Cultura, Política e Memória: Discrepâncias e Tensões no Brasil da Pós-Verdade (2025)
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Cultura, Política e Memória: Discrepâncias e Tensões no Brasil da Pós-Verdade
A interseção entre música e política no Brasil nunca foi neutra — mas nos últimos anos, a polarização intensa e o avanço da retórica extremada transformaram esse terreno em campo minado. Três episódios recentes revelam como declarações públicas, posições ideológicas e disputas por narrativas históricas continuam a reverberar no ambiente cultural nacional. São eles: a controvérsia provocada por Lobão ao falar sobre Raul Seixas, o cancelamento de um show da banda Ira! por suposta discordância política, e a sutil crítica do baterista João Barone ao bolsonarismo.
Lobão e a memória de Raul Seixas: provocações e mal-entendidos
Durante uma aparição ao vivo, o cantor e ex-polêmico comentarista Lobão afirmou que Raul Seixas morreu "inalando éter e de fome", uma frase que gerou espanto e revolta entre fãs do Maluco Beleza. A declaração — sem apuração cuidadosa ou contexto — foi recebida como um desrespeito à memória de um dos maiores ícones do rock brasileiro.
Embora Raul realmente tenha vivido momentos de decadência física e isolamento no fim da vida, em parte pelo alcoolismo e complicações causadas pela diabetes, a forma reducionista e sensacionalista com que Lobão descreveu o fim do artista parece mais uma tentativa de autopromoção através da controvérsia — uma tática que não é novidade para ele. Ao fazer isso, Lobão transforma um episódio trágico em um espetáculo de mau gosto, ignorando a complexidade humana e artística de Raul.
IRA! cancelado: o “Sem Anistia” como fronteira ideológica
A banda Ira! teve um show cancelado por parte dos organizadores de um evento após o vocalista Nasi declarar publicamente: "Sem Anistia", uma frase que se popularizou entre críticos do bolsonarismo para defender que crimes cometidos durante o governo Jair Bolsonaro — especialmente durante a pandemia e nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 — não devem ser esquecidos nem perdoados.
Segundo relatos, o cancelamento foi motivado por "incompatibilidade de valores", sugerindo que os contratantes simpatizavam com o ex-presidente ou simplesmente temiam conflitos. A atitude escancarou como o Brasil ainda vive sob as tensões herdadas da ditadura militar e da redemocratização incompleta — onde a cultura é censurada não por uma canetada do Estado, mas pelo boicote econômico e pela patrulha ideológica de contratantes.
João Barone e a crítica silenciosa ao bolsonarismo
Em uma entrevista recente, João Barone, baterista do Paralamas do Sucesso e filho de militar, ofereceu uma das análises mais maduras sobre o Brasil atual — e o fez sem mencionar diretamente o nome de Jair Bolsonaro. Barone falou sobre a importância da responsabilidade coletiva e do respeito às instituições, e mencionou com clareza o perigo de discursos que tentam normalizar o autoritarismo, o negacionismo e a desinformação.
A fala de Barone tem peso não só por sua trajetória musical, mas por seu histórico familiar: ele sempre buscou um olhar crítico sobre o Brasil, mesmo vindo de uma família ligada às Forças Armadas. Sua postura discreta e ponderada contrasta com os extremismos em voga, oferecendo um exemplo raro de reflexão no meio do ruído generalizado.
Conclusão: a arte em tempos de tensão
Esses episódios mostram que a cultura popular brasileira continua sendo um espelho das disputas políticas e morais do país. Se antes o rock nacional era símbolo de transgressão e crítica ao poder, hoje seus ícones se dividem entre o engajamento político e o revisionismo reacionário.
Vivemos um momento em que a memória é campo de batalha, a opinião se transforma em arma e a cultura corre o risco de se tornar refém do medo e da autocensura. No entanto, figuras como Nasi e Barone, mesmo em estilos opostos, indicam que ainda há espaço para resistir — seja gritando nos palcos ou falando com sobriedade nos bastidores.
Epílogo: o silêncio das ossadas
Enquanto o debate sobre memória e justiça histórica segue inflamado na cultura pop e nas redes sociais, o Brasil também colhe frutos concretos de sua persistência por verdade. Em abril de 2025, dois desaparecidos políticos da ditadura militar tiveram seus restos mortais identificados na vala clandestina do Cemitério de Perus, em São Paulo: Dênis Casemiro e Grenaldo de Jesus da Silva.
Dênis, militante da Ala Vermelha e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi preso e morto em 1971, após torturas nas dependências do DOPS/SP. Já Grenaldo, ex-marinheiro, foi executado sumariamente em 1972 durante uma tentativa de sequestro de avião em Congonhas. Ambos foram enterrados como indigentes, com identidades ocultadas pelo regime.
Essas identificações não são apenas avanços científicos e forenses — são também atos de reparação histórica e afirmação da memória coletiva. Dizer “sem anistia” não é apenas um slogan: é um compromisso ético com os que tombaram lutando por um país mais livre. Em tempos de disputa por narrativas, as ossadas falam mais do que muitos discursos.