Koellreutter: vítima da informação apressada (2003)
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Koellreutter: vítima da informação apressada
(Luiz Paulo Horta*)
Uma das maravilhas da Internet é a rapidez com que ela permite a difusão de informações. O reverso da medalha é a facilidade com que, em nome dessa rapidez, atropela-se a verdade. Na semana que passou, o e-mail de pessoas ligadas à música esteve abarrotado de informações tratando do “triste fim” de uma pessoa importante: Hans-Joachim Koellreutter, todo um capítulo da música brasileira, onde ele, vindo da Alemanha, foi o responsável pela introdução do dodecafonismo, além de servir de guru para gerações de compositores. A notícia dava conta de um Koellreutter abandonado, na miséria, em condições precaríssimas de saúde.
De tudo isso, só a última parte é verdadeira. Aproximando-se dos 90 anos, o professor Koellreutter está, de fato, numa situação de debilidade física extrema, em que mal reconhece as pessoas – motivo que levou a família a restringir as visitas (o próprio Koellreutter, mais novo, orgulhoso no bom sentido, não gostaria de se ver exposto nas condições de agora). Quanto ao mais, tem família, tem amigos, e, como ex-diretor do Instituto Goethe no Brasil e em outros países, tem uma aposentadoria alemã que não é a do nosso cambaleante INSS. Ainda no ano passado, sob a direção de Neném Krieger, o CCBB do Rio de Janeiro realizou uma série de programas que se constituíam numa homenagem à vida e à obra de uma pessoa realmente fascinante, impaciente com a mediocridade, aberto a todos os ventos e influências – e capaz de transmitir aos outros uma riquíssima reflexão e prática sobre a arte.
*Originalmente publicado no jornal 'O Globo' em 24 jan. / 2003.
Algumas informações não precoces sob o professor Koellreutter (compilado por Mário Pacheco)
BRIC A BRAC — Retomando a linha de inventário do movimento concretista, depois do contato de vocês com o grupo Ruptura, houve também uma integração com a Escola Livre de Música, onde se praticava um som de vanguarda. Como foi isso?
AUGUSTO DE CAMPOS — O contato com os músicos surgiu um pouco depois, em 53/54, logo depois do contato com os pintores. A Escola Livre de Música funcionava na rua Sergipe (São Paulo) e era dirigida pelo Koellreutter, um músico muito importante, de origem européia, alemã, que foi o grande introdutor do dodecafonismo no Brasil e da nova linguagem musical, contrapondo-se aos músicos de tendência nacionalista e de inspiração no realismo socialista, como era o caso de Camargo Guarnieri. Já na década de 40, houve uma enorme polêmica entre essas duas tendências e a própria Pagu participou, como dá conta o meu livro. Ela assumiu uma posição progressista, defendendo a linguagem de vanguarda, a linguagem moderna pela qual propugnava o Koellreuter. Mas quando entramos em contato com os músicos, ele era diretor dessa escola. Nessa época, processava-se mundialmente um movimento de recuperação das vanguardas experimentais do início do século, especialmente a partir de Schoenberg e do grupo de Viena, Berg e Anton Webern, especialmente. Eles foram recuperados, revividos através da vanguarda da nova música européia, Boulez, Stockhausen, Berio, Nono. Neste momento preciso, o Koellretter estava atuando outra vez através de conferências, palestras e de aulas, difundindo essas preciosidades cujo acesso era difícil por aqui. Nós, eu, Haroldo e Décio, tivemos a sorte de aqui em São Paulo termos contato com esse nível de informação musical. Havia uma loja de discos chamada ‘Stradivarius’ que importava os discos de Varèse, do Webern, do Schoenberg, os primeiros discos do John Cage, “Sonatas e interlúdios para piano preparado”...
BRIC A BRAC — Vocês eram alunos dessa escola?
AUGUSTO DE CAMPOS — Nós a freqüentávamos. O Koellreuter dava aulas e explicava como era o método dodecafônico, ilustrando essas aulas com fitas e discos. Isso complementou e ampliou nosso conhecimento. Aqui e ali compareciam nessa escola também os pintores, o que aumentava nossa articulação. Em 54, o Koellreutter foi dar um curso livre em Teresópolis e convidou o Décio Pignatari e o Cordeiro, que era o líder dos pintores concretistas. O curso era de música, mas eles foram falar de poesia e de pintura. O Décio fez uma conferência falando de Mallarmé, Joyce, Pound, Cummings e fez juntamente com o Damiano Cozzella uma leitura dos poemas do “Poetamenos”, que foram feitos para várias vozes, influenciados pelo Webern.
Essa informação é importante, porque mostra que aquele primeiro contato com os pintores, que já nos projetou para fora do âmbito estritamente literário, com o acréscimo desse encontro com a música, aprofundou a exploração da linguagem poética dentro de uma conduta interdisciplinar mais ampla, mais radical e não apenas literária.
Isso aconteceu em 54/55 e em 56 deu-se a exposição nacional de arte concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em dezembro.
Numa época em que as ideias de vanguarda chegavam ao Brasil, Camargo Guarnieri fez experiências ocasionais com a técnica dos 12 sons, mas manteve-se deliberadamente fiel ao sistema tonal - sabendo produzir, dentro desses limites, obras de inegável
individualidade. Essa atitude o fez entrar em choque inevitável com os partidários do dodecafonismo, reunidos em torno de Koellreuter. Ficou famosa a polêmica que opôs suas concepções, e o modo intransigente como Camargo Guarnieri, na ‘Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil’, se insurgiu contra a voga do atonalismo, que chamou de "contorcionismo cerebral antiartístico" e mero "refúgio de compositores medíocres". Nesse documento, defendeu os princípios daquilo que Vasco Mariz chama de "um plano elevado de brasilidade depurada, íntima e não-exibicionista", livre de exotismos de superfície.
Trecho
É preciso que se diga a esses jovens compositores que o dodecafonismo, em música, corresponde ao abstracionismo, em pintura; ao hermetismo, em literatura; ao existencialismo, em filosofia; ao charlatanismo, em ciência.
Assim, pois, o dodecafonismo (como aqueles e outros contrabandos que estamos importando e assimilando servilmente) é uma expressão característica de uma política de degenerescência cultural, um ramo adventício da figueira-brava do cosmopolitismo que nos ameaça com suas sombras deformantes e temo por objeto oculto um lento e pernicioso trabalho de destruição do nosso caráter nacional.
O dodecafonismo é assim, de um ponto de vista mais geral, produto de culturas superadas, que se decompõem de maneira inevitável; é um artifício cerebralista, anti-nacional, anti-popular, levado ao extremo; é química, é arquitetura, é matemática da música – é tudo o que quiserem – mas não é música! É um requinte de inteligências saturadas, de almas secas, descrentes da vida; é um vício de semimortos, um refúgio de compositores medíocres, de seres sem pátria, incapazes de compreender, de sentir, de amar e revelar tudo que há de novo, dinâmico e saudável no espírito de nosso povo.
Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil - Camargo Guarnieri (7 de novembro de 1950)
Trecho II
Dodecafonismo não é um estilo, não é uma tendência estética, mas sim o emprego de uma técnica de composição criada para a estruturação do atonalismo, linguagem musical em formação, lógica conseqüência de uma evolução e da conversão das mutações quantitativas do cromatismo em qualitativas, através do modalismo e do tonalismo. Não tendo, por um lado – como toda outra técnica de composição – outro fim a não ser o de ajudar o artista a expressar-se e, servindo, por outro lado, à cristalização de qualquer tendência estética, a técnica dodecafônica garante liberdade absoluta de expressão e a realização completa da personalidade do compositor. Ela não é mais nem menos formalista, antinacional ou anti-popular que qualquer outra técnica de composição baseada em contraponto e harmonia tradicionais. É errôneo, portanto, o conceito de que o dodecafonismo atribua valor preponderante à forma ou despoje à música de seus elementos essenciais de comunicabilidade; que lhe arranque o conteúdo emocional; que lhe desfigure o caráter nacional e que possa levar à degenerescência do sentimento nacional.
Resposta a Camargo Guarnieri - Hans Joachim Koellreuter (28 de dezembro de 1950)
O que leva à degenerescência do sentimento nacional, o que se torna um vício de semi-mortos e um refúgio de compositores medíocres e não contribui em absoluto para a evolução cultural de um povo, pelo contrário, é o nacionalismo em sua forma de adaptação de expressões vernáculas.
TRECHO III - O colégio Central e a Geração Mapa
A Universidade da Bahia, pois, assumia na década de 50 uma atitude de liderança, com iniciativas pioneiras, sob o reitorado de Edgard Santos. Os novos órgãos eram importantes não só pelo papel que passaram a desempenhar na formação de quadros artísticos e de magistério, como pelo fato de se haverem transformado em centros aglutinadores de talentos vindos de fora, que, em certos casos, enriqueceram com a experiência européia a vocação do povo baiano para a música, o teatro, o cinema, a dança e as artes em geral. Terra de artistas e poetas, de músicos e dançarinos, logo também seria de cineastas. Entre os pioneiros que ajudaram Edgard Santos na fundação das três unidades básicas do ensino artístico — música, teatro e dança — estavam nomes do relevo de Koellreutter, Martin Gonçalves e Yanka Rudzka. O primeiro, tendo escapado do nazismo e trazendo na bagagem as qualificações de músico de vanguarda, talvez tenha deixado o legado mais duradouro. Fundaria os Seminários Livres de Música, abertos a todas as experimentações. Não será exagero dizer que o florescimento musical da Bahia, inclusive com a diversidade que hoje se registra na área popular, com tons e ritmos que parecem alternar-se a cada dia, decorreu em parte do sentido que Koellreutter impôs aos Seminários, pelos quais passaram nomes com influência na música popular brasileira. "GLAUBER ROCHA ESSE VULCÃO" — JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES. EDITORA NOVA FRONTEIRA, 1997.
Trecho IV
Instrumentistas e maestros da escola de música (a cujos concertos sinfônicos ou camerísticos assistíamos no salão nobre da reitoria semanalmente) também colaboraram na montagem da ‘Opéra’ de Brecht e em alguns outros espetáculos teatrais — e um ator da Escola de Teatro foi o narrador na apresentação de ‘Pedro e o lobo’. O diretor da Escola de Música, o maestro Koellreutter (que tinha ensinado a Tom Jobim), um homem brilhante e identificado com as vanguardas, imprimiu um caráter muito vivo à programação de concertos: tínhamos Beethoven, Mozart, Gershwin, Brahms — e tivemos David Tudor executando peças de John Cage para piano preparado e aparelhos de rádio (lembro da gargalhada que tomou conta da sala — e do próprio diretor da escola — quando se ouviu, logo que Tudor ligou o rádio, a voz familiar do locutor: “Rádio Bahia, Cidade do Salvador”). "Verdade Tropical" (Caetano Veloso) EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS, 1997.
Prefácio
Lembro do pianista David Tudor, em 1961/62, apresentando peças de John Cage no salão nobre da reitoria da Universidade da Bahia — aquele prédio gozado do Bairro do Canela que sempre me parecerá maravilhoso —, a sala cheia, o professor Koellreutter de pé observando. Uma das composições previa que, a certa altura, o músico ligasse um aparelho de rádio ao acaso. A voz familiar surgiu como que respondendo ao seu gesto: “Rádio Bahia, Cidade do Salvador”. Toda a platéia caiu na gargalhada. A cidade tinha inscrito seu nome no coração da vanguarda mundial com um tal graça e naturalidade, com um jeito tão descuidado, que o professor Koellreutter, entendendo tudo, riu mais do que toda a platéia.
AVANTE-GARDE NA BAHIA DE ANTONIO RISÉRIO (1995)
Prefácio de Caetano Veloso
Nunca mais esqueci o nome de David Tudor, mas não foi aí que o nome de John Cage fixou-se em minha mente. No entanto o fascínio por aquela música feita de silêncios (numa das peças as teclas eram apenas tocadas, sem serem pressionadas, pelos dedos enluvados do pianista) e acasos não me abandonou mais. Não sei dizer por que eu já chegara de Santo Amaro preparado para coisas assim. Eu simplesmente ansiava por elas. Um conto de William Saroyan lido acidentalmente na infância, Clarice Linspector na revista ‘Senhor’, o neo-realismo italiano, mas sobretudo João Gilberto, tinham me levado a uma idéia do moderno com a qual eu me comprometi desde cedo. Isso descreve como o tema já tinha se tornado meu desde Santo Amaro, mas não explica as razões para que fosse assim.
Para leitura
Kater, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreuter : Movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Musa Editora/Atravez, 2001.
Koellreuter, H. J. Terminologia de uma nova estética da música. Porto Alegre: Movimento, 1990.