A VIDA ENTRE DOIS PICOS (2021)

ROBOT

A Vida Entre Dois Picos

 

por Rei Lagarto

Maio de 2020

Descubro que quatro pacientes que havia examinado na véspera morreram subitamente à noite. Eles estavam se recuperando razoavelmente bem, e se suspeita que a causa do óbito tenha sido embolia pulmonar, uma complicação comum da infecção pelo novo coronavírus. Eu havia prometido aos familiares de um deles que tudo ficaria bem.

Discuto com um amigo engenheiro sobre a eficácia do tratamento precoce com a hidroxicloroquina. Afirmo que é um medicamento conhecido há mais de 50 anos, que já teve fracasso contra 15 outros vírus, que os benefícios observados em placas de culturas de células de rins de macacos não se reproduzem em organismos vivos e que seus efeitos colaterais são potencialmente danosos, principalmente pelo fato de causar arritmias. Pondero que as pesquisas mais otimistas são falhas na metodologia e falo que o hospital em que trabalho fez um estudo semelhante, o qual foi interrompido devido à ausência de eficácia. Tenho a sensação de que ele não me ouviu. Nos dias seguintes, vejo-o defendendo o remédio nas redes sociais.

Começo a ler as MÁXIMAS DE EPITETO, em busca de um alívio para as minhas aflições. Passo a repetir um trecho do livro para mim mesmo várias vezes ao dia, como se fosse um mantra: “Doente e ainda assim feliz, em perigo e ainda assim feliz, morrendo e ainda assim feliz, no exílio e ainda assim feliz, na desgraça e feliz”.

Meu pai exalta, numa conversa, a qualidade dos gestores norte-americanos, que estão mobilizando um navio-hospital militar com “respiradores de ponta e técnicos competentíssimos” para atender a população. Ele deixa subentendido que, se tivéssemos o mesmo patriotismo, organização civil e sistema de saúde deles, não amargaríamos nossas quase duas mil mortes até então.

Faço um curso de ultrassonografia torácica, pois o hospital não dispõe de radiografias para todo mundo. Ao receber o certificado de conclusão, me sinto pertencente à fina nata da medicina.

Minha cunhada diz, num almoço de família, que eu não deveria me sentar com os outros. Menciona um hotel que dá desconto para médicos que estão trabalhando durante a pandemia. Afirma que ofereço risco às pessoas que amo.

Fico triste com os enterros coletivos em Manaus.

Tenho uma crise de ansiedade com a enxurrada de notícias do telejornal. O governador de Nova Iorque aparece na tela, olhos marejados, fazendo um discurso aos soldados: “Serão tempos difíceis, mas sairemos maiores de tudo isso”.

Faz três semanas que o coordenador do plantão não comparece ao trabalho, sem justificativa aparente. Esse comportamento tem se repetido em diversos departamentos, e médicos renomados estão ficando em casa sem sofrer qualquer reprimenda da direção. As más línguas dizem, nos corredores, que eles são competentes demais para atender na pandemia.

Ao voltar para casa, vejo um sem-número de pessoas andando na rua sem máscara. Para me confortar, penso que, pelo menos, os bares estão vazios.

Lembro a história de Jor-El, o pai do Superman. Ele tentava alertar Krypton sobre o colapso iminente do seu grande Sol Vermelho, mas os cidadãos não o ouviram até ser tarde demais.

Coloco um disco do Bowie para tocar e ele pergunta se há vida em Marte.

Fevereiro de 2021

O número de casos graves é extremamente alto, mas não se verifica mais tantos óbitos por embolia pulmonar. Atribui-se a isso a uma bela sacada dos hematologistas, que recomendaram há vários meses que fosse iniciada anticoagulação segundo o peso e um marcador sanguíneo dos doentes, quando seu estado de saúde começa a deteriorar. Juntamente com o uso de dexametasona em circunstâncias específicas, tem salvado vidas.

Meu amigo engenheiro já não menciona mais a hidroxicloroquina. Atualmente só publica nas redes sociais notícias sobre inovações tecnológicas e comentários sarcásticos sobre os absurdos do dia. Mesmo assim, poupa o governo federal por estocá-la em quantidades suficientes para os próximos 38 anos.

Um colega de trabalho sob severo estresse me pergunta como faço para voltar a ficar centrado no final do dia. Respondo sem hesitação: “Abra duas garrafas de vinho e assista um show no YouTube; esqueça as MÁXIMAS DE EPITETO”.

Ninguém mais fala do navio-hospital militar, que deixou Nova-Iorque após atender 12 pessoas e sofrer uma contaminação cruzada nos seus leitos. As mortes diárias nos Estados Unidos são superiores a um atentado de 11 de setembro por dia. Em meio a um total de quase meio milhão de norte-americanos que se foram, o presidente republicano responde a um processo de impeachment por incitar um ataque violento contra o Congresso. Analistas discutem se houve ou não tentativa de golpe. Meu pai diz que não houve.

Me dou conta de que, desde a conclusão do curso de ultrassonografia torácica, não precisei fazer um único exame num paciente: o diretor descobriu que é mais barato e prático dispor de um número maior de radiografias.

A sorologia sanguínea da minha cunhada confirma nossas suspeitas de que ela teve infecção recente pelo coronavírus. Tenho feito os mesmos exames regularmente, e eles mostram que ainda não me contaminei.

Fico triste com a falta de oxigênio em Manaus.

Já não assisto mais a telejornais, prefiro ler o bom e velho jornal impresso. Descobri a diferença que a gargalhada na leitura de uma tirinha de quadrinhos faz entre um acontecimento e outro. Também redescobri o prazer dos livros. E tenho certeza que sairemos dessa crise do mesmo tamanho que entramos.

Muitos médicos que trabalham na linha de frente reclamam que ainda não foram imunizados. Falta vacina porque os mesmos profissionais renomados que não trabalham desde o início da pandemia furaram fila. O coordenador do plantão foi um deles.

Ao voltar para casa, vejo um sem-número de pessoas andando na rua sem máscara e rodas de samba cheias de alegria nos bares. Para me confortar, penso que, quando tudo isso passar, minha desforra será mais intensa, e o meu blues, mais verdadeiro.

Lembro de GRANDES ASTROS – SUPERMAN e as palavras que Jor-El guardou para o filho nos momentos em que estivesse desiludido com a humanidade: “Eles correrão, cambalearão, cairão e rastejarão.... e amaldiçoarão.... e, no fim,... haverão de se unir a você no Sol, Kal-El. Eles tropeçarão, eles cairão, mas, no tempo certo, se juntarão a você no Sol. No tempo certo, você os ajudará a realizar maravilhas”.

Coloco um disco do Gil para tocar e olho para o brilho de Vênus e suas nuvens de fosfina. Quero ouvir aquele trecho em que ele canta “Quem sabe / O Super-Homem venha nos restituir a glória / Mudando como um deus o curso da história / Por causa da mulher”.

 quando escrever com vísceras se torna um ato mais do que político, humano 

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