Che, o homem do século
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Che, o homem do século
(Emir Sader*)
O século XX deu pra tudo: todos - pessoas e classes - podem escolher seu personagem do século e, ao faze-lo, estarão revelando desde onde - lugar da sociedade, classe - o estão fazendo.
Foi o século em que a burguesia deixou de ter capacidade de ter heróis. Teve que se contentar com aqueles que, episódica - e até mesmo questionavelmente - apareceram como tais: De Gaulle, Churchill, pra quem gosta de autoritários e conservadores, Hitler, Franco, Salazar, Pinochet, para quem os prefere diretamente ditatoriais ou ainda os líderes da contra-revolução liberal - Reagan, Thatcher.
Para mim, o homem do século foi o Che. Um século em que, pela primeira vez, o capitalismo enfrentou um projeto de sociedade que busca sua negação e superação, a partir de uma sociedade da igualdade, da justiça, da solidariedade, contrapondo o humanismo ao reinado do capital, aquele que espelhou, em sua forma mais cristalina - em sua trajetória e em suas palavras - esse projeto, foi o Che.
Foi ele quem melhor protagonizou o ideal de um socialismo na medida do homem, fundado nos seus valores morais, em oposição ao materialismo capitalista e a concepções que procuraram construir uma nova sociedade na estritamente base dos chamados "estímulos materiais". Foi o Che quem - nas suas próprias palavras - procurou demonstrar suas verdades "com sua própria pele", apontando, pelo exemplo, os caminhos da construção de uma sociedade e de homens com valores novos. Assim ele resgatou a dignidade da ideía de militância política, como atividade voluntária, em que se entrega o melhor de si mesmo em função de um ideal de sociedade igualitária e solidária.
Foi ele quem definiu o revolucionário como alguém "feito de grandes sentimentos de amor", como alguém que de define pelo amor à humanidade, por não apenas se condoer do explorado, mas por compartilhar seu destino, lutando a seu lado contra a exploração.
Um século que surgiu com a esperança do socialismo e que termina com seu aparente desterro tem também na trajetória do Che sua melhor expressão. A passagem do capitalismo à sua etapa imperialista, ainda no final do século XIX, e a resolução das necessidades de expansão de cada uma das potências imperiais ficaram confirmadas dramaticamente pelas duas guerras mundiais e, a partir delas, pela consolidação da hegemonia norte-americana no mundo. O socialismo, como previam as teorias do imperialismo, foi filho das guerras, mas não conseguiu superar os limites da periferia capitalista, em contraste com o poderio econômico imperialista dos países mais ricos. A consolidação da versão stanilista do socialismo marcou uma concepção reducionista do novo modelo de socialismo - sem democracia e centralmente economicista, em detrimento da emancipação política e da superação da alienação.
Ainda assim, o século foi marcado pela presença do socialismo - pela sua emergência, numa primeira versão histórica do fenômeno e pelas reações que provocou, do Estado de bem-estar social ao nazismo -, a ponto que o marxismo - sua mais forte expressão teórica - não deixou de ser a presença mais significativa, como proposta de interpretação histórica e pela busca de concepções alternativas.
Não por acaso, o ingresso da humanidade na época dominada pelas imagens, tem na do Che sua expressão mais difundida no mundo, fenômeno que voltou a surpreender quando, nos 30 anos de sua morte, novas gerações sentiram-se mobilizadas pela sua figura, sem conhecer praticamente sua obra e sua trajetória - pela força da rebeldia associada à revolução que sua imagem concita. Precisamente porque parecia que se consagravam os valores opostos ao que ele representou, é que sua imagem reassumiu consistência, reatualizando a frase de Lenin sobre Rosa Luxemburgo, no momento da morte desta: "Quanto mais escura a noite, mais brilham as estrelas".
O socialismo luta no começo do novo século por readquirir suas dimensões libertárias - marcantes na obra de Marx - e sua viabilidade histórica. O Che contribui para esse projeto pela proposta de articulação entre uma proposta econômica de construção do socialismo com os valores éticos que permitem a superação indissociável de todas as formas de exploração, de dominação, de alienação e de discriminação.
Considerar o Che como o homem do século é resgatar, na sua figura, os pensadores e dirigentes políticos da luta pelos ideais de uma sociedade humanista contrapostos à consagração que a grande mídia - braço propagandístico das forças imperiais - produziu. É dar o destaque que merecem os personagens como Gramsci, Brecht, Trotsky, Lukacs, Lenin, Mariategui, Sartre, Adorno, Rosa Luxemburgo, Benjamin, Ho-Chi-Minh, Marcuse, Mandel, Hobsbawn, Deutscher, entre tantos outros. Sem eles, o século XX teria sido devorado pelas ambições do grande capital e por suas manifestações midiáticas e o socialismo teria sido reduzido a desenvolvimento econômico e estabilidade política
Com o Che, sobrevive o sonho da humanidade de uma sociedade em que o homem seja a medida de todas as coisas. Personagem do século XX, como protagonista dessa luta, nos seus avanços e nos seus reveses, fico com ele como o homem do século XX - como referência para os que cruzam o milênio com os ideais revigorados.
*Emir Sader é sociólogo. Correio Braziliense, 26 dez. / 1999.