Éramos rebeldes com causa
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Éramos rebeldes com causa
(Sérgio Toledo* )
Filme The Doors, de Oliver Stone, reduz os anos 60 e Jim Morrison à loucura narcísica de uma tribo esquisita.
Não sou especialista em Jim Morrison e não quero discutir sua obra ou sua carreira. Quero falar do filme The Doors, dirigido por Oliver Stone 20 anos depois. A impressão que tenho é que, vistos daqui destes bem comportados e engravatados anos 90, aqueles longínquos anos 60 parecem não só loucos e confusos, mas indecifráveis. Os personagens de então sugerem índios originários de outro mundo, de outra cultura, falando uma língua desconhecida, dançando de acordo com um ritual pagão, escuro, que nada mais teve a ver com os nossos sentimentos, com a nossa imagem de Deus, se é que ainda temos alguma. Ao sair do cinema me perguntei o porquê dessa distância para alguém como eu, que vivi tão apaixonadamente aqueles anos.
Não há dúvida de que Stone, com todo o seu talento, conseguiu recriar o clima vertiginoso e delirante da ascensão e queda de um fanático ídolo do rock, viajante trágico como Hendrix e Janis Joplin. Sem que me desse conta, fui levado pela câmera, pela luz e pelas cores, pelo ritmo frenético, num balé de pessoas, de imagens, de erotismo, de palavras. Durante as duas horas e meia de projeção, experimentei como espectador todos os ácidos, cheirei todas as carreiras, fumei todos os haxixes, recantei Light my fire e, ao final, morri com Morrison. Mas não gostei. Não me comovi.
Apesar do brilho e da originalidade da direção, penso que Stone reduziu o universo do poeta, da pessoa e da época. Ele deixou de lado, ou tocou de forma superficial, aspectos fundamentais, sem os quais tudo parece resultado da busca de uma liberdade individual-limite, contígua à morte, produto, em última instância, da timidez, da dor, do narcisismo de um Morrison progressivamente mais permissivo, drogado e desesperado. Não que esta não seja uma dimensão importante da verdade, mas é parcial.
Não tem a devida força, no filme, o profundo desejo positivo de paz e de igualdade, o sentimento de generosidade e camaradagem que faziam a essência daqueles anos, como uma reação à violência da guerra do Vietnã, das ditaduras latino-americanas, da repressão policial na Europa, da miséria incomensurável do Terceiro Mundo. Os anos 60 foram sangrentos e convulsivos. Todos os grupos sociais oprimidos - operários, intelectuais, negros, mulheres, hippies, homossexuais, estudantes, pacifistas - protestavam e lutavam para fazer valer seus direitos, para mudar o mundo. Eram anos de demolição e transformação de todo os parâmetros orientadores da vida das pessoas. Eram anos de grandes sonhos e de muita ingenuidade. Eram anos de muita insegurança emocional. A ausência deste background, apesar das imagens da guerra na Ásia e da morte de Bob Kennedy e de Martin Luther King (jogadas como efeito de montagem, sem densidade e contextualização), estreita o filme, subtrai sua emoção, torna Morrison o pajé de uma tribo esquisita que nada tem a ver com o espectador.
Sempre me lembro do impacto que me causou a imagem de Joe Cocker cantando ... A little help from my friends no Festival de Woodstock, símbolo e síntese da época. No centro daquela celebração de paz universal fantástica, onde todos cantavam o amor e a fraternidade, estava esse homem com sua incrível voz gutural, contorcendo-se com gestos tencionados como se sofresse de uma artrite deformante. Sugeria um desesperado, padecendo de uma dor insuportável, tentando livrar-se do demônio. Certamente não era um homem feliz celebrando a paz. Como Cocker, assim era Jim Morrison, assim éramos, uns mais, outros menos, todos nós. Tínhamos medo, sofríamos, mas queríamos exorcizar o mal. Desejávamos não só a paz, a fraternidade e a igualdade, mas também um certo sentido de harmonia e transcendência, em meio a todo tipo de conflitos.
A complicar as coisas, é preciso ressaltar que naqueles tempos de cantos libertários algumas coisas eram rigorosamente proibidas e condenadas: o ciúme, o individualismo, o casamento, a privacidade, o amor a pai e mãe, a família. Então nós - os Jim Morrison, os Joe Cocker, os Hendrix, as Joplin de todas as nacionalidades e matizes - não só enfrentávamos o demônio da guerra, da repressão, das transformações de valores, mas condenávamos as mais simples e fundamentais referências emocionais que nos norteiam, nos mantêm de pé. Era muito difícil viver e ser indivíduo equilibrado naquele tempo. Sempre é assim em épocas de profundas transformações. E, visto dessa maneira, o Jim Morrison de Oliver Stone ficaria bem mais compreensível, bem mais rico, bem mais universal. Traduzir-se-ia como expressão maior de um tempo de mutações, dos mais ricos e fascinantes deste século, e não pareceria como o ser pré-histórico e longínquo, drogado e autofágico deste filme bem intencionado, criativo, vertiginoso, mas incompleto.
Não quero soar nostálgico. Não pretendo nenhum tipo de volta ao passado. O lado autofágico do rock apocalíptico daquele tempo se revelou um grande beco sem saída. Mas, em tempos tão conservadores e monótonos como estes miseráveis anos 90, quando drogas, sexo, filosofia e poesia parecem males muito mais terríveis que a fome, a violência, as guerras de genocídio e os altos investimentos em armamentos nucleares, é bom que se diga que nos tempos de Jim Morrison se sofria muito e se tinha muito medo, mas se tinha alma, se tinha os mais variados e diferentes sonhos e Deuses. Hoje, sem eles, nem sequer temos pelo que morrer. Tudo é chato!
Ideias/Ensaios, Jornal do Brasil, 16 de junho de 1991
*Sérgio Toledo é cineasta, autor de Vera.