Diário de Dalí traz delírios do artista

Diário de Dalí traz delírios do artista
(Marcos Maffei*)

Por que ler o diário de alguém como Dali? Se o título parece pouco, duas vezes mais o livro oferece razões. Uma, na orelha. “Chaves para a sua pintura fascinante se encontram aqui, e também muitos exemplos de sua famosa paranóia-crítica (...) ‘Diário de um gênio’ nos permite seguir, passo a passo, os meandros de um processo de criação privilegiado e único”. Outra, no prólogo: “O presente livro provará que a vida cotidiana de um gênio, seu sono, sua digestão, seus êxtases, suas unhas, seus resfriados, seu sangue, sua vida e sua morte são essencialmente diferentes do resto da humanidade”.

A primeira surpreende ligeiramente – afinal, a crítica e a história da arte não costumam ter lá muito em alta conta a obra de Dalí -, mas nem cabe aqui duvidar dela; quem quer que se interesse pelo diário de Dalí algum grau de adesão deve ter a como ele se qualifica no título.

A segunda consegue ser mais curiosa. Pois quem se dispõe a consumir da biografia à mais ínfima das anotações íntimas de um artista, deslocando seu interesse da obra para a pessoa que a produziu, em algum momento ´até mesmo para justificar esse interesse – acaba pilhando com a questão embutida nessa cândida asserção de Dalí complicada (e provavelmente afinal falsa) questão que de novo não cabe discutir aqui; Dalí, como sempre, facilita as coisas. Midas convicto (e um pouco – necessariamente – tautológico) de uma certa arte moderna, tudo que Dalí toca torna-se genial (ou, para ele, Daliniano), de modo que lhe basta declarar “tudo o que vai se seguir (será) genial, de uma maneira ininterrupta e inelutável, apenas pelo fato de se tratar do Diário de seu fiel e humilde servidor”.

É possível supor uma potencialidade crítica nessa estratégia de mistificação e autopromoção, tanto como enxergar intrigantes implicações poéticas nos atos com os quais a sustenta: “É difícil conseguir manter a atenção do mundo sobre si por mais de meia hora. Eu consegui faze-lo durante vinte anos (...) que os jornais publicassem as mais incompreensíveis notícias de nossa época: Paris – Dali atravessa a cidade levando em procissão um bengala de pão de 15 metros de comprimento. A bengala foi colocada no palco do Teatro de l’Étoile, onde ele pronuncia um discurso histórico contra a “cosmicglue” de Heisenberg; Gerona, Espanha – Dali acaba de realizar seu casamento litúrgico secreto com Gala no Convento da Virgem dos Anjos. Ele declara: somos agora seres arcangélicos”, e por aí fora.

Ou ver nisso tudo não mais que a enjoativa banalização do gesto dadaísta (ou qualquer outro entre os assaltos aos valores constituídos com que as vanguardas do início do século se instauraram como ruptura), diluído em inconseqüentes hipérboles (para Dali um corno de rinoceronte ou um único elefante jamais bastam, ele põe logo mil, quem sabe seguindo conhecida musiquinha). Com a calculada extravagância de quem diz “ a única diferença entre um louco e eu é que eu não sou louco”, mais ou menos o que o grande público espera de um artista.

Seu diário é, naturalmente, um prato cheio de relógios moles, ovos no prato sem o prato, maçã de Guilherme Tell, romãs e cisnes explosivos, defecações fenomenais, rendas de Vermeer, costas rechonchudas de Hitler, caracóis da Borgonha, chifres de rinoceronte, o prazer supremo de ser Dali, queijos místicos, touradas litúrgicas etc. articulados em seus pretensos delírios – o famoso método paranóico-cráitico, em que cada associação ou acaso é investido de sentido e consertado com suas recorrentes obsessões numa construção supostamente reveladora.

Pretender disso tudo alguma relevância, e até mesmo se divertir com suas tiradas, passa no entanto por aceitar, de algum modo, o jogo cuja cartada definitiva é o próprio título do livro. Ou seja: quem se diverte com as bufonerias de Dali – nelas vendo profundas intuições ou não – que se regale.

Regalos Dalinianos – Diário de Salvador Dali. Tradução de Luis Marques e Martha Gambini. Paz e Terra. 258 págs. Editado em 1989.
*Folha de São Paulo, sábado, 24 jun./1989

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