Pasolini o Cristo Édipo (1981)

Pasolini o Cristo Édipo
(Glauber Rocha*)
(*Cahiers du Cinemá hors série, 1981)

Pasolini foi aquilo a que chamo o produto do milagre do Plano Marshall em Itália. Após a geração da fome - os neo-realistas: Rossellini, De Sica, Visconti, Antônioni, Fellini - o cinema italiano tornou-se uma indústria, o neo-realismo perdeu completamente o sentido revolucionário e criador de novas formas. O momento de Pasolini representa a passagem da fome à gulodice e penso que o escândalo Pasolini era uma “mais-valia”, um luxo para essa Itália que queria ser desenvolvida do ponto de vista industrial e moderno, do ponto de vista ideológico, mas que era na realidade uma Itália desagregada, arcaica, selvagem, bárbara, anárquica. Contudo, a selvageria, a barbárie, a anarquia pasolianiana eram dominadas pela disciplina marxista, pelo misticismo católico, tornando-se então numa barbárie maquilhada. O que me choca no seu cinema á a ausência de poder, nunca é convincente, os seus personagens são fracos, e penso ser por isso que ele não sincroniza os diálogos. Notei que na dobragem dos filmes de Pasolini existia sempre um ligeiro defasamento entre os movimentos dos lábios dos atores e as palavras. Uma vez, num restaurante em Roma, ele disse-me que a língua italiana não existia, e por isso o teatro não existia na literatura italiana, o que o levou a realizar Édipo Rei em dialeto siciliano.

Penso que em Accattone, existe uma certa sensualidade no personagem desempenhado por Franco Citti, mas depois, no seu cinema, tudo é muito frio: são adjetivos que tentam valorizar substantivos estéreis. Pasolini tinha a razão, a inteligência, a cultura que são a conquista de um intelectual civilizado, mas ele dizia: “Sou um civilizado apanhado pela barbárie”. Ele rejeitava a sociedade capitalista, mas aceitava-a no sentido em que se tornou um profissional da indústria editorial e cinematográfica. Ele passou do “estatuto” de cineasta marginal (realizando filmes que não davam dinheiro) a cineasta que fazia filmes abertamente comerciais como a Trilogia. Assim, penso que salvo o filme inicial Accattone, e o último, Salò, todos os outros filmes de Pasolini demonstram toda essa ambigüidade, que é o seu melhor. Ele estava comprometido com a ambigüidade. Porque na verdade, para ele, a homossexualidade não era uma prática sexual normal, mas uma religião, uma ideologia, um mecanismo de fetiche, um misticismo. É o que se vê nos seus filmes, essa dialética entre o Cristo e o Édipo, o Cristo-Édipo, quer dizer os problemas do pai assassinado (assassinado porque traiu como Deus traiu Cristo, o que podemos ver bem em O Evangelho Segundo S. Mateus quando, no momento da morte, Cristo diz: “Pai, porque me abandonaste?”. O que é o momento mais forte do filme, ele é crucificado no falo do pai (inexistente) e a mãe que esconde sempre a condição da mulher (as mulheres estéreis e histéricas, ou as mães possessivas que não cedem o lugar à mulher). Esta fusão Cristo-Édipo leva-o ao desespero, à irrisão, à infelicidade permanente. Então, ele fala sempre de sexo, mas não nos entregamos aos seus filmes. Os personagens são frios teóricos, a violência é programada, o sexo é sempre “dobrado” pelo cérebro (é por isso que os seus filmes são sempre dobrados), e ele vai em direção à tragédia, ao sacrifício, à autopunição edipiana e cristã.

Há uma coisa interessante no cinema de Pasolini: o orientalismo. A Itália é um país de influência árabe e essa impossibilidade de Pasolini ser moderno é compensada, sublimada pela naturalidade dessa orientalidade. É por isso que ele se quer “povo”, mas é somente um desejo, porque, quando realiza, ele torna-se católico. Por exemplo, em As mil e umas noites, Ninetto é como São Francisco de Assis com os Árabes, tornando-se então num filme jesuíta catequista. Pasolini não está interessado nem pela cultura árabe nem pela sua política, ele interessa-se pela sexualidade árabe, mas do ponto de vista de colonizador.

Salò é o filme de Pasolini que eu prefiro, porque penso ser o melhor filme do ponto de vista da forma: está bem enquadrado, bem montado, bem representado, o filme torna-se num corpo convincente, com uma violência existencial, e não com a violência teórica dos outros filmes. Porque em Salò ele diz a verdade ao afirmar “aqui está, sou pervertido, a perversão é o fascismo”. “Gosto dos rituais fascistas, fiz Salò porque é o teatro dessa perversão e o meu personagem, o meu herói ama os torcionários como eu amo o meu assassino”. É a punição, o mito de Édipo cristão. Eu me liberto completamente desse pasolinismo e também desse cristianismo, desse edipismo moralizante, porque, para mim, primeiramente, Édipo não existe mais, e o cristianismo não é uma religião, é uma revolução de amor, de prazer, na verdade, não de sofrimento.

E após o filme ele morreu numa aventura de exploração do sexo proletário. Pasolini intelectual comunista, revolucionário, moralista, era agente da prostituição, quer dizer que ele pagava aos rapazes, os ragazzi di vita, pelo sexo. Ele procurava os pobres, os ignorantes, os analfabetos e tentava seduzi-los como se a perversão fosse uma virtude.

 Pasolini não gostava verdadeiramente das mulheres. Godard gosta das mulheres mas pensa que elas são sempre putas ou musas românticas. Em Godard há o amor, a paixão, não o sexo: em Pasolini há o contato sexual mas não o amor, não a paixão. Há somente a paixão teórica, o que interessa a Pasolini é o irrisório, é a perversão.

Penso que o sadismo, que se tornou num mito da cultura contemporânea, sobretudo para a geração de Pasolini, é o renascimento de espírito fascista nessa geração e é também uma “mais-valia” sofisticada das sociedades que não têm verdadeiramente problemas de sofrimento. Sade na sua época, Sade na Bastilha, é uma coisa, mas o neo-Sadismo como fetiche, como mito é o delírio da fascinação fascizante.

Pasolini, em Salò, aceita a sua verdadeira personalidade. Mesmo se a morte de Pasolini é um atentado fascista, eles aproveitaram a encenação pasoliniana para o matarem segundo os seus próprios ritos.

No meu último filme A idade da terra, falo de Pasolini, digo que desejava fazer um filme sobre o Cristo do Terceiro Mundo no momento da morte de Pasolini. Pensei nisso porque queria fazer a verdadeira versão dum Cristo Terceiro-mundista que não teria nada a ver com o Cristo pasoliniano. Pasolini procurava no Terceiro Mundo um álibi para a sua perversão. Para mim, o conceito de subversão é muito diferente do conceito de perversão, porque a perversão culturalmente constituída pelos intelectuais sadianos não é a minha. Para mim a subversão é inverter verdadeiramente essa perversão por um fluxo amoroso que não exclui a homossexualidade.

O problema não é a homossexualidade ou heterossexualidade, é o problema da fascinação pela herança fascista, os grandes ballets contorcionistas de um homem vindo do campo, de uma civilização arcaica, e que utiliza várias linguagens (a literatura, o cinema) para sublimar, disfarçar e enfim, com Salò, atingir a sua verdadeira personalidade que não era nem Cristo nem Édipo, mas que era qualquer coisa de muito misterioso, o prazer fascista.

Ele assume a tragédia, punido pelas falsas máscaras de Édipo e de Cristo. Os prazeres fascistas conduzem à tragédia porque a punição é o mito do Édipo Cristão. Nisso está o fulcro do mistério, não só de Pasolini mas também do Pasolini que se tornou, por causa disso, um mito contemporâneo.

Declarações em francês transcritas por Alain Bergala – in Pasolini cinéaste – Cahiers du Cinemá (hors série, 1981).
Tradução de Luis Moreira – in Fogo Cerrado, nº2 jun. / 1990.
Organização final de texto: Mário Pacheco

 

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