DROGAS: A HIPOCRISIA É O VERDADEIRO VÍCIO (GERALD THOMAS, 1996)
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A hipocrisia é o verdadeiro vício
(Geralsd Thomas - O Globo - 1º nov. / 1996)
Arte: Cida Calu
Uso de drogas precisa ser encarado de forma realista e sem preconceitos pela sociedade
Alguém: "Tá a fim de um baseado?"
Eu: "Não, obrigado, não fumo maconha." Outro alguém: "Tá a fim de uma fileira?" Eu: "Não obrigado, não cheiro cocaína." Completamente outro alguém: "Pô, cara, ontem foi uma loucura. Dei uma emburacada. Tomei de tudo."
Essas frases me acompanham em todos os países, em todas as línguas, desde os meus 13 anos de idade. Hoje, aos 42, continuo careta, porém tão exposto, ou mais, às drogas de todos os tipos, estilos, e em todas as classes sociais nas quais transito. Estranho sou eu, "o careta". Mas cansei de ouvir de pessoas, as mais diversas, que eu faço as peças que faço, penso o que penso, ajo como ajo porque me drogo. É difícil convencer pessoas que sequer fumo maconha, pois quando eu a experimentei, simplesmente detestei sua sensação e comecei a amar a minha lucidez, cercado por pessoas, sempre, que fazem das drogas um ritual diário.
E com essa lucidez, ou caretice, sempre pude observar esses rituais sem preconceitos, sem julgamentos, já que a droga faz parte da minha geração tanto quanto o sonho de consumo fazia para a geração da década de 50. Portanto, sempre me assustei quando algum amigo era preso, jogado numa cela de delegacia, tratado da mesma forma que um assassino. Sempre me assustei quando, saindo de uma casa onde sentávamos em torno de um toca-discos, descobrindo os novos sons, ou conversávamos sobre trivialidades, todo mundo fumando baseados, cheirando fileiras de cocaína (detesto a palavra pó) e tomando as mais diversas pílulas, cujos nomes nem sei repetir, tinham que adotar uma fachada, agir disfarçadamente assim que chegavam à calçada, pois ali, na rua, esse pacato ritual era e ainda é classificado' como uma coisa "marginal", associado a coisas diabólicas.
Ou, como já ouvi de diversos motoristas de táxi, "tem que matar esse monte de drogado... só matando mesmo". O que sempre me chocou é a hipocrisia do sistema em não lidar com isso de uma forma clínica, legal, reguladora, racional, já que a droga ilegal, seja ela qual for, está em todas as partes ou, como se diz em bom português, nas melhores famílias.
Fora a Holanda e o bairro independente de Christiania, em Copenhague (os residentes fizeram um motim na década de 80 e conseguiram a independência das leis que regem o resto da Dinamarca e a droga é vendida em barracas de feira, livremente), a Inglaterra (onde o viciado em heroína é tratado como um doente que tem direito a uma dose diária de metadona, na farmácia de sua esquina) e Zurique (onde a higiênica sociedade suíça fecha os olhos para a praça do lado da estação central de trens, um verdadeiro mercado de heroína), o resto do mundo trata as drogas de uma forma absolutamente hipócrita, ridícula, irracional, e preconceituosa.
Claro, marginalizando a droga, acabam criando marginais mesmo. Além disso, encorajam uma “indústria” potentíssima, e espalhada em todos os lugares do mundo, onde os traficantes visam ao lucro puro e não há nenhuma forma de controle do produto, de seus ingredientes, não se paga taxas, exceto aquelas que vão diretamente para a Colômbia ou a Jamaica ou a Tailândia
Mas esse artigo não é sobre o meu envolvimento ou não com as drogas. E, sim, sobre a minha contínua perplexidade com sua proibição. Não vou (e nem posso) entrar na psicologia do porquê do uso da droga. Não serei eu, na minha santa inocência, que irei desvendar a popularidade desse, digamos, “prazer induzido artificialmente”. E a proibição se deve a alguns estudos que, evidentemente, classificaram as drogas como perigosas para a saúde, ou por “alterarem o caráter”, modificar radicalmente o comportamento transformando seres em “violentos”, “assassinos” ou seja lá o que for. Confesso que nenhum amigo meu até hoje saiu por aí matando ninguém. Semelhantes estudos deveriam ser feitos também sobre vários produtos alimentícios, que, não fosse um lobby fortíssimo e uma falsa respeitabilidade inventada por marketing e publicidade, seriam (ou deveriam ser) igualmente proibidos.
O público se choca com frequência quando morrer um astro qualquer de overdose. Recentemente, a polícia de Nova York tomou uma resolução estranhíssima, decretando um território de 23 quarteirões (da Houston Street até a Rua 23), onde dariam a maior dura, prendendo traficantes em massa, e coisas assim. Ora, o que fizeram os traficantes? Ficaram acima da Rua 23 ou abaixo, e não adiantou nada. O problema é que essas perseguiçõezinhas não adiantam nada, sequer machucam o joelho desse network estabelecido nas cidades. O problema real é que, depois de três décadas nessa brincadeira de gato e rato, o que existe como fato é a demanda crescente para drogas, num número assustadoramente grande, se todos os usuários admitissem publicamente seu uso. Então, por que lidar tão hipocritamente com isso? Já que é certo que a repressão não funciona (assim como a lei seca também não funcionou), por que os legisladores não lidam com esses produtos de uma forma realista, e tentam com isso tirá-los da sombra, da “coisa proibida”, da “transgressão” (que, por incrível que pareça o clichê, ainda é a razão que atrai muitos jovens), e tratam esse fenomeno como uma coisa normal, que existe, irá sempre existir, driblando sempre a repressão.
As drogas, todas elas, são usadas por toda sorte de gente, desde o motorista do ônibus escolar, a advogados, médicos (em plena cirurgia, acreditem!!!), banqueiros e, ironicamente policiais que supostamente as reprimem, o que, aliás, não é nenhuma novidade.
Na verdade, o problema em si não são as drogas. O problema é uma coisa que todos temos em comum, o vício. Seja lá o que for, o problema do vício é que ele é uma entidade abstrata, que se manifesta através de centenas de modalidades da vida, desde o workaholic, ao consumidor de shopping Center, ao alcoólatra, ao simples fumante. O problema com essa “fachada” que a sociedade criou para se proteger (ou esconder) do vício é que ela, a fachada, cria monstros em tudo aquilo que transgride culturalmente os hábitos adotados, aglomerados através dos tempos, ou seja, a ideia (falsa e moralista) do "bom comportamento".
O problema é que os legisladores representam a mulher ou o homem da classe média, que se viciam - e isso sim é um vício - numa imagem de tudo aquilo que eles deveriam ser, qual comportamento adotar, copiar, seguindo normas decretadas pela sociedade sublinhada por um denominador comum. Ora, senso comum não pode se adap¬tar a um indivíduo, mas o indivíduo se vicia em "querer parecer o outro", em possuir os objetos eletrônicos do outro, em almejar esse senso comum. Ou seja, o problema reside no preconceito, pois essa sempre foi a fachada mais fácil de se tapar as rachaduras do prédio.
Nesses anos todos, careta, eu ouvi apavorado que tal e tal pessoas morreram de overdose. Mas a imprensa prefere generalizar as drogas, como se maconha e heroína pertencessem à mesma família. • Não se diz (ou pelo menos eu nunca vi escrito) que tal sujeito morreu porque a cocaína que ele comprou de um traficante mal-encarado numa esquina qualquer era misturada com pó de mármore, anfetaminas pesadas ou até cimento branco. Mas o preconceito prefere omitir os produtos que são misturados à cocaína, por exemplo, coisa que a legalização resolveria no ato.
Não faço a apologia da droga, somente porque eu pessoalmente não me drogo. Mas sou de uma geração em que todos em minha volta se drogavam e ainda usam drogas ocasionalmente. Eles (e elas) não mudaram, não morreram, não perderam o caráter, não assassinaram ninguém e não se tornaram viciados perambulando pelas ruas sem identidade.
Mas faço a apologia de uma sociedade mais realista, honesta. Uma sociedade sem hipocrisia. Essa sim, é um vício, uma droga.