderiam ser dois minutos, cinco ou às vezes até 15 minutos. Portanto, de qualquer forma, estes poucos minutos, eram um tempo muito precioso para este povo trabalhador desperdiçar. Olhando para as roupas que vestiam, qualidade dos sapatos e abrigos percebia-se que, eram gente que trabalhava na limpeza, manutenção, serviços básicos. Quer dizer, gente que “pegava no pesado”.

Eu ficava, disfarçadamente, só observando as diferenças físicas e culturais. Sempre via negras e até alguns negros com cicatrizes no rosto, provavelmente resultado de alguma cerimônia tribal de iniciação à puberdade realizada ainda na África. Sempre que via um negro com estas cicatrizes no rosto formando linhas verticais, lembrava-me do filme A Cor Púrpura (The Colour Purple) dirigido por Steven Spielberg em 1985 onde, é mostrado rapidamente e com grande efeito, uma cerimônia tribal deste tipo. Muitas vezes, em silêncio meditei sobre as atrocidades que a raça humana fez e ainda faz em nome da religião, costumes e tradições primitivas. O duro é saber que, ainda hoje, na maior parte das vezes, é a mulher quem sofre as conseqüências.

Nas minhas observações, ficou claro que a espessura dos lábios e a largura do nariz variavam consideravelmente dependendo do país africano de origem. Algumas mulheres tinham o pescoço mais alongado e a parte de traz do crânio mais protuberante. Outras, tinham o hábito de tirarem os pés fora dos sapatos e descansá-los em cima dos mesmos. Eu ficava imaginando se aquelas senhoras não preferiam andar descalças dentro de suas próprias casas. Será que era uma lembrança dos tempos tribais ou apenas desejo de descansar os pés?

A população negra poderia ser dividida entre católicos e muçulmanos apenas observando-se suas roupas e falavam uma multiplicidade de línguas e dialetos. Muitos falavam francês o que me fazia pensar no papel dos países imperialistas principalmente a Inglaterra, França, Espanha e Portugal na colonização do nosso querido planeta.

Bom, voltando à escola, não foi surpresa perceber que a maior partes dos alunos eram negros. Eu estava todo empolgado pela idéia de aprender a gravar música profissionalmente. Já tinha meu pequeno estúdio caseiro. Era muito bom para a época. Possuía uma mesa de som estéreo Studio Master de 16 canais e 8 saídas de gravação, um teclado Korg Wavestation, que em 1994 era o máximo, um gravador digital que usava fitas DAT e um computador Atari rodando Steinberg Cubase 24 um dos seqüenciadores mundialmente mais importantes deste período.


Nossa classe tinha apenas uns 12 alunos. O estúdio da escola era pequeno mas, novíssimo e todo equipado.

Já no primeiro dia, o professor, um negro, antes de começar a aula acendeu um cigarro o que gerou uma reação em cadeia com 6 ou 7 cigarros acesos num cubículo apertado, sem cinzeiro, acarpetado, com isolamento de som e sem ar condicionado. O professor apresentou-se dizendo que ele era um DJ que estava passando na frente da escola e resolveu pedir emprego. Quando perguntei-lhe que programa nós usaríamos no computador Atari da escola, ele respondeu para minha felicidade que seria o Steinberg Cubase 24 mas, para minha frustração acrescentou que era um programa que ele não conhecia e que “nós iríamos aprender juntos”.

Felizmente, logo na segunda aula a direção escola já tinha interferido e proibido fumar no estúdio mas, no entanto, logo ficou claro que tanto o professor como a maioria dos alunos fumavam maconha antes de começar a aula. Depois de algumas instruções básicas começava a parte prática com o professor perguntando o que os alunos queriam fazer, com a maioria black chapada gritando em coro RAP. Era frustrante! Eu queria aprender a microfonar um violino, um sax, a bateria. Eu queria entender como melhor usar a minha mesa de som mas não conseguia nenhuma ajuda de professor. Nem preciso dizer que, a música eletrônica que eu fazia incorporando rock pesado, não era entendida por ninguém. Eu, com vários anos de experiência usando Steinberg Cubase 24, depois de algumas tentativas, percebi que o professor não queria ser ajudado e preferia passar a maior parte do tempo buscando suas respostas no manual enquanto eu ficava, perdendo o meu tempo, olhando para o teto.

Se o professor e as aulas no estúdio era ruins as outras matérias do curso eram boas mas dificílimas e muito intensivas. Tínhamos um professor de matemática e nada mais nada menos que três de eletrônica bombardeando-nos com matéria nova todo dia. Insistiam que além de estar na escola o dia inteiro ainda tínhamos que estudar em casa, no mínimo, 21 horas por semana. Infelizmente, não tenho tanta força de vontade assim!

Na minha turma tinha um estudante negro que era muito diferente dos outros. Seu nome, Matty Duncan. Eu sou alto mas, ele era muito maior. Ele era um gigante. Sua expressão facial era sempre séria e ele tinha no final do queixo esta barba comprida meio rastafári que ele vivia, usando o seu polegar e indicador da mão direita, sempre puxando e enrolando formando, às vezes uma ponta, às vezes duas. Ele usava sempre a mesma roupa e suas unhas eram grandes. sentava-se sempre no final da sala, num canto. Nunca falava nada. Nunca abria o caderno para anotar alguma coisa e, nas provas, geralmente entregava sua folha em branco. Ninguém, nem os outros blacks, se aproximavam dele.

Como o curso era de tempo integral, na hora do almoço todo mundo ia para o refeitório. O refeitório, no estilo bandejão de aço, não era gratuito. Por questões financeiras, eu preferia levar uns sanduíches e, às vezes, apenas comprar um refrigerante na escola.

Matty Duncan também ia para o restaurante mas nunca comia nada, ficava sentado, de braços cruzados, no mesmo lugar até a hora de começar as aulas do período da tarde.

Eu, de longe, ficava observando o seu comportamento e, cheguei a conclusão que ele ficava ali sentado parado porque não tinha nenhum dinheiro para comprar algo para comer.

Então, um dia tomei coragem, preparei em casa dois lanches e levei para a escola.

Na hora do almoço, lá estava Matty Duncan na sua mesa comunitária com capacidade para uns 10 alunos mas que, vivia exceto por ele, sempre desocupada. Acho que, possivelmente os outros alunos tinham medo ou sentiam-se desconfortáveis com a sua presença.t;/p> lt;p style="margin: 0.0px 0.0px 10.0px 0.0px; text-align: justify; font: 12.0px Cambria;">Procurando mostrar a maior naturalidade do mundo, aproximei-me da sua mesa e sentei-me na sua frente. Ele sabia que eu estudava na mesma classe porque, de uma forma mais ou menos automática, eu já lhe havia cumprimentado várias vezes. Eu disse “Alo!” e já fui pondo os sanduíches na mesa. Ele ficou meio sem jeito. Então eu lhe disse que, tinha preparando uns sanduíches à mais e empurrando um na sua direção falei que aquele sanduíche era para ele. Ele, sem jeito com aquela cara séria, fez um sinal com a mão de que não queria mas, eu ignorei e insisti. Na verdade, não precisei insistir muito! Ele aceitou e comeu seu sanduíche com prazer. No outro dia, mesma coisa, trouxe outro sanduíche para ele. Não havia diálogo mas, silenciosamente eu ia fazendo o que eu achava certo, a minha boa ação do dia. Eu recebia uma ajuda do governo inglês que também pagava parte do meu aluguel da casa. Rico eu não era mas, dava bem para fazer um sanduichinho à mais todo dia.

 

Uma sexta-feira depois das aulas, quando me dirigia ao ponto de ônibus que me levaria até a estação de Brixton, fui alcançado pelo Matty Duncan.

Ela falava com emoção e, para surpresa minha, era gago. Matty falava inglês com um sotaque fortíssimo e, acrescido da gagueira era bem difícil de ser entendido.

“Você tem sido um bom amigo e, amanhã, sábado, eu vou mixar o meu álbum gostaria muito que você fosse no estúdio, ouvir e dar a sua opinião.” Matty estava feliz.

“Muito obrigado pelo convite! Eu não sabia que você era músico! Que estilo você toca? Que instrumento você toca? Perguntei.

“Reggae e Eeeeeuuu nanão totoco! Eeeeu Cacanto!” Foi a resposta.

Eu confesso que, internamente tive vontade de rir e ao mesmo tempo tive pena. Por outro lado, lembrei-me de Nelson Gonçalves, cantor brasileiro já falecido, que tinha uma voz muito boa e, chegou lançar uns 50 álbuns. Segundo se fala, Nelson Gonçalves era gago.

Aceitei o convite, sentindo-me lisonjeado e curioso ao mesmo tempo. De uma forma muito especial, tanto Matty como eu, nos sentíamos, na escola, como cartas fora do baralho. Eu tinha encontrado alguém, feito um amigo e, agora, era meu dever prestigiar o trabalho dele. Lembrei-me do livro O Pequeno Príncipe onde, a raposa falou para o Príncipe que, já que ele a tinha cativado, agora, ele era responsável por ela. Eu tinha cativado Matty e, agora, também me sentia responsável.

No dia seguinte, sábado, quando cheguei no estúdio, já na entrada fui recebido por um negrão com barba e cabelos rastafári. Seu cabelo estava escondido dentro de uma enorme toca com as cores da bandeira da Jamaica. Fui levado para dentro do estúdio e apresentado para mais uma meia dúzia de blacks. Todos com barbas, cabelos e visuais, similares. Matty Duncan já esta lá. Quase não dava para conversar porque a casa estava caindo ao som de um Reggae de raiz, um Reggae de qualidade. Surpreendentemente a voz de Matty Duncan que saia das caixas acústicas não devia nada à Bob Marley, Jimmy Cliff e Peter Tosh. Desde a temática das músicas, os arranjos até as escolhas dos timbres dos instrumentos tudo era Reggae de qualidade. Os músicos que o acompanhavam nas gravações eram todos veteranos incluindo até um músico da legendária banda de Reggae dos anos 70 chamada Matumbi.

Obviamente, este povo sabia o que estava fazendo e, eu é que não ia correr o risco de abrir minha boca ali no meio daquela “gang” rasta. Durante a mixagem, um dos rasta, fez um baseado enorme, da grossura do meu dedo indicador e, passou na roda. Não teve como dizer não e daí em diante o negócio foi só ficar quieto e “viajar” na música.

Na próxima vez que encontrei-me com Matty, já na escola, fiquei sabendo que, na verdade, a maior parte das mixagens já haviam sido feitas anteriormente e que aquele dia tinha sido reservando apenas para as duas músicas finais. Portanto, no final daquele dia, Matty recebeu uma fita DAT contendo o seu álbum inteiro que, era mais um EP do que um álbum propriamente dito pois, ele tinha gravado apenas 7 músicas.

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Matty Duncan, no finalzinho dos anos 80, apresentando-se
na Ilha de Santa Lucia, no Caribe, sua terra natal.

Matty contou-me que ele era originário da ilha de Santa Lucia no Caribe e que lá na sua terra natal ele tinha gravado um vinil chamado Daniel And The Lions contendo uma música de cada lado; Daniel And The Lions e Every Try. Seu lançamento foi um sucesso e ele vendeu aproximadamente 15.000 cópias na ilha. Com o dinheiro ele veio para Londres onde contratou os melhores músicos de Reggae que encontrou e gravou as 7 músicas. Não gravou mais porque, infelizmente, o dinheiro acabou. Matty então, ficou com as fitas mestres guardadas por 3 anos enquanto juntava dinheiro para mixá-las. É por isso que ele não tinha dinheiro para comer na escola.

Eu orientei Matty à transferir seu material da fita DAT para um CD. Fitas DAT são muito pequenas, frágeis e as gravações são gravadas magneticamente. Portanto, a possibilidade de um acidente e conseqüente perda de todo o trabalho gravado é bem real. Infelizmente, Matty estava vivendo aquela fase inicial de todo artista que acaba de gravar e, achando que seu trabalho poderia ser roubado, copiado, usado indevidamente, etc. Apesar de querer muito uma cópia do seu trabalho, como percebi que Matty estava todo desconfiado e cheio de cuidados, não insisti.

Matty Duncan depois daquele sábado, ainda compareceu na escola, para assistir algumas aulas, mas logo sumiu, não apareceu mais. Eu, na escola, desde o início, não fiquei satisfeito, sentindo-me sempre deslocado. Agüentei mais uns 2 meses mas, depois de mais de 6 meses batendo a cabeça, desisti e também não voltei mais.

Um ano se passou e um dia o telefone tocou. Era o Matty:

“Você disse que tem um DAT player e já faz 1 ano que não escuto minha música. A última vez foi lá no estúdio...” Não deixei que ele terminasse a frase:

“Matty você que trazer sua fita aqui em casa para gente ouvir. Eu posso fazer uma copia numa fita cassete para você!” Matty concordou imediatamente.

No dia da visita, antes do Matty chegar, eu preparei meu DAT tirando do mesmo uma saída do som para a mesa de som que, por sua vez, tinha uma saída para a placa de áudio do computador Mac e também, uma saída de monitorização para o amplificador de áudio.

Quando Matty chegou, coloquei a fita DAT para tocar e, enquanto ele todo feliz, escutava sua música, aproveitei para gravá-la no computador e assim, digitalizá-la.

A minha idéia era masterizar seu trabalho aumentando um pouco os agudos ao mesmo tempo que puxando mais o som do baixo e dos bumbos. Eu uso um programa que gosto muito chamado T-Racks. T-Racks é uma emulador de válvulas que faz o som ficar mais “quente” além de, normalizá-lo (aumentar o volume ao máximo possível sem distorcer), comprimi-lo e permitir uma re-equalização das freqüências. Parece complicado mas não é! Só posso dizer que, o resultado final é impressionante. É por isso que as demos gravadas em casa nunca mostram aquele som “para a frente” e aquela qualidade profissional.

Eu diria que, durante a gravação de um álbum, existem 3 som distintos: O som depois da mixagem, o som depois da masterização e o som final no CD. Não sei se é psicológico ou não, mas eu sempre sinto uma diferença para melhor quando escuto o CD final, depois de já prensado.

Bom, quando Matty ouviu uma das suas músicas masterizadas. Seu olhar foi de puro espanto e incredulidade. Foi como se ele tivesse perdido a inocência, de agora em diante, ele nunca mais poderia ouvir seu trabalho sem que todas as suas gravações tivessem sido masterizadas. Eu tinha conseguido convencê-lo!

 

Passado uma semana, Matty me ligou novamente. Ele queria incluir no CD que lhe dei uma música do seu Single lançado em Santa Lucia. Era o lado B, a música Every Try. Ele também disse que queria muito lançar o CD via independente mas, não sabia o que fazer. Eu já tinha lançado pelo meu selo Brain2Records a coletânea Brain Brazil – The Roots of Brazilian Rock e, meio relutante sugeri para Matty lançar seu álbum pelo meu selo. Eu, em troca, lhe daria toda a assistência gratuitamente. Não é que, Matty concordou imediatamente!

Matty já tinha decido que o nome do álbum seria Man In The Struggle (Homem lutando para superar forças opressoras). Eu pedi para Matty que, quando trouxesse o vinil para que eu copiasse a música Every Try, também trouxesse umas camisetas e diferentes chapéus ou bonés para posar para umas fotos. Ele obedeceu, veio e, eu fotografei-o aqui na minha sala. A foto que escolhi foi uma em que ele aparece com a cabeça baixa, olhando para o chão. Achei que esta foto mostrava ele numa luz melhor e transmitia uma mensagem que combinava com o nome do álbum.

Rosana Muller, a esposa de um músico amigo meu estava fazendo um curso de computação gráfica cujo projeto da semana seria coincidentemente criar a capa de um CD. Então, debaixo da minha direção artística, Rosana criou, gratuitamente, a capa do álbum.

Eu descobri esta empresa no norte da Inglaterra, por trem, à um pouco mais de uma hora de distância de Londres. A empresa tinha um preço bom e os CDs seriam prensados na Áustria. A idéia era prensar 500 cópias. O pagamento seria feito 50% adiantado e 50% na entrega do produto. O preço incluía a entrega por transportadora na residência no Matty.

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A capa do CD

No dia marcado Matty e eu levamos o CD Mestre e a arte gráfica da capa até a empresa onde Matty fez o pagamento dos primeiros 50%.

Voltamos para Londres, nos despedimos na porta do metrô e, nunca mais ouvi uma palavra do Matty. Naturalmente, pela minha experiência passada com músicos fiquei achando que como o Matty, agora, não precisava mais de mim, tinha simplesmente desaparecido.

Uns 3 ou 4 meses depois, para minha surpresa, recebi um telefonema da empresa responsável pela prensagem dos CDs. O responsável, informou-me que Matty não atendia o telefone, estava incomunicável e, que como ele não tinha pago os outros 50% no tempo previsto, já tinha perdido direito à entrega gratuita uma vez que nestes casos a entrega tinha sido feita nos escritórios da empresa. O responsável pedia que eu tenta-se localizar Matty para explicar-lhe que eles iriam começar cobrar aluguel para manter estocado os 500 CDs no seu depósito.

À princípio pensei que Matty tinha dado um telefone de contato errado mas, logo percebi que não. Quando ligava para Matty ninguém atendia mas, às vezes, depois de muitas tentativas alguém, do outro lado da linha, tirava o telefone do gancho e colocava-o de novo, cancelando a chamada.

Continuei insistindo, até que um dia ele atendeu. Sua voz era diferente. Tinha um pouco menos sotaque e gaguejava menos. Parecia outra pessoa. Eu expliquei para ele o problema e disse:

“Aqui só entre nós, se você não tem dinheiro para pagar os outros 50% é só me dizer, eu ligo para a empresa, tento ganhar tempo, negociando uma outra data para o pagamento”

Falando como se ele fosse um Lorde, sua resposta foi petulante:

“Veja bem, eu não estou preparado para falar sobre este assunto agora!”

Respondi:

“Matty, então quando você estiver preparado para falar sobre este assunto vê se me dá uma ligada!” Desliguei o telefone frustrado.

Um pouco mais de um mês depois meu telefone tocou, era Matty. Ele, estava mais sociável mas, continuava ainda um pouco estranho:

“Agora, estou preparado para ir pegar os CDs”. Falou laconicamente.

“Você tem o dinheiro que falta para pagar a parte restante e qual será desculpa que eu devo falar para a empresa?” Perguntei.

“Eu tenho o dinheiro e diga para eles que eu estive hospitalizado.” Foi sua resposta.

Marcamos um dia e quando Matty chegou fiquei chocado com a sua aparência. Ele tinha uma barriga enorme, parecia grávido. Seu rosto e mãos estavam inchados e, ele andava com dificuldade com as pernas mais separadas umas das outras. Matty, deu-me à entender que ele realmente tinha estado hospitalizado.

O representante da empresa quando viu a aparência do Matty nem fez nenhum comentário quanto à demora para o pagamento e coleta dos CDs. Eu, tinha duas malas enormes e, então, levamos as malas para trazer os CDs. Foi um pesadelo arrastar as duas malas até o trem e depois, do trem até o metrô e finalmente do metrô até sua casa.

No trem, durante a viagem, abrimos uma das malas e retiramos dois CDs para matarmos nossa curiosidade e, assim podermos observar com mais atenção, o trabalho feito na Áustria. Foi quando notei que Matty, olhava para a capa do CD e, silenciosamente sorria e, às vezes, parecia que estava falando consigo mesmo. À principio pensei que era apenas uma reação emocional aceitável. Quem é que nunca falou alguma coisa em voz alta consigo mesmo?

Quando chegamos na sua casa, ele abriu a mala e presenteou-me com duas caixas contendo 25 CDs cada. De um total de 500 CDs eu tinha ganho 10%, nada mau! Eu fiquei feliz e satisfeito. Nós nos despedimos e, eu fui para casa.

Meses se passaram, estávamos próximos do Natal quando Matty ligou novamente:

“Eu estou me sentindo muito sozinho! Dá para você vir me visitar aqui no hospital?” Mais parecia uma criança implorando por atenção.

“Claro Matty, me dá o endereço do hospital e o horário de visita.” Foi minha resposta.

No outro dia, no começo da tarde tomei o metrô para Stockwell que é uma estação antes de Brixton. Aliás, foi dentro da estação Stockwell que o brasileiro Jean Charles de Menezes foi assassinado à sangue frio pela polícia inglesa.

Quando cheguei no hospital, já na recepção, percebi que as coisas eram bem diferentes. Havia um segurança e o lugar mais parecia uma prisão com os dois recepcionistas, fortões atrás de vidros grossos. Identifiquei-me e disse que tinha vindo para visitar Matty Duncan. Eles olharam para mim com desconfiança, fizeram uma consulta usando um tipo de interfone e apontaram uma porta de entrada atrás de mim à direita. Quando cheguei em frente daquela porta de aço com uma janela de vidro no meio e sem maçaneta, empurrei-a mas ela não abria.

Olhei pelo vidro e vi que do outro lado seguia um longo corredor estreito que terminava numa porta semelhante à que eu estava tentando abrir. Lá na outra porta do outro lado do vidro eu pode ver uma enfermeira negra, toda vestida de branco apertar um interruptor que tocou uma campainha ao mesmo tempo que a porta na minha frente abriu-se automaticamente.

Eu entrei e imediatamente a porta fechou-se, travando-se atrás de mim. Fiquei com uma sensação muito desagradável, tipo “e se eles não me deixarem sair daqui mais?”

O corredor era todo pintado de branco e lá no fundo a enfermeira me esperava ainda do lado de dentro da sua porta. Percebi que quase no final do corredor perto da porta dela saia um corredor mais largo à direita. De repente, inesperadamente, daquele corredor à direita saiu esta mulher negra enorme com um vestido longo todo branco, sem mangas, descalça, balançados e gesticulando os braços abertos e gritando. Era um tipo de canto usando apenas a letra “a”. Eu quase que saio correndo mas, não consegui, fiquei paralisado enquanto ela passou direto por mim sem nem me ver indo na direção da porta de entrada.

Passando direto, ignorei o corredor largo e, com o coração na mão, fui direto encontrar-me com a enfermeira. Seu rosto deixava transparecer o seu pavor e, ela olhava para mim com desconfiança. Deu para perceber que a porta dela tinha um sistema de segurança com senha onde, numa pequena caixa de metal, a seqüência correta de números deveriam ser apertados para que a porta se abrisse. Estou certo de que ela tinha medo de estar ali fora comigo e preferia estar lá dentro na segurança da sua sala blindada.

Eu a segui, até o corredor largo que tinha acabado de ver. Lá, no meio do corredor, um enfermeiro forte modelo segurança, todo de branco com os braços cruzados, estava sério, em posição de guarda, encostado numa parede. Uma senhora com um esfregão passava o pano no chão. Com um sorriso infantil, ela já foi aproximando-se e contando a sua história dizendo que ela era “doente” e que tinha conseguido ali dentro aquele serviçozinho de limpeza e que, todos gostavam muito dela.

O primeiro quarto, sem porta à direita era o do Matty mas ele não estava. A enfermeira então convidou-me para segui-la até a sala dos fumantes. Continuamos andando, passamos pelo enfermeiro/segurança ali de plantão que, agora me observava atentamente. Estávamos quase chegando ao final do corredor quando, coincidentemente, Matty saiu da sala dos fumantes.

Mais inchado ainda, ele aproximou-se de mim, olhou para a enfermeira e ordenou:

“Eu quero falar com ele em particular!”

Foi o suficiente! Ela saiu à passos largos e correu para sua sala, trancando-se por dentro. Fiquei só com Matty.

Matty, então convidou-me para visitar seu quarto. O quarto todo era pintado de branco, sem nenhum quadro ou decoração e, como disse antes, não tinha porta e a mobília consistia em uma cama e uma cadeira cujas pernas de metal eram parafusadas no chão. Seu armário não passava de buracos quadrados numa das parede de concreto.

Ele sentou-se na cama e eu na cadeira.

Matty deu uma respirada funda e começou explicar-se:

Sabe, eu sou assim grande mas eu não sou uma má pessoa. Eu não sou uma pessoa violenta. À uns 10 anos atrás, esta mulher começou falar comigo dentro da minha cabeça. É a rainha mãe! A mãe desta rainha que está aí. Tem vezes, que ela me cansa muito. Eu peço para ela parar de falar mas ela não me obedecesse. Às vezes ela é muito má. De qualquer forma, eu aprendi a conviver com ela. É um problema só meu e eu procuro não passar problemas para mais ninguém.

Já faz um tempo que o Departamento do Serviço Social (DSS) sabe e eles me ajudam muito, arrumaram uma casa para mim morar e estão pagando uma pequena ajuda financeira todo mês.

É por isso que, eu não tinha o dinheiro suficiente para pagar os restantes 50% necessários para coletar os CDs. Todo o dinheiro que eu estava recebendo eu estava guardando para fazer o pagamento. Um dia, eu estava com muita fome e fui ao mercado, não resisti e roubei um chocolate. Infelizmente, fui pego e chamaram a polícia. Para eu não ir preso eu disse aos policiais que sofria de problemas mentais. Eles, checaram com o Departamento do Serviço Social (DSS) e perguntaram se eu tinha algum responsável por mim. Eu disse que não, então o governo passou a ser responsável por mim e me internaram aqui. Se eu não tomo os remédios eles me fazem tomar à força. Veja só como eu estou inchado! Se continuar assim vou morrer aqui! Preciso de sua ajuda!”

“Você tem dinheiro, você tem autorização para sair daqui?”. Perguntei.

“Sim tenho algum dinheiro porque já estou aqui à vários meses e não estou usando nada do dinheiro que me pagam. Eu tenho autorização para visitar minha casa uma vez por mês para pagar as contas e ver minha correspondência. Aquele dia que fomos buscar os CDs foi meu dia de liberdade!” Foi sua resposta.

“Se eu comprar uma passagem para a Ilha de Santa Lucia você viaja? Perguntei.

“Claro que viajo! Quero visitar minha mãe!” Foi sua resposta.

Então, acertamos os detalhes e como sabia que Matty fumava e tinha comprado um maço de cigarros para ele e, sugeri que fossemos para a sala dos fumantes.

Quando chegamos lá já haviam três pessoas sentadas nos sofás. Um homem branco e gordo todo espalhado num sofá e num outro um casal. Era senhor negro, bem vestido e elegante. Falava com fluência, era calmo, sorridente e cheio de paciência com a mulher ao seu lado. A mulher que era bem pequena, magra e meia mulata parecia muito nervosa. Ele, pacientemente insistia para que ela se acalmasse. Eu passei o maço de cigarro para Matty que ofereceu cigarros para todos os presentes. Todos aceitaram. Matty tinha acabado de acender seu cigarro e ainda estava com o maço nas mãos quando aquela mulher toda de branco que me assustou logo no começo, quando entrei no hospital, entrou na sala, olhou para o maço de cigarros, na mão do Matty e imediatamente tomou das suas mãos, deu mais um cigarro para todos os presentes e saiu da sala, tão rapidamente quanto entrou, levando o restante do maço.

Eu fiquei de boca aberta olhando para a porta vazia quando, a mulherzinha agitada, sentada exatamente à minha frente, esticou o braço apontando o dedo para mim dizendo:

“Você é tira! Você é polícia! Você veio aqui para me espionar! Você pensa que eu sou boba é? Eu sei que vocês querem tirar meus filhos de mim! Fiquem sabendo que vocês, não vão conseguir não! Não vão não! Não vão não! Não vão não...”

“Fica tranqüila, eu não sou da polícia não! Eu sou amigo aqui do Matty, não sou Matty?” Olhei para o Matty que concordou balançando a cabeça.

O seu companheiro passou a mão na cabeça dela confortando-a ao mesmo tempo que ela se encolheu-se toda no sofá como se fosse uma criança com um bico enorme.

“Desculpe-me senhor! Ela está um pouco nervosa hoje!” O homem era extremamente gentil e eu respondi apenas com um balanço de cabeça e uma expressão de consentimento.

Ha verdade é que, por dentro eu estava me sentindo claustrofóbico eu não via a hora de sair correndo de dentro deste lugar. Quando Matty terminou seu cigarro, arranjei uma desculpa para me retirar.

Despedi-me das pessoas. Matty e eu nos levantamos e nos dirigimos para a sala da enfermeira. O homem negro também se despediu e nos seguiu. Matty preferiu ficar no seu quarto e eu e aquele negro fomos até a porta da sala da enfermeira. O negro ao meu lado disse:

“Nos já estamos prontos para sair”

Apontando o dedo para mim e com a outra mão segurando um pequeno microfone ela falou:

“Ele está pronto, você não! Vá já para o seu quarto!” O negro me ignorou, virou as costas e saiu rapidamente em direção da sala dos fumantes.

Incrível, ele tinha me enganado o tempo todo!

Quando saí na rua. Tudo parecia mais bonito! Respirei aliviado!

Mas, voltado ao Matty e sua fuga, resumindo, Matty me passou todos os seus documentos, passaporte e também o livreto do DSS para que eu pudesse sacar o seu dinheiro. Eu comprei uma passagem de ida e volta, com validade de um ano, para Santa Lucia, dei-lhe o troco e, no seu dia livre, ele voou para sua terra natal.

Eu fiquei com as chaves do seu apartamento por quase um ano. Eu recebia o dinheiro dele e guardava-o comigo. Como ele recebia sempre um valor fixo foi fácil para ele fazer a contabilidade e assim evitarmos mau entendidos.

Matty morava num conjunto residencial que pertencia à prefeitura de Brixton. Eram blocos de três andares com três apartamentos, um em cada andar. O dele era o do meio.

Quando sozinho, abri a porta e entrei no seu apartamento, estava curioso. Estava entrando no mundo secreto de uma pessoa que morava sozinha, que tinha sido diagnosticada como sendo esquizofrênica, que não tomava seus medicamentos e que além de tudo, fumava maconha. A primeira coisa que notei assim que abri a porta foi o cheiro intenso de nicotina acrescido de um cheiro de bolor ou coisa envelhecida. Quando acendi a luz, percebi que as paredes eram engorduradamente amarelecidas com manchas mais fortes aqui e ali. A casa era isolada por cortinas grossas escondendo a luz de fora e também janelas fechadas exibindo fechos endurecidos pela ferrugem de muito tempo. Estava claro que Matty vivia trancado em sua casa, escondido como um eremita.

Na cozinha não havia um utensílio, prato, copo ou talher limpo. Restos de comida embolorados ainda permaneciam por todos os lados. A velha e pequena geladeira, fora um vidro sem rótulo com um resto mais parecendo uma cultura de bactérias e um limão murcho e seco, estava vazia e encardida.

No seu quarto, num canto, estavam as caixas contendo os CDs. Olhando ali, os CDs todos empilhados, senti um certo orgulho. Naquele canto, também estava uma parte de mim. Ali estavam centenas de CDs com meu nome, para sempre, ligados ao de Matty Duncan. Certo ou errado, eu tinha interferido no seu destino, ele tinha lançado seu CD e, agora, estava morando no Caribe, na Ilha de Santa Lucia com seus familiares.

Depois de uma vistoria superficial na casa, não encontrei nenhum material de limpeza disponível, nem uma vassoura que fosse. Aliás, achei apenas um cabo de vassoura. Percebi que não havia como fugir do trabalho pois, o lugar estava uma total imundice e realmente impróprio para habitação.

Retirei as cortinas, abri todas as janelas para arejar e fui ao mercado comprar material de limpeza. O apartamento era pequeno mas, decidi que cada dia que tivesse disponível, limparia uma área. Começando pela cozinha.

No dia que limpei a cozinha reparei que no teto haviam várias pequenas marcas circulares que condiziam com alguém usando um cabo de vassoura para incomodar o vizinho do andar de cima. Depois de ter observado as marcas na cozinha descobri que o teto da casa toda tinhas marcas semelhantes. Lembrei-me que, anteriormente, quando levei os CDs na sua casa, Matty reclamou que o vizinha do andar de cima estava sempre lhe dando problemas dizendo que ele ouvia música muito alto. Era curioso porque o sistema de som dele era “medieval”, as caixas estavam com os alto-falantes furados. Nada funcionava e ele ouvia música, com fones de ouvido. em um pequeno CD player portátil. Fiquei imaginando que, na verdade, quem reclamava do som era a voz dentro da sua cabeça.

Um dia enquanto limpava seu quarto descobri um saco num canto do quarto e quando olhei por cima, percebi que estava cheio de cabelos. Inicialmente, quase tive um ataque, pois parecia que ele guardava no quarto uma cabeça humana. Felizmente era só cabelo. Foi uma descoberta muito bizarra. Parece que Matty nunca jogava fora seus cabelos. Seu colchão, sem lençol tinha muitas manchas parecendo vomito, urina e até fezes. Do lado da cama, no chão uma pilha de lençóis embolados e secos revelavam terríveis noites de tormento onde Matty tinha vomitado, urinado em si mesmo e até feito suas necessidades. Sua vida, íntima, seu tormento, deviam ser indescritíveis.

Seu apartamento era deprimente e, à meu ver, se Matty voltasse para um lugar assim, rapidamente iria para o fundo do poço novamente. Trabalhei duro para que seu lar ficasse habitável.

Confesso que, enquanto, sozinho, limpando sua casa, várias vezes tive medo, um medo assustador de que, naquele silêncio, de repente a voz de uma velha começasse soar dentro da minha cabeça, a voz da Rainha Mãe.

Eu já sabia, de ante mão, que Matty voltaria em aproximadamente um ano porque, como disse antes, a passagem que tinha comprado para ele era de ida e volta com a data em aberto e validade para 12 meses.

Portanto, quase um ano depois recebi um cartão postal do Matty contendo o número do seu voo, horário e data de chegada.

Na data estipulada, lá foi eu para o aeroporto de Heatrow. Matty chegou com uma boa aparência, continuava gago mas, estava mais magro e sem nenhum inchaço.

Eu estava um pouco preocupado, com medo de que ele achasse que eu o tinha trapaceado de alguma forma financeiramente. Queria fazer o ajuste de contas o mais rápido possível e num lugar público. Já no aeroporto achamos um lugar tranquilo onde pude entregar-lhe seu dinheiro e também, as chaves do seu apartamento. Ele pareceu satisfeito.

Já que, agora, ele estava com dinheiro, muito embora houvesse metrô no aeroporto que o levasse até sua casa, insistiu em ir para casa de taxi. Já no taxi, percebi que nada tinha mudado pois o vi, várias vezes, trocando umas palavras com sigo mesmo com se estivesse num diálogo com outra pessoa. Tudo indicava que a Rainha Mãe estava com ele!

Quando chegamos na sua casa, percebi que por uns minutos, ele ficou meio confuso. Cortinas novas e abertas, a sala ilumidada pela luz de fora mostrava talvéz uma casa diferente. As paredes eram brancas e a casa estava perfumada e limpa.

Ele parecia meio sem palavras e até um pouco descontente. Pareceu que ele tinha acordado para a dura realidade. Seu passado de solidão e o fato de ele ser uma pessoa incompreendida desceu sobre ele como um nevoeiro denso e viscoso, como um fantasma na sua ronda da meia-noite. Ele parou e ficou alí parado, no meio da sala, olhando para o chão.

Infelizmente, não havia mais nada que eu pudesse fazer e, o silêncio desconfortável daquele negro ao meu lado só reforçou minha vontade de ir embora. No metrô, indo para casa, tristemente refleti sobre minha longa jornada juntamente com Matty Duncan.

Alguns meses depois Matty ligou:

“Oi, na sexta-feira que vem, é meu aniversário e ficaria feliz com a sua presença! Já até comprei a bebida!”.

Uma vêz, numa conversa com um inglês que cuidava de um imenso depósito de revistas e jornais antigos, fiquei sabendo à respeito das ideias deste filósofo russo que, infelizmente, não recordo-me o nome. No nosso bate-papo fiquei sabendo que, este filósofo dizia que o lugar que ocupamos socialmente e a vida pessoal que levamos hoje em dia, bom ou mau, é resultado da nossa incapacidade de dizer “não”. Por aceitarmos tudo que nos chega, sem uma análise mais profunda e sem a coragem de rejeitarmos aquilo que não aprovamos, acabamos na maioria das vezes presos por um teia de aranha emocional. Por exemplo, casais passam a vida toda juntos sem se amarem e, pessoas aposentam fazendo um trabalho que odeiam. Porque estou dizendo isto?

Porque, deveria ter dado uma desculpa para o Matty mas não consegui, fiquei com dó.

No dia marcado, no começo da noite, tomei o metrô para Brixton. Já, perto da estação, havia uma rastafari vendendo CDs piratas, coletâneas de reggae à preços baratissimos. Comprei dois CDs. Fui num supermercado próximo e comprei um bolo de chocolate. Pensei, com bom humor, nada mais apropriado para o Matty, do que um bolo da cor dele!

Quando Matty abriu a porta da sua casa, a primeira coisa que senti foi o forte cheiro de nicotina. As janelas estavam fechadas assim como as cortinas. Ele foi na cozinha e voltou com uma garrafa, bem pequena, de whisky Jack Daniels. Esta era toda a bebida. Eu coloquei o bolo em cima da mesa da sala, tirei a cobertura de papelão que o protegia e, ví os olhos do Matty crescerem e iluminarem toda a sala. Parecia que ele nunca tinha ganho um bolo de aniversário na sua vida inteira. Ele foi para a cozinha correndo. Naturalmente pensei que ele tinha ido buscar dois pratinhos. Fiquei ouvindo por um tempo o barulho metálico de talheres sendo remexidos. Depois de aproximadamente um minuto, o silêncio tomou conta. A luz da cozinha estava apagada, possivelmente queimada. Fiquei olhando para a porta e vi Matty saindo da cozinha lentamente com uma enorme faca de açogueiro na mão direita. Parecia insatisfeito. Meu coração bateu tão alto que até parecia que podia escutá-lo.

“Sosó coconsegui aaachar esta fafaca para cocortar o bobobolo!” Foi só o que disse. Eu, respondí:

“Es estata bebem!” Eu estava mais gago do que ele!

Fui forçado tomar whisky num copo sujo e comer bolo com a mão. Sei que pareço um pouco burguês falando assim e, admito que quando acampei muitas vezes joguei a higiêne pela janela mas, nestes casos, foram todos opções minhas e, eu bem sabia exatamente qual era o grau da minha sujeira.

Matty então, pegou um dos Cds que lhe dei e colocou-o no seu pequeno CD player portátil, colocou os pequenos fones de ouvidos fechou seus olhos e começou lentamente balançar a cabeça no rítmo da música.

Eu fiquei só pensando. Será que ele vai ouvir o álbum inteiro? Será que eu vou ter que ficar aqui nesta cadeira, em siliêncio, olhando para a cara dele?

Alguns minutos se passaram e ele começou esboçar um sorriso, parecia que estava pensando em algo. Então, abriu os olhos, tirou os fones dos ouvidos e inclinou-se na minha direção com uma cara de garoto sapeca:

“Sabe que na noite passada a Rainha Mãe veio na minha cama! É, veio mesmo!”

“Ela queria fazer amor?” Perguntei, tentando mostrar naturalidade.

“É, queria sim!” Matty falava com cara de malandro num tipo de conversa de homem para homem. Eu entrei no jogo e continuei:

“E você? fez amor?”

“Fiz sim! Foi muito bom!” Enquanto falava já foi fechando os olhos e colocando os fones de ouvidos novamente.

Fiquei mais uns 10 minutos olhando para a cara dele. De repente percebi que ele estava dormindo. Levantei-me e, caminhando nas pontas do pés, abri a porta e me retirei.

 

Sinto que a história do Matty Duncan ainda não acabou. Entretanto, muitos anos já se passaram e, pelo que sei Matty, infelizmente, continua sendo um músico de Reggae desconhecido lutando contra a sua esquizofrenia.

 

Ele me liga pelo menos uma vez por ano. A última vez foi à alguns meses atrás. Na última vez, perguntou-me novamente, se eu tinha algum dinheiro para ele. E eu tive que explicar, novamente, que não. Ele ficou com todos os CDs e a maior parte dos 50 que ele me deu eu dei para amigos.

 

A verdade é que, já não sou tão corajoso como era antes. Sempre que Matty liga, me dá um frio na barriga. Procuro sempre ser gentil e educado mas, mantenho-me distante dos seus problemas. Eu, realmente, tenho medo de encontrar-me com ele à sós. Acho, sinceramente, que eu já o ajudei bastante. Quando olho para trás, não só no caso do Matty, vejo que tomei muitos riscos desnecessários na minha vida e, devo dizer que, correndo risco novamente mas, agora, o de parecer preconceituoso e exagerado, à meu ver, Matty não é perigoso até matar alguém!

Antonio Celso Barbieri

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