Keith Richards: curtindo adoidado
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Curtindo adoidado
A vida e as tentações de Keith Richards
por David Remnick
Em 1973, os editores do New Musical Express puseram Keith Richards, principal guitarrista e alma musical dos Rolling Stones, no topo de sua lista anual de “estrelas do rock com maior probabilidade de morrer” naquele ano. Mesmo para um roqueiro, Richards consumia quantidades hercúleas de heroína, cocaína, mescalina, LSD, peiote, Mandrax, Tuinal, maconha, bourbon e demais refrescos, e todos os observadores achavam que ele estava com os dias contados. Àquela altura, a lista de baixas do rock era longa e agourenta: Jimi Hendrix, Jim Morrison e Janis Joplin eram apenas os nomes mais célebres a encabeçar o obituário. Em 1969, Richards e seus colegas dos Stones haviam perdido Brian Jones, que se afogara numa piscina poucas semanas depois de ser demitido da banda. Em vez de preservar sua mortalidade, Richards preferia exibi-la de forma acintosa. Registrou para a posteridade seu quase constante torpor dando livre acesso a Robert Frank, Annie Leibovitz e outros fotógrafos, que o captaram nos camarins ou em quartos de hotel, seminu e completamente doidão. Ao ver aquelas imagens de Richards, largado, chapado e leso, imaginava-se que era uma questão de dias para que a imprensa anunciasse que ele havia morrido sufocado em seu próprio vômito.
Na realidade, Richards foi em frente, tropeçando pelos concertos numa névoa narcótica, dormindo durante os ensaios, sempre à beira do olvido e, mesmo assim, produzindo junto com Mick Jagger parte da música pop mais memorável da época. Entre 1968 e 1972, os Stones gravaram Beggars Banquet, Let it Bleed, Sticky Fingers e Exile on Main St., a essência do repertório deles. Continuaram a tocar essas músicas por tanto tempo quanto Sinatra cantou Love and Marriage. A peculiaridade dos Stones se devia menos aos vocais de Jagger do que à capacidade de Richards de absorver o estilo blues das guitarras de Chuck Berry e Jimmy Reed, criando algo novo. Havia músicos muito mais técnicos, solistas muito melhores, mas a noção de ritmo e de riff dele, o seu bom gosto, seus acordes sustentados e espaços abertos marcaram o som dos Stones. E, ao longo de tudo isso, a Indesejada não conseguiu entrar no camarim. Depois de deixar Keith Richards no topo da lista de seu observatório da morte por dez anos, o New Musical Express finalmente jogou a toalha e admitiu que ele era imortal.
Faz trinta anos que os Stones não compõem uma canção importante, mas eles sobreviveram quatro décadas além dos seus grandes contemporâneos, os Beatles. E mesmo que a originalidade deles tenha se esvaído, suas máquinas empresarial e de produção de espetáculos foram afinadas à perfeição. Desde 1989, os Stones arrecadaram mais de 2 bilhões de dólares em receita bruta, ajudados por acordos de patrocínio com Microsoft, Anheuser-Busch e E*Trade. As firmas Promotour, Promopub, Promotone e Musidor – todas com sede na Holanda por motivos fiscais – cuidam dos vários ramos das atividades empresariais dos Stones. Tudo é supervisionado por equipes de contadores, advogados de imigração, especialistas em segurança e, até muito recentemente, um aristocrático consultor de negócios chamado príncipe Rupert zu Loewenstein-Wertheim-Freudenberg. Mesmo nos anos sem excursões ou discos, os Stones dão um jeito de ganhar algum. Licenciaram Start Me Up para a Microsoft, quando a companhia lançou o Windows 95, e She’s a Rainbow para a Apple, quando uma linha de iMacs precisou de promoção. De acordo com a Fortune, os Stones estão por trás da comercialização de cerca de cinquenta produtos, inclusive roupas de baixo vendidas pela cadeia de lingerie Agent Provocateur. A logomarca deles – uma linguona lasciva para fora de uma boca que sorri – é tão reconhecível na paisagem dos negócios quanto os arcos dourados do McDonald’s.
“Essa coisa de negócios depende muito das leis fiscais”, Keith Richards contou à Fortune. “É por isso que ensaiamos no Canadá e não nos Estados Unidos. Muitas das nossas manobras espertas têm a ver fundamentalmente com a natureza das leis fiscais: aonde ir, onde não pôr nosso dinheiro. Botar debaixo do colchão ou não. Saímos da Inglaterra porque pagaríamos 98 centavos por cada dólar ganho. Fomos embora e eles é que perderam. Não vão receber um tostão de impostos. Não quero ferrar ninguém, muito menos os governos com quem trabalho. Deixamos 30% numa conta parada até resolver tudo.” Keith pode imaginar que é um símbolo de 68, mas emprega a política fiscal do mais radical dos conservadores.
No último tour que fizeram, entre 2005 e 2007, os Stones faturaram mais de meio bilhão de dólares – foi a mais lucrativa excursão da história. Na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, tocaram para mais de 1 milhão de pessoas. Poucos espetáculos da vida moderna são tão sublimemente ridículos quanto os integrantes geriátricos dos Stones tocando os acordes iniciais de Street Fighting Man. A plateia costuma ficar lotada de fãs de meia-idade que, ao sair do escritório, vestiram um jeans largão, deixaram as crianças com a babá e desembolsaram 200 ou 300 dólares para rebolar junto com Mick Jagger. Este, por sua vez, tendo treinado para as excursões como se fosse uma final de campeonato, saracoteia sem parar durante as duas horas de show; nos melhores momentos, lembra um epígono de James Brown; nos piores, a tia bêbada decidida a estragar o casamento da irmã mais bonita com uma performance patética na pista de dança. Desde 1975, “a excursão do pau inflável gigante”, como gosta de dizer Richards, os Stones tentam se superar com lances espetaculares. Às vezes, vão longe demais. “Teve aquela coisa de pôr elefantes no palco em Memphis”, diz Richards, “mas eles destruíram as rampas e cagaram o palco todo nos ensaios. A ideia não foi pra frente.” Noves fora os micos, o que acabamos por admirar é a improvável persistência dos Stones, uma entidade de quase meio século, que, aos trancos e barrancos, segue cômica e persistentemente adiante. Os rapazes estão chegando perto dos 70 anos. Enrugados, tingidos e esqueléticos, eles trovejam um repertório que a esta altura é tão augusto e imutável quanto as Variações Diabelli, de Beethoven. “De vez em quando, você olha para os próprios pés e pensa ‘é a mesma merda de sempre todas as noites’”, disse Richards. No entanto, ele continua a tocar e as multidões continuam pagando, relutantes em abandonar o último elo com seus anos dourados.
O mais novo artefato da longevidade da banda é a animada autobiografia de Keith Richards, cujo título desafiador é simplesmente Vida, lançada no Brasil pela editora Globo. Parte livro, parte extensão da marca, trata-se de um monólogo divertido e divagante, uma viagem leve pela vida de um homem que conheceu todos os prazeres, se permitiu tudo e nunca pagou o preço. “Você talvez não consiga sempre o que quer”, canta Jagger em You Can’t Always Get What You Want. Mas essa regra não se aplica a Keith.
Uma advertência óbvia: as memórias de um homem cuja memória está enevoada por incontáveis anos de obliteração narcótica são memórias de um gênero bem particular. Em 1978, quando lhe perguntaram por que os Stones haviam chamado seu último disco de Some Girls, Richards respondeu: “Porque a gente não se lembrava do nome de nenhuma delas.” Não obstante, a editora americana Little, Brown pagou 7 milhões de dólares a Richards para produzir o livro. Ele, por sua vez, escolheu um ghost-writer de talento – James Fox, o autor de White Mischief, uma história bem contada do assassinato de Josslyn Hay, o 22º conde de Erroll, um dos muitos expatriados dissolutos que viveram em Happy Valley, nos arredores de Nairóbi, no Quênia. Para Fox, escrever sobre as drogas, as aventuras sexuais e o tédio requintado de Happy Valley foi uma boa preparação para Vida.
Richards e Fox sabem por que o leitor desembolsou o dinheiro do livro: pelo mesmo motivo que, ainda hoje, trinta anos depois de largar a heroína, Keith cambaleia pelo palco com um sorriso maníaco e diz para a multidão em delírio: “É um prazer estar aqui! Aliás, é um prazer simplesmente estar!” É o excitamento de ouvir alguém que jamais passou um dia entre as quatro paredes de uma fábrica ou de um escritório, consumiu o que havia para ser consumido e sobreviveu para contar a história. Esse é o homem que inventou o refrão de (I Can’t Get No) Satisfaction enquanto dormia e, no entanto, teve mais satisfações do que jamais imaginou Giacomo Casanova. Assim, Vida tem urgência em realçar o Mito de Keef e nos oferecer o que desejamos. O livro começa com uma longa cena da excursão dos Stones pelo Sul dos Estados Unidos em 1975, os carros lotados de narcóticos de primeira classe – “cocaína pura da Merck, o pó farmacêutico fino”. Mas na cidadezinha de Fordyce, Arkansas, população de 4 237 habitantes, Richards arranja confusão com a polícia. Segue-se uma narrativa grotesca de mau comportamento dos Stones diante da Justiça sulista. Richards, que acabou de se vangloriar para o leitor da posse e ingestão de vastas quantidades de droga, se faz de desentendido quando lhe dizem que enfrentará uma possível condenação à prisão. Da qual, como de costume, ele se esquiva.
Richards se gaba do seu metabolismo. Não somente narra sua “viagem movida a ácido com John Lennon”, como faz questão de nos dizer que Lennon “não conseguia acompanhar”. E relembra: “Ele tentava tomar tudo o que eu tomava, mas eu treinava duro. Um pouco disso, um pouco daquilo, uns tranquilizantes, umas bolinhas, coca e pó, e depois eu ia trabalhar. Eu era alucinado. E John acabava invariavelmente no meu banheiro, abraçado ao vaso.”
Às vezes, o livro parece uma versão sem consequências de Junky, de William Burroughs. Num trecho longo, Richards descreve sua dieta diária:
Eu tomava um barbitúrico para acordar, de efeito recreativo em comparação com a heroína, mas nem por isso menos perigoso. Isso era o café da manhã. Um Tuinal, fazia um furinho com uma agulha, para fazer efeito mais rápido. Depois tomava uma xícara de chá, e então matutava sobre levantar ou não da cama. E mais tarde, quem sabe um Mandrax ou Quaalude. Senão eu ficava com energia demais para queimar. Desse jeito, você acorda devagar, já que tem tempo. E quando o efeito passa, depois de umas duas horas, você se sente relaxado, come alguma coisa de café da manhã e está pronto para o trabalho.
Richards se orgulha de muitas coisas, inclusive de sua capacidade de ficar acordado durante dias. Seu recorde de todos os tempos foi uma sequência de nove dias sem dormir à base de cocaína, ao final da qual ele simplesmente desabou e bateu com a cabeça num alto-falante: “Saiu uma cortina de sangue.”
Esse aspecto do livro, a narrativa do viciado, é o capítulo mais recente de uma tradição que data do romantismo e de Thomas de Quincey, com suas visões causadas pelo ópio, povoadas de crocodilos e outros “monstros indizíveis”, de Crabbe, Coleridge, Byron, Baudelaire – uma lista infindável. Mais especificamente, Vida pertence à subcategoria das memórias de músicos viciados: Straight Life, de Art Pepper, High Times Hard Times, de Anita O’Day, Raise Up Off Me, de Hampton Hawes, e a colaboração fantasticamente obscena de Miles Davis com Quincy Troupe.
Quando terminei o livro de Richards, li várias dessas memórias do jazz, bem como biografias de outros gênios viciados, como Billie Holiday e Charlie Parker. Depois de revisitar o desespero, as drogas vagabundas, as condenações à prisão, as vidas encurtadas, achei que havia algo quase repugnante no ego e no espírito jovial do sortudo Keith. Ele tem muitos conselhos disparatados para o candidato a junkie e voyeur: nada de drogas injetáveis, tome apenas as drogas mais puras e de melhor qualidade e, por favor, nunca exagere. (“Olha, eu não devia dizer nunca; eu às vezes ficava totalmente cataplético.”)
Richards admira a música de seus predecessores e superiores, mas não sente a dor deles. Está protegido dos dramas normais dos drogados por camadas e camadas de advogados, dinheiro, e privilégios. Charlie Parker compôs Relaxin’ at Camarillo depois de sair de um manicômio na cidade homônima da Califórnia. Richards fez Exile on Main St. quando era um exilado do fisco morando numa propriedade rural em Villefranche-sur-Mer. Nos intervalos entre picos e ensaios, ele cruzava o Mediterrâneo numa lancha de corrida atrás de socialites europeus: “Dávamos uma parada em Monte Carlo para almoçar. Batíamos papo com a turma do Onassis ou do Niarchos, que atracavam iates imensos por lá.”
Outro aspecto inevitável das memórias ou biografias do rock é o catálogo de conquistas sexuais e, sobre esse assunto, Richards é quase tímido. Ele nos conta que seus colegas Jagger e Bill Wyman tabulavam friamente suas conquistas. Keith é do tipo passivo. São as mulheres que o procuram. “Nunca dei uma cantada numa mulher em toda a minha vida”, diz. E, no entanto, descreve com prazer como roubou a modelo e artista teutônica Anita Pallenberg de Brian Jones enquanto desciam para o Marrocos num Bentley:
Anita e eu nos olhamos e a tensão no banco de trás ficou tão alta que, quando vejo, ela está me pagando um boquete. Aí a tensão se rompeu. Ufa. E de repente, estávamos juntos. [...] Durante mais ou menos uma semana é fuque-fuque-fuque lá na Kasbah, nós dois com um tesão de coelho, se perguntando como tudo isso ia acabar.
No fim das contas, Richards e Pallenberg resolveram morar juntos. Formam um casal e tanto, jovens junkies apaixonados, constantemente driblando a prisão. Mas não conseguem driblar a tragédia. Em 1976, enquanto Keith estava em excursão, o terceiro filho dele com Pallenberg, um bebê chamado Tara, morreu no berço. Eis a maneira ponderada como Richards exprime o seu pesar: “Nunca conheci o filho da puta, ou mal o conheci. Troquei as fraldas dele duas vezes, acho. [...] Até hoje, Anita e eu não falamos a respeito.” Isso vai muito além dos limites normais da reserva.
O vício e o mau comportamento de Pallenberg são demais até para Richards. O problema não é tanto ele estar convencido de que ela teve um caso com Jagger – seu terceiro Stone! – mas o fato de ela superar os limites de Keith no departamento “decadência”. “Ela era incontrolavelmente autodestrutiva”, escreve ele. “Era como Hitler; queria que todos afundassem com ela.” Por fim, Richards encontra a felicidade e uma existência muito mais estável com uma modelo americana chamada Patti Hansen.
Richards é grosseiro com muita gente nesse livro, assim como foi em numerosas entrevistas dadas ao longo do tempo. Ele acha que isso faz parte do seu charme de malandro. Diz que os punks não têm talento. Elogia o U2 uma ou duas vezes, mas desconsidera todo mundo, de Prince (“um anão supervalorizado”) a Elton John (“uma puta velha”) e Bruce Springsteen (“Se houvesse coisa melhor por aí, ele ainda estaria tocando nos bares de Nova Jersey”). Os que não acompanham essas coisas de perto podem se surpreender ao ver como Richards pode ser duro com Mick Jagger, ao qual se refere às vezes como “Brenda” ou “Sua Majestade”. Ele não suporta as pretensões de Jagger, seus “cálculos”, seu excesso de atenção aos negócios, sua ânsia pela aprovação do establishment e sua tendência ocasional de tratar Richards e os outros membros da banda como empregados. Ele o retrata como cheio de frescuras, triste, alguém que só pensa em si mesmo: “É quase como se Mick Jagger aspirasse a ser Mick Jagger, correndo atrás de seu próprio fantasma. Com a ajuda de consultores de estilo. [...] Eu adorava andar com Mick, mas não entro em seu camarim acho que faz uns vinte anos. Às vezes, sinto saudades do meu amigo.” Richards, que vive como um fidalgo em propriedades rurais muradas na Inglaterra e em Connecticut, concede que Jagger é seu “irmão” e terá sempre seu apoio, mas claramente se considera mais original como homem e como músico.
Há leitores que se deliciarão com a autoimagem de Richards como o espertalhão que sempre se dá bem, mas, para mim, as seções mais fascinantes do livro são as histórias de sua evolução, o modo como sua amizade de adolescência com Jagger e o amor que os dois tinham por seus heróis do blues levaram rapidamente à formação da Maior Banda de Rock do Mundo. É uma história já narrada muitas vezes, mas Richards e Fox a contam muito bem.
Keith Richards e Mick Jagger eram crianças na Londres do pós-guerra e colegas de escola na Wentworth Primary School, em Dartford. Keith era filho único de pais de classe operária. Seu pai, Bert, era chefe de seção numa fábrica da General Electric. Criado ouvindo jazz, blues e os sons emergentes da música pop americana, ele cantava no coro da escola. Depois que sua voz mudou, perdeu interesse pela escola e começou a frequentar a sorveteria Dimashio, onde ficava ouvindo o jukebox. “Era o único pedacinho de América em Dartford”, escreve ele. “A vida era em branco e preto; o tecnicolor estava para chegar, mas em 1959 ainda não.” À noite, ele ouvia Buddy Holly, Eddie Cochran, Little Richard e seu ídolo, Elvis Presley, na Rádio Luxemburgo. Esses foram os anos do “Despertar”, a recepção entusiástica da música americana na Grã-Bretanha. Músico iniciante, Richards interessou-se pelos acompanhantes: o guitarrista de Elvis, Scotty Moore; o arranjador e trompetista de Fats Domino, Dave Bartholomew. No Sidcup Art College, escola que preparava gente atrás de um emprego na agência de publicidade J. Walter Thompson, Richards passava o tempo vadiando e escutando discos de blues. Então, em 1961, na estação ferroviária de Dartford, ele topou com Jagger, que, como ele descobriu, era fanático por blues e colecionador de discos. Jagger tinha todos os discos da Chess Records: Muddy Waters, Chuck Berry, Howlin’ Wolf, Willie Dixon. Os dois garotos ouviam os discos sem parar.
Jagger e Richards criaram uma banda chamada, no começo, Little Boy Blue and the Blue Boys. Na primavera de 1962, eles já tinham incorporado outro guitarrista maluco por blues, Brian Jones. No mês de janeiro seguinte, ganharam a companhia de um baterista com gosto por jazz, Charlie Watts, e um baixista, Bill Wyman, cuja principal qualificação era ser dono de um amplificador Vox. Esses eram os Rolling Stones.
Enquanto a banda tomava forma, Richards aprendia a copiar a simplicidade de uma nota só de B. B. King e os solos de corda dupla de T-Bone Walker – técnica que economizou dinheiro para a banda, porque podia “eliminar a necessidade de uma seção de sopros”. Richards e Jagger tinham uma ambição simples: só queriam ser “a melhor banda de blues de Londres e mostrar àquela gente o que era tocar de verdade”. Com devoção de monge, moravam em apartamentos baratos e ensaiavam a noite inteira. “Quem saía do ninho para transar, ou tentar transar, era um traidor”, relembra Richards.
A banda tocou em clubes nos arredores de Londres com nomes como Flamingo, Ealing, Crawdaddy, Marquee e Red Lion; e, nos fluidos dias de 1963 – enquanto os Beatles, uma banda relativamente veterana, estava em ascendência – os Stones lançaram seu primeiro single, um cover de Come On, de Chuck Berry. O disco disparou nas paradas e em uma semana os Stones eram estrelas. Foi o que bastou. “De repente, estavam botando a gente nuns puta ternos xadrez pied-de-poule e fomos levados pela maré”, diz Richards. Mas os garotos logo se livraram do look pseudo-Beatles. Se deram bem do seu jeito. No início, se apresentaram na abertura de shows de Little Richard e Bo Diddley (com quem aprenderam incontáveis lições de ritmo e teatralidade), e depois como atração principal, causavam tumultos onde quer que fossem.
“Na Inglaterra, acho que durante dezoito meses, nunca conseguimos terminar um show”, lembra Richards. O repertório curto deles tinha covers de Not Fade Away, I’m a King Bee e Around and Around, mas a gritaria era tão intensa que em algumas noites a banda tocava O Marinheiro Popeye só para ver se alguém notava. Os garotos jogavam tampinhas de garrafa e moedas; as garotas queriam despedaçar os Stones, tão profundo era o frenesi erótico. Ainda hoje, Richards parece assustado:
Jamais me esqueci do poder das adolescentes de 13, 14, 15 anos, quando estão em bando. Elas quase me mataram. Nunca temi mais por minha vida do que diante daquelas adolescentes – as que me asfixiaram me deixaram em frangalhos. Se você era apanhado por uma multidão frenética de adolescentes, é difícil expressar o medo que elas provocam. Seria preferível estar numa trincheira lutando contra o inimigo do que encarar aquela onda assassina e irrefreável de luxúria e desejo, ou seja lá o que for aquilo – uma força desconhecida até por elas.
Depois de um show no norte da Inglaterra, a banda ficou no teatro, esperando que a multidão fosse embora. Um velho zelador que havia ajudado na limpeza disse a Richards: “Show muito bom. Nenhum assento seco na casa.”
Quando os Stones foram pela primeira vez aos Estados Unidos, no verão de 1964, tocaram em shows depois de Bobby Goldsboro e dos Chiffons, e sofreram os insultos de Dean Martin, que os chamou de cabeludos primitivos. Chegaram até a dividir o programa com um contorcionista chamado “Incrível Homem-Borracha”, o qual, pensando bem, talvez tenha exercido uma influência decisiva nas momices de Jagger no palco. Foi somente quando, naquele mesmo ano, Jagger e Richards passaram a compor que os Stones começaram de fato a competir com os Beatles. Em 1965 lançaram Satisfaction. Num padrão que seria típico da colaboração entre os dois nas décadas seguintes, Richards criou o riff e Jagger entrou com a letra.
Na imaginação adolescente, a vantagem de ser membro de uma banda é que você acaba o dia na cama com a parceira, ou parceiras, que quiser. Não é bem assim, diz Richards: “Você pode estar nadando, ou comendo sua mulher, mas lá no fundo você está pensando sobre uma sequência de acordes ou algo relacionado a uma canção. Independente do que estiver acontecendo.”
Richards demonstra mais prazer quando descreve a sensação de tocar seu instrumento, em particular a guitarra elétrica que, diz ele, é “como se agarrar numa enguia-elétrica”. O momento de revelação em Vida é puramente musical e ocorre “no final de 1968 ou início de 1969”, depois que Richards descobre um dos segredos do blues. As seis cordas da guitarra são normalmente afinadas em mi-lá-ré-sol-si-mi. Depois de colaborar com o grande instrumentista e arranjador Ry Cooder, Richards pegou a afinação “em sol aberto”, em que a guitarra é afinada num acorde em sol: ré-sol-ré-sol-si-ré. Bluesmen do Mississipi como Robert Johnson, Son House e Charley Patton usavam essa afinação; Don Everly também, em Bye Bye Love. Richards retirou a corda mais baixa de uma Fender Telecaster afinada em sol-ré-sol-si-ré e produziu os riffs de Tumbling Dice, Brown Sugar, Honky Tonk Women, All Down the Line, Can’t You Hear Me Knocking, entre outros. Qualquer pessoa que tenha tocado numa banda de garagem nos anos 60 e 70 lembra da experiência de tentar tocar essas músicas e descobrir que elas não tinham o ronco, o som ressoante que Keith Richards produz em, digamos, Get Yer Ya-Ya’s Out!, o melhor disco ao vivo dos Stones. Agora, evidentemente, é possível ir ao You Tube, escrever, digamos, Brown Sugar, aula, e aparece um garoto de 14 anos com uma câmera de vídeo e uma guitarra, ensinando a usar a afinação em sol aberto e “tocar como Keith”. O próprio Keith explica melhor: “Se você está tocando o acorde da maneira certa, consegue ouvir um outro acorde soando por trás, que você não está tocando, mas que existe. Isso desafia a lógica. O acorde está lá dizendo: ‘Vem.’”
Keith Richards está com 66 anos. É avô. Fez uma cirurgia de emergência no crânio, embora por um motivo muito Keith Richards: caiu de uma árvore em Fiji. Ele diz que leva uma “vida de cavalheiro”. Gosta bastante das aventuras marítimas de Patrick O’Brian e dos romances de George MacDonald Fraser em que o protagonista tem 90 anos e se chama Flashman. Cabe informar que ele também caiu da escada de sua biblioteca. Antes, tinha um cachorro wolfhound chamado Sífilis, hoje tem um labrador amarelo chamado Abóbora. Ele e sua mulher põem Abóbora num jatinho particular e vão espairecer na propriedade que eles têm nas ilhas Turks e Caicos, no Caribe. Gimme Shelter para valer. Ele vive como um pirata do private equity.
A idade deu a Richards um pouco de compreensão a respeito de suas próprias contradições. Ele vibra com sua vida, mas também está consciente da natureza oca de sua imagem de fora da lei: “Não há como desatar os nós do quanto representei o papel que foi escrito para mim. O anel de caveira, o dente quebrado e o lápis de olho”, escreve. “De certo modo, a persona, a imagem de como eu era antes acaba sendo um grilhão. As pessoas ainda acham que eu sou um junkie. Faz trinta anos que larguei a droga! A imagem é como uma sombra comprida. Mesmo quando o sol se põe, ainda dá para ver. Acho que em parte é porque há tanta pressão para ser daquele jeito que você acaba se transformando, pelo menos até onde dá. É impossível não acabar sendo uma paródia do que você achava que era.”
Um dos momentos mais tocantes do livro é quando os jovens Rolling Stones chegam aos estúdios de gravação da Chess, em Chicago, a Meca do blues. Um operário está pintando o teto. O nome do operário é McKinley Morganfield, mais conhecido como Muddy Waters. Os Stones estavam a caminho de uma vida de milionários e o mínimo que poderiam fazer era render homenagem aos seus heróis. Batizaram a banda com o título de uma música de Morganfield e cantaram louvores a ele e a todos os outros antepassados mais talentosos do que eles.
Richards havia escapado da Indesejada, mas não da dívida mais importante que tinha, a qual nunca deixou de reconhecer com lealdade: “Eu?”, disse Keith certa vez. “Eu só quero ser Muddy Waters. Embora eu jamais vá ser tão bom ou tão preto.”