Estados Unidos perdem a polêmica Susan Sontag

Estados Unidos perdem a polêmica Susan Sontag - 29/12/2004
 
Antonio Gonçalves Filho
O Estado de São Paulo
 
 
VIDA&

sontag
Conhecida por sua inteligência e seu ativismo político, a ensaísta americana tinha 71 anos e há 28 enfrentava o câncer

A biblioteca de 25 mil volumes já é propriedade da Universidade da Califórnia (UCLA) há três anos. Lá estão desde Os Miseráveis, o primeiro clássico que ela leu quando criança, até os 17 livros que escreveu, traduzidos em 32 línguas. Susan Sontag, a mais festejada ensaísta norte-americana, guardou todo esse tesouro por mais de seis décadas. Para a má sorte da América, acossada por uma assustadora onda antiintelectual, ela morreu ontem, aos 71 anos, de leucemia, no Memorial Sloan Kettering Cancer Center de Nova York. Resistiu 28 anos à doença, diagnosticada em 1976 (um câncer no seio e no sistema linfático). O mal venceu, mas, antes, Susan Sontag deixou uma mensagem para a América: não se deve transferir a responsabilidade da doença aos doentes. Doença é fato, não destino.

Essa talvez seja a mais importante contribuição da ensaísta para a compreensão do sentido político que a medicina acaba - involuntariamente - transferindo à doença, como se ela fosse uma punição. Num livro importante sobre o assunto, Aids e suas Metáforas (1988), Susan Sontag trata justamente dessa exploração simbólica que acaba estigmatizando as vítimas, massacradas pelo argumento de que são culpadas pela própria doença. Quantas vezes o leitor já não ouviu que o câncer é uma doença provocada pelo próprio paciente, como se alguém estivesse louco para ser consumido por um sarcoma?

Esse pode ser um bom começo para uma discussão sobre a extensa obra de Susan Sontag, que abriga tanto um antológico ensaio sobre a história da fotografia como uma novela ambiciosa a respeito dos primórdios da colonização americana (Na América, de 1999, baseada na história real de uma atriz polonesa que imigrou para os EUA). Escrevendo sobre assuntos diversos - do teatro de bonecos japonês ao atentado às torres gêmeas - Susan Sontag foi atacada por todos os lados, pela direita e pela esquerda, mantendo até o fim sua independência ideológica. Tanto é verdade que, sendo uma das primeiras intelectuais americanas a visitar Cuba pós-revolucionária, não hesitou mais tarde em protestar contra o regime comunista quando Fidel Castro começou a perseguir homossexuais na ilha, confinando-os em campos de trabalho forçado.

Mesmo assim, autores contrários à militância política da escritora (Paul Hollander, entre eles) acusaram a autora de ser uma "peregrina política" contra o "pluralismo ocidental" - e, por conseqüência, a favor de revoluções estrangeiras. Não é verdade. Leitores interpretam como querem mensagens que, de tão claras, parecem enigmáticas. Em um ensaio publicado no Estado, Susan Sontag condenou a tortura de soldados iraquianos por americanos na prisão de Abu Ghraib, única atitude digna que se espera de um intelectual humanista. No entanto, não é o que pensam seus detratores, que identificaram a denúncia como simpatia por radicais fundamentalistas.

Sobre o terrorismo, ela se pronunciou num polêmico texto escrito para a revista New Yorker logo após os atentados do 11 de setembro, discordando de quem identificou na tragédia um ato de covardia contra a civilização e a liberdade. Desafiando o coro ocidental, disposto a confundir o Islã com terror, Susan Sontag interpretou o ataque às torres gêmeas como uma resposta às alianças americanas que pretendem tornar os EUA uma superpotência sem rivais. A ensaísta foi moralmente linchada pela internet e acusada de antiamericanismo, como nos piores tempos do Macartismo.

"Nós vivemos numa cultura em que a inteligência é defendida como instrumento de repressão e autoridade, quando a única inteligência válida é crítica, dialética, cética e não-simplificadora", resumiu a escritora, que visitou o Brasil pela última vez há dois anos. Filha de uma professora dependente de álcool e criada sem o pai, um comerciante de peles morto de tuberculose na China, Susan Sontag foi uma adolescente intelectual, que, aos 15 anos, comprou o primeiro número da Partisan Review, da qual passou a ser colaboradora nos anos 1960.

Seus ensaios sobre artistas revolucionários como o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard ou o pintor norte-americano Jasper Johns ajudaram a sedimentar o mito de que seus textos são estratosféricos, incompreensíveis. Esse estigma perseguiu Susan Sontag desde o início de carreira, a ponto de seu primeiro personagem de ficção, o Hipólito de O Benfeitor (1963), só encontrar a paz quando decide rejeitar o mundo exterior e viver em silêncio, após ter seus sonhos mal interpretados pelos outros.

Não por outra razão, um dos ensaios mais marcantes de toda a carreira da escritora chama-se justamente Contra a Interpretação (1968), em que ela convida o leitor a uma relação mais orgânica com a obra de arte, evitando o equívoco da interpretação, provocado pela busca insana de um significado no trabalho artístico. Intuição, e não análise, pode ser mais útil para entender uma tela de Picasso do que todos os livros escritos sobre o cubismo. Interpretação, segundo ela, seria a "vingança do intelecto contra a arte". Não se confunda, entretanto, essa postura com antiintectualismo. Susan Sontag queria "transparência". Era honesta o bastante para escrever um livro sobre os horrores da guerra (Regarding the Pain of the Others, do ano passado) sem recorrer a fotos que mostram as atrocidades cometidas pelo espírito bélico dominante no mundo contemporâneo.

Participando da história, a ensaísta passou uma temporada de três anos em Sarajevo. Seu penúltimo livro de ensaios, Questão de Ênfase (2001), sai em março pela Companhia das Letras. É obra de uma mulher de coragem. E, como tal, odiada por isso.

 
 
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