John Cage = música da mudança
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John Cage = música da mudança
(Mário Pazcheco)
"Integrou o fazer ao ser musical, a arte à vida. Ao invés de compor, 'decompõe'. É o antídoto mais radical para o racionalismo europeu e o 'irracionalismo' pós-moderno". (Livio Tragtenberg).
No Brasil, na Bahia; em Salvador no ano de 1961. Na Escola de Música, diretor, o maestro Koellreutter, um homem identificado com as vanguardas e David Tudor executavam peças de John Cage para piano preparado e aparelhos de rádio.
Caetano Veloso lembra da gargalhada que tomou conta da sala — e do próprio diretor da escola — quando se ouviu, logo que Tudor ligou o rádio, a voz familiar do locutor: “Rádio Bahia, Cidade do Salvador”.
No salão nobre da reitoria da Universidade da Bahia, a sala cheia, o professor Koellreutter de pé observa: o pianista David Tudor, sentar-se na baqueta e levantar o tampo instrumento para apresentar peças de John Cage. David Tudor permanece sentado, quieto, silencioso, sem tocar sequer um tecla, durante longos quatro minutos e trinta e três segundos. Atingida essa marca, então, David Tudor fecha o tampo. Estava concluída com um ato e não um acorde "4'33", peça do compositor americano John Cage que consistia, na verdade, do ruído do desconforto, tosses, pigarros, da platéia durante tal período de tempo. A música para Cage, é nesse caso o público - que reage à sua maneira ao "som".
Em outra composição de John Cage previa que, a certa altura, David Tudor ligasse um aparelho de rádio ao acaso. A voz familiar surgiu como que respondendo ao seu gesto: “Rádio Bahia, Cidade do Salvador”. Toda a platéia da Universidade da Bahia caiu na gargalhada. Salvador tinha inscrito seu nome no coração da vanguarda mundial, com um jeito tão brasileiro, que o professor Koellreutter, entendendo tudo, riu mais do que toda a platéia.
"4'33" "para qualquer instrumento ou combinação de instrumentos" estreiou em 1952 e os Estados Unidos se dividiram entre aqueles que o consideravam seu maior compositor no século, aqueles que nem mesmo o consideravam um compositor e outros, a esmagadora maioria, que não tinha a menor idéia de quem se tratava.
John Cage postulava que a música era um "recipiente vazio" e introduziu o acaso na criação, consultando o livro chinês de advinhações, "I Ching", para determinar a estrutura de suas composições. Em 1930, aos 18 anos, o americano John Milton Cage Jr. viajara para a Europa, onde estudou com Erno Goldfinger e John Kirkipatrick, travando ainda contato com o dadaísmo, via Marcel Duchamp. De volta aos Estados Unidos e interessado pelo sistema dodecafônico, passou a receber orientação do compositor Arnold Schoenberg. O mestre austríaco não aceitava pagamento, mas exigia do pupilo dedicação integral à música até o fim de seus dias. Então, Cage concebeu "Walter gong" em 1937, inspirado em Edgar Varèse. O gongo era submerso numa piscina para um balé aquático da Universidade da Califórnia, Los Angeles (Ucla).
Outra de suas invenções - seu pai também era inventor - foi "o piano preparado": pregos, parafusos e ressonâncias. No final da década de 30, ele assinou a primeira música eletroacústica, "Paisagem imaginária nº 1" para dois gravadores, pianos e pratos. Fascinado pela percussão, John Cage passou a trabalhar com dança. Em 1942, mudou-se para Nova York, onde compôs para o coreográfo Merce Cunningham "Credo in US e "Paisagem imaginária nº 2 e 3".
John Cage na 18ª Bienal de São Paulo
Aeroporto de Cumbica. John Cage é um senhor idoso que exibe uma invejável vitalidade aos 73 anos de idade e que traz na bagagem além de infalíveis novidades uma cesta de comida macrobiótica para beliscar o dia todo. Dentro dela, Cage carregava bolinhos de arroz integral, ban-chá e petiscos macrobióticos variados. John Cage confirmou as expectativas e se transformou na estrela maior da 18ª Bienal Internacional de Arte de SP. Cortejado e seguido por um pequeno séquito de poetas concretos e artistas de vanguarda, Cage exibiu seu sorriso pelos 36 mil metros quadrados de exposição e recebeu, pacientemente, todos os catálogos e discos que lhe entregavam.
Domingo. 6 de outubro de 1985. Cage e Augusto de Campos se apresentaram no auditório do Museu de Arte Contemporânea, um encontro idealizado pela meio-soprano Ana Maria Kieffer (curadora do setor de música da Bienal) e pelo tenor alemão Theophil Maier com auxílio de Caio Giarca nos meios visuais. Além da apresentação do "Cage Campos", aconteceu também o "happening Cage" uma mostra sonora das obras do compositor realizadas por vários grupos musicais, num total de 50 músicos espalhados pela Bienal e executadas por justaposição, dando oportunidade ao ouvinte de apreciá-las individualmente ou acopladas a outras.
Durante "Cage Campos" as cadeiras rangeram, mas o público paulista foi mais discreto e, na sua maioria, ficou até o final da apresentação. A platéia (como já é habitual nos trabalhos de Cage) dividiu-se entre os aplausos frenéticos e os bocejos de tédio. A certeza é que não se passa impune diante das obras do compositor. "Cage Campos" promoveu o encontro dos sons de Mesostics Remerce Kunningham, Aria e Song Kooks, com muitos dos poemas concretos de Augusto de Campos, que, ao lado de seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari, formam a tríade de frente dos divulgadores brasileiros das mudanças musicais proferidas por Cage.
Para Augusto de Campos, o homem Cage é "o mais completo artista intersemiótico de nosso tempo". Para alguns estudantes nos corredores a Bienal, ele é apenas um "chato". E, para o próprio Cage, tudo fou uma "surpresa", já que considerou o Brasil uma fonte de descobertas: "Esse é um país subdesenvolvido com grandes recursos musicais e humanos".
O espetáculo "Cage Campos" foi somente uma parte de inúmeras homenagens que se prestaram ao artista. O ponto alto de sua passagem por São Paulo, foi o conecrto do dia 8 de outubro (uma terça), n o Teatro Sérgio Cardoso, com a presença no palco do próprio compositor, que ajudou na execução (junto a dezenas de harpistas e da Orquestra Sinfônica do Municipal) de "Cartão Postal do Paraíso", "Music For", "Renga" e "Muoyce". Sobre essa última composição, Cage contou que sua intenção foi reunir sons de diversos países e utilizá-los em forma de nagrama. Ao ouvir pela primeira vez em público essa obra em Paris, Cage considerou o resultado como "bastante denso".
Denso talvez como seu próprio trabalho que tira notas insólitas em momentos inesperados e colhe sons de pratos de cozinha, jogos de xadrez (um de seus passatempos prediletos) ou de pianos com acrécimos, entre as cordas, de borracha, metal ou pedaços de papel. Nesse ponto, Cage, erudito, aproxima-se do intuitivo Hermeto Paschoal, que prometeu fazer algo "exatamente ao contrário" do realizado pelo compositor americano.
— O silêncio é inventado, o resto é o ruído que nos rodeia - argumenta Cage em meio aos inúmeros sons emitidos pelo seus admiradores em busca de autógrafos. O autor de "De segunda a um ano" (livro traduzido por Rogério Duprat, com revisão de Augusto de Campos e lançado na Bienal pela Hucitec) acredita só poder manter silêncio interno morando no centro de Nova York, e que a música atual é multifacetada e não comporta mais qualquer espécie de preonceito. Mas nem por isso deve-se ouvir tudo:
— O ouvinte deve focalizar seu ponto de interesse e ele próprio completar esse interesse inical. A interpretação é que faz com que a música exista - afirmou.
Assustado com a imensa feijoada que se preparava para os artistas que participavam dessa 18ª Bienal, Cage abandonou a festa sem sequer tocar os olhos num torresmo. Sozinho, com alguns livros debaixo do braço, caminhou defronte ao imenso pavilhão. ao lado de inúmeras bandeiras, deixando várias perguntas sem respostas. "Eu recomeço a escrever quando as pessoas passam a me perguntar por que eu faço música", costuma repetir àqueles que insistem que ele defina seu trabalho musical.
Quando Cage desembarcou no Rio de Janeiro com sua inseparável cesta de comidas. E, quando um grupo de amigos o convidou a ir a um restaurante árabe, ele, prevenido, sacou do bolso um cartão com o nome de um restaurante macrobiótico carioca. Uma prévia e salvadora indicação de um fã paulista.
Depois de um casamento fracassado de três anos com Xenia Kashevaroff, o compositor tomou o bailarino, Merce Cunningham como companheiro até 1992, quando morreu, aos 79 anos, vitimado por um enfarte.
Alheio às críticas e interessado ora em experimentos poéticos e musicais com os computadores e devoto do i ching, Cage sempre aceitou tudo aquilo que o oráculo lhe revelava, fazendo brotar do mais árido ar uma nota musical ou um verso sem sintaxe que, passa mais mensagens do que muitos discursos.
John Cage deixou cerca de 500 obras, entre composições, como "Paisagem imaginária nº 4" (executada por dois músicos que manipulavam 12 rádios, com notações precisas, mas de efeito aleatório) ou "Walter music" (em que um pianista derramava água em potes e assoprava um apito dentro d`água), e livros, como "Writing through Finnegans Wake" (que explorava o texto de James Joyce) ou "Tacet" (silêncio em latim).
— Ainda hoje usamos muitas das composições de John, mas trabalhamos da mesma forma porque ele deixou as instruções muito bem explicadas sobre cada uma das obras, seu tempo e sua duração. (Merce Cunningham in "A dança sempre nova de Merce", Adriana Pavlova - O Globo, 26 fev./2003).
John Cage & Brian Eno (José Augusto Lemos - revista Bizz)
Em 1979, Brian Eno bota um piano preparado com tesouras e parafusos na música "African Night Flight", de David Bowie.
Seis anos depois, a revista "Musician" levou John Cage à casa de Brian Eno para uma entrevista mútua. Descobrem que, além da admiração um pelo outro, nutrem as mesmas paixões - macrobiótica, jardinagem e pintura - e uma mesma inspiração inicial quase punk: "Quando dei com a música e a pintura modernas, pensei logo: 'Eu também posso fazer isso!'" (John Cage). "Eu também!" (Eno).
Depois de receberr um xeque-mate, John Cage parabeniza Jards Macalé!
(F. S. Paulo 27 ago. / 1989.)
4'33
Londres. Janeiro de 2004. A estação clássica da BBC transmitiu a peça 4'33 que consiste em quatro minutos e 33 segundo de silêncio. A rádio agendou a peça como parte do concerto da Orquestra Sinfônica BBC, cuja performance também será transmitida na televisão.
Concerto Mais Longo da História avança duas notas (O Globo*)
Execução de peça de John Cage começou em 2001, na Alemanha, e deve estender-se por mais 600 anos
O concerto mais longo do mundo, executado em uma igreja abandonada na cidade alemã de Halberstadt, avançou mais duas notas anteontem: já se passaram três anos, faltam 636. Um mi e um fá vieram reunir-se ao sol sustenido, ao si e a outro sol sustenido que eram tocados desde fevereiro de 2003 no concerto "Organ2/ASLSP" - ou "Órgão ao quadrado/ O mais lento possível", do compositor americano John Cage. As cinco notas são os sons iniciais, tocados em um órgão especialmente construído para o concerto, em que as teclas são pressionadas por pesos e novos tubos serão adicionados na medida em que o concerto for avançando, geração após geração.
A peça não é apenas mais uma composição de vanguarda na já vanguardista obra do autor, que tem um concerto com 4 minutos e 33 segundos de silêncio e outro para um piano com parafusos e pedaços de madeira colocados estrategicamente entre as cordas.
— Ele tem um fundo filosófico: nos tempos agitados que vivemos, encontrar calma através da lentidão - diz Georg Bandarau, empresário que ajuda a fundação que patrocina o concerto. — Daqui 639 anos, talvez as pessoas tenham apenas paz.
O concerto começou no dia 5 de setembro de 2001 - o dia em que Cage teria completado 89 anos. A composição, que originalmente duraria 20 minutos, começa com um silêncio - por um ano e meio o único som emitido foi o ar. As duas primeiras notas foram tocadas em fevereiro de 2003, e outras três em 5 de julho de 2004.
Depois de discussões, na Alemanha, sobre o que seria exatamente "o mais lento possível" - o que pode ir de um dia ao infinito - o grupo de especialistas em música e o fabricante do órgão escolheram a duração de 639 anos para comemorar a criação do famoso órgão Blockwerk, que data de 1361.
Cerca de dez mil turistas visitam a cidade, que fica a 100km de Hannover, entre abril e setembro de 2003, para ouvir as três primeiras notas.
John Cage nasceu em Los Angeles em 1912, e foi importante como compositor e como pensador, assim como seu professor, Arnold Schoenber. Ele compôs "Organ2" em 1985 - originalmente para piano, mudando para órgão dois anos depois.
*Texto originalmente publicado em O Globo, 7 jul. / 2004.