CONTRACULTURA AQUILO-QUE-PODERIA-TER-SIDO

Contracultura aquilo-que-poderia-ter-sido
(Rick Goodwin)

Transcrito do inglês e do nefzyxloton por Ricky Goodwin.

Publicado em Rock, A Música do Século XX - Volume I

Guardo nessa caixa alguma coisa que sobrou. Abro, leio os recortes, os papéis amarelados, enfileiro alguns objetos: contas de miçanga, moedas de I Ching, canhotos de ingressos de concertos de rock, uma garrafa onde pretendera um dia fabricar um coquetel molotov.

Papéis: 50 mil pessoas tentam levitar o Pentágono. Artigo do Time sobre hippies. Artigo da Life sobre a Era de Aquarius. Páginas de revista underground. Um poema de Allen Ginsberg. Coisas rabiscadas por malucões de San Francisco. Fotos da multidão em Woodstock, de gente queimando suas convocações para o Exército, de gente queimada no Vietnã, de happenings, Be-ins, Sit-ins, muitas fotos de artistas, Dylan, Hendrix, Beatles, Zappa, Jefferson Airplane, Stones satânicos... Um panfleto revolucionário que Abbie Hoffman me deu numa passeata. Um canto rasgado de um pôster psicodélico.

Sinto mais saudade dos discos. Gosto de abrir essa caixa, mas tinha que ter um som, uma trilha sonora para essas lembranças. Platão tinha razão. A música é a forma maior de arte, pois reflete a harmonia das esferas. Minha geração comprovou isso. Nossa comunicação era a música, o rock, nossa linguagem. Estabelecemos e espalhamos esse gosto, foi uma época em que os jovens assumiam a frente da cultura. Tomaram o Poder Estético. Caiu o ofício de aprendiz. Os mestres e seus conceitos dos livros carcomidos e dos palcos embolorados foram rajados pela luz quente e sensual e instantânea de um criar mais ousado, rompedor.

Interessante essa coisa de dizer ‘jovens’. Foi a primeira vez na História em que a juventude virou um segmento da sociedade. Como antes se dizia ‘os camponeses’. ‘Os operários’. ‘A burguesia’. Onde havia divisões econômicas, geográficas ou raciais, passou a haver também a etária. E a transmissão do conhecimento, desde as cavernas processada de pai para filho, foi questionada e rompida. À aceitação passiva seguiu-se a busca de outros conhecimentos ou formas de conhecer. Em escala mundial. Impressionante.
Estudos, livros, pesquisas, teses, tentaram desvendar como chegamos a isso. É difícil porque não foi um movimento organizado e sim uma geração espontânea. As causas e raízes são conjunturais, profundas, históricas. Tenho algumas preferidas, e que vou tentar lembrar.

A Revolução Tecnológica resultou em transformação aceleradíssimas, muito mais compactas e transtornantes que as da Revolução Industrial. As máquinas estenderam o alcance humano. Andar no espaço projetou sua cabeça. O fluxo rápido de informações obrigou os seres a, lépidos e fagueiros, saltitarem sobre pré-conceitos e palmilhar em novos raciocínios. A relativa pujança na qual viviam os americanos deu uma nova juventude de mais lazer, com mais tempo dedicado ao curtir e ao explorar. A exacerbação reacionária num Império Americano ensandecido por uma guerra mundial e outra fria provocou a reação contrária de uma geração liberalizante. O sistema econômico chegou a um ponto de decadência no qual surgiam suas primeiras grandes brechas, desnudando seus mecanismos de esmagamento, ou mesmo sua inviabilidade. A hipocrisia da Moral ficou pelada. Com a percepção da Mentira, o desencanto.

Releio um texto de Mitchell Goodman: “Vemos a necessidade de fazer uma nova cultura, pois o que temos agora não é cultura e sim um mecanismo para o comércio e a guerra, enfeitado com certos balangandãs como museus e orquestras sinfônicas, energizados pelo dinheiro. Uma cultura é um organismo vivo: um corpo de pensamentos, de formas que sustentam a vida, que a nutrem. Um campo de energia criativa: improvisando, imaginando, inventando. Um olhar para nossas escolas, nossas cidades, nossa tevê, nossa agroindústria quimicalizada, nossa destruição da terra, do ar, da água, nos mostra que não temos tal cultura. Sim, temos nossos ‘conceitos’, nossas ‘leis’, nossos ‘rituais’. Mas são estáticos, estão gastos, aviltados”.

Por essa ânsia de mudança, chamaram o Movimento de Counter Culture. Contra a cultura, mas não só repulsa e antagonismo agressivos a ela: counter nos sentido de conter, contrariar, e correr paralelo. Como dizia Marcuse, a Grande Recusa. Ou o slogan da época: turn on, tune in, drop out. Se ligar, sintonizar, cair fora.

Poucos anos depois já haviam conseguido mudar essas palavras, contando os lances como se aquelas pessoas tivessem estado ‘por fora’. Alienados. O Sistema usou a coisa pelo lado do sexo e das drogas, pegando as trilhas abertas e abrindo picadas em círculos, onde muitos perderam pela rama o rumo. Ficou uma imagem folclórica do Movimento, desbotando o lado político. Esqueceram de quando os hippies viraram yippies e sacudiram o Império. As novas formas de contestação não venceram a guerra, mas dominaram várias batalhas.

Muitos vivenciaram aquilo de passagem. Sonhos de noites de verões. Mas, como um todo, deixaram cicatrizes na carne da História. Basta citar os abalos criados no racionalismo vigente então no intelectualismo. Foi uma época marcada por uma abertura para a Magia. As religiões orientais, no início, supriam este encanto, mas, além do nível mágico-místico, era a magia do desbunde e da glória em face da Criação (o mundo aninhado nas próprias mãos). E por uma abertura para o Lúdico. brincar com cometas.
Ou citar então a adoção das possibilidades de lutar pelo alternativo. Dar a volta. Voltar ao simples. A vida comunitária - enfatizando a natureza e o artesanal - foi o exemplo mais claro disso. Como a imprensa alternativa, a arte alternativa, todos os modos de viver e de pensar alternativos, que, somados, mesmo quando foram integrados - ou se integram - ao estabelecido (o establishment foi o maior vilão da época, depois inventaram o ‘minar’ o sistema por dentro’), deixaram diferenças.

Acho graça ainda ao lembrar da exaltação de Theodore Roszak diante dessas mudanças, ao proclamar que suas implicações seriam tão significativas quanto a ruptura ocorrida quando o Cristianismo substituiu a filosofia greco-romana. Mas, no mínimo, arrancou a Civilização Ocidental das idéias concebidas no século XIX, lançando-a nas concepções do século XX. Houvera tentativas disso nos anos 20, mas décadas de repressão retardaram esses avanços esporádicos. este foi mais súbito e somente os jovens criados dentro da pauleira deste novo mundo souberam transar como o chofre deste arranque.

O mais importante de tudo, de tudo nessa Contracultura, foi a sensação de estar vivendo o novo.

Que era o traço de união de algo que no fundo era a convergência de vários movimentos. Grupos artísticos, seitas subversivas, negros, feministas, gays, resistentes à Guerra do Vietnã, filósofos do flower-power, a Nova Esquerda... várias contraculturas se sobrepondo.

E que não acabaram nas demarcações dos livros de História, no fim dos famosos anos 60. Sumiram por uns tempos, quando as pessoas desacreditaram que o coletivo seria solução. Mas duas fortes características do Movimento perduraram, sendo retomadas com vigor e até maior organicidade nos anos 80, principalmente a partir de 1985. A noção de que você pode fazer tudo. De que o negócio é pegar e fazer. A ação funciona quando descentralizada. Despir a complicação, as teorias, recorrer ao básico, ao primitivo. trabalhar pelas bases. E o pacifismo e a não-violência. Após o extermínio das guerrilhas de luta armada nos anos 70, a contracultura voltou a lutar sob a alcunha do Pacifismo. A ecologia e o antimilitarismo nuclear foram seus cavalos de batalha.

Foi isso que segurou a barra no fim. Deu para alguma coisa ser feita. Mas não deu para conter todo o conteúdo ganancioso e o ímpeto destruidor dos homens. Desta vez, como não foi possível esvaziar o Movimento, que chegava realmente próximo de ser a Consciência da Terra, para não perder seus reinos idiotas os governantes dispararam suas armas de extermínio. A Terceira Guerra foi a última da humanidade. E ainda vieram as Hecatombes Ecológicas, causada pelos estragos acumulados de poluição e radioatividade.

Por isso é que, nos últimos anos, sempre se falava da Contracultura e dos anos 60 como Aquilo-Que-Poderia-Ter-Sido. Até os mais emperrados perceberam a clarividência daquilo que julgavam inocência. Mas era tarde. Naquela época a gente já dizia que o Homem destruiria seu Planeta se não mudasse a rota de colisão. Falava dos perigos das armas nucleares e dos efeitos estufadores de seus dejetos. Cantava ‘faça amor, não guerra’. Mas não quiseram ouvir bem feito.

Vivo há cinco anos neste abrigo em ruínas do Deserto do Amazonas e nem sei se há mais alguém vivo no resto do Mundo. Vou jogar essa caixa fora. Não agüento mais pensar nisso.

Os decifradores de Nefzyxlo por quatro ciclos estelares estudaram esses escritos e não entenderam nada .

 

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