O amigo Julio Marques num diálogo entre duas ilhas, texto de Anísio Vieira (2025)
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O vídeo apresenta uma reflexão filosófica, baseada em um texto de Anísio, que traça um paralelo entre as ilhas de Creta e Paquetá [00:12]. A narrativa se desenrola quando o locutor chega em Paquetá, influenciado por leituras mitológicas [01:39].
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Júlio Marques: O locutor encontra Júlio Marques, descrito como um "Epicuro Carioca" [02:33], e se envolve em uma profunda conversa sobre a natureza das duas ilhas. Júlio é retratado como um hedonista, oferecendo insights sobre a comparação entre Creta e Paquetá [03:06].
Creta vs. Paquetá: Creta é representada como uma construção mental elusiva, enquanto Paquetá é a contraparte tangível do mundo real [04:11]. O locutor reflete sobre a natureza transformadora das jornadas, destacando as diferenças experimentadas na chegada em comparação com a partida [05:20].
Reflexões Filosóficas: O diálogo aborda temas de transição, perda e a invenção de lugares em nossas mentes [06:04]. A partida de Júlio é retratada poeticamente, deixando para trás uma sensação de mistério e questões em aberto [07:09].
Pensamentos Finais: O vídeo conclui com uma reflexão sobre a natureza das jornadas e o impacto duradouro das experiências [07:55].
Um Diálogo Entre Ilhas
Desembarquei em Paquetá com a cabeça povoada de deuses – culpa do dicionário de mitologia de Junito Brandão, companheiro da travessia. Livros sobre lendas e balanço de barca lenta são combinação mais instável que os amores de Zeus.
Agarrei a bicicleta ali mesmo, ao sair da barca – porque ideia inacabada é como peixe no convés, precisa debater-se até render-se ou transmutar-se em reflexão. Virei à direita rumo à Praia dos Tamoios, cruzo a Igreja de Bom Jesus do Monte (onde jurei evitar comparações heréticas), a Praça Bom Pastor (com seu time de garças aposentadas disputando peixes com o Haroldo) até o Bar do Zeca’s. E lá, entronizado como Epicuro carioca, estava Júlio Marques: whisky na mão esquerda, cigarro na direita, prato de bolinhos de bacalhau e ar de oráculo à espera de perguntas absurdas.
– Júlio, você é a pessoa perfeita para uma teoria de travessia – anunciei, encostando a bike. Ele nem pestanejou, apenas deslizou o copo extra em minha direção. Tinha encontrado o cúmplice ideal: quem melhor que um edonista sóbrio de sol poente para decifrar se Creta e Paquetá são ilhas-irmãs separadas por três milênios?
Sentei-me e desembarquei a carga das tensões num primeiro gole.
– Às vezes me pergunto: Creta existe além das palavras? Labirintos, Minotauros... tão vívidos nos mitos, tão intangíveis como sombras de poeiras mentais.
Ele girou o whisky, sorriso de quem conhece o peso das perguntas absurdas:
– Creta é um espelho quebrado, meu caro. Ilha fugidia que buscamos na mente enquanto Paquetá nos fura os pés com cacos de vida real.
Caio em mim. Sinto o chão sob os pés comprimi-los pra cima. Observo o gato Sardinha dormindo sobre o caixote de peixes, indiferente à todas as metafísicas do mundo.
– Então Paquetá seria... o que? A ilha que inventamos ao desembarcar?
Júlio apontou para a lua quase cheia sobre a Praia dos Tamoios, brilhando prateada no céu.
– A diferença sangra na travessia. Creta é horizonte que recua, Paquetá é pedra no sapato. Desembarcamos sempre diferentes do que partimos.
Na penumbra do bar, o nonagenário Sr. Zeca guardava copos com as mãos do navegador aposentado. Júlio soprou a brasa do cigarro.
– Cada travessia é parto, poeta. Em Creta perdemos o umbigo, aqui ganhamos calos.
Minha vista escapa para as orquídeas do Sr. Luís, pétalas roxas contra o muro descascado tocado pela luz do arrebol no ocaso:
– E se tudo for travessia? Infância, velhice, dúvidas… indaguei.
Ele ergueu o copo, refletindo o crepúsculo.
– Celebremos as ilhas que cruzamos e as que inventamos! Umas são mitos que nos devoram, outras ossos que roemos. O resto é tempestade e bituca de cigarro se afundando nas cinzas…
Despeço-me pedalando rumo à praia José Bonifácio, levando na garupa dúvidas mais pesadas. O sol sangrava laranja no horizonte quando a primeira estrela piscou – farol minúsculo para futuras travessias.
Júlio partiu na maré da noite, sem alarde, como quem desamarra barco prestes a virar lenda. Paquetá sentiu o balanço – aquele instante em que o chão cede entre o "antes" e o "depois".
Deixou-nos mapas de ilhas, garrafas com mensagens em código de fumaça e o vício de decifrar gaivotas. Dizia que morrer seria sua última travessia sem bússola, levando apenas o essencial: cheiro de maresia nas costuras das roupas, verso engasgado na garganta.
Na varanda do Zeca’s, enquanto as estrelas mordiam o céu lá fora, alguns juraram ter visto seu barco: velas de papel, casco feito de lombadas de livros. Leva na bagagem o que aqui ficou leve: perguntas sem dono, crepúsculos e a certeza de que toda onda que não volta desenha praias em outras margens.
Anísio Vieira –
(Paquetá, Março de 2025, entre marés)