Sopa Filosófica na Casa do Zé dos Bichos (2025)
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Sopa Filosófica na Casa do Zé dos Bichos
(por Anísio, discípulo de Brás Cubas e da lua minguante)
Na Lapa, onde o asfalto suga versos velhos, a casa do Zé dos Bichos respirava fumaça de café, enigma e brotoejas.
Eu, Anísio, entre bergamotas e tratados de Schopenhauer, via a vida como um capítulo interrompido de Machado — sem heranças, só perguntas sem herdeiros.
Edu, líder da banda Ursa Maior, o budista do violão, ferve a panela de ferro: “Sopa é sinfonia”, diz, picando cebola como quem desfia mantras.
Seus acordes ecoam o Dharma:
“Nirvana é um prato quente em noite fria”.
Na mesa, Nietzsche divide o pão com William Blake — ambos concordam: só o fogo do fogão é eterno.
Brasil Barreto, poeta marginal da geração bit carioca vindo de Pernambuco, cuspia sonetos entre garrafas de cachaça e uivos desbotados: “Não há sociedade, só becos sem wi-fi!”
Seus versos, farrapos de Ginsberg tropical, grudam nas paredes mofadas como protesto.
Marquinho, das peças brechtianas, vindo da Ilha do Governador, encenava “A Ópera dos Três Reais” no terraço: “Ó proletários do cortiço, desconfiai dos atos de terceiros!”
Seu teatro era um espelho sujo — onde nos refletimos fielmente: atores sem script, plateia sem aplausos.
“O capital é um palhaço sem graça”, anuncia, enquanto Agatha Christie, a gata preta, observa com olhos de Heráclito: “Nunca pisamos no mesmo lixo duas vezes”.
Vera, professora de aritmética e amores não resolvidos, calcula o ângulo do olhar de Edu: “Paixão é equação de quinto grau”, sussurra, enquanto corrige ditados com mão trêmula. Seu caderno vermelho guarda teoremas: “A hipotenusa do desejo é sempre mais longa que o afeto”.
Marisa, das panelas e das horas roubadas, mistura Epicuro no caldo: “Felicidade cabe numa tigela de sopa”.
Sua colher de pau governa o caos — enquanto o mundo desaba, ela refoga cebolas e ensina: “Até Arthur Rimbaud sorri com o cheiro de alho”.
E no centro, Agatha Christie, a gata preta de olhos âmbar, que recolhi na Praça da República numa quarta-feira de Cinzas, observava como um sussurro de Heráclito mapeia de outro jeito: “Ninguém entra duas vezes no mesmo cortiço”. Ela sabia que a fome era um mistério melhor que seus pensamentos mudos.
Naquela noite de segunda-feira, quando o samba descia o morro de Santa Teresa, nossas vozes se fundiam: Edu citava Blake e Rimbaud entre um acorde e outro; Brasil Barreto roubava de Ginsberg versos para vender no sinal; Marquinho denunciava o capital entre atos da peça que recitava; Vera escrevia cartas de amor que ninguém lia; Marisa temperava o caos com orégano.
E eu, Anísio, pensava: a harmonia é um acidente de percurso — como quando Lucrécio e um pagodeiro encontram-se no mesmo verso e embrulham o universo no mesmo ritmo.
No fim, Agatha Christie sumiu entre telhas, levando consigo nosso único enigma resolvido.
Ficamos nós, os incompletos, sabendo que a filosofia cabe num grão de sal como aquela vez — desde que a sopa não esfrie e a utopia seja recheada todo dia, como pão velho que teima em virar torrada.
(P.S.: Zé dos Bichos, o dono da cabeça de porco, nunca apareceu, e ninguém jamais o viu. Dizem que é um traficante de animais disfarçado de gata preta de olhos âmbar. Mesmo assim, ninguém jamais confirmou.)