A arte não redime os criadores — redime, talvez, os leitores (2025)
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A arte não redime os criadores — redime, talvez, os leitores
Por mais que a literatura seja um exercício de liberdade, imaginação e transcendência, ela nasce de contextos concretos. Escritores são criaturas do seu tempo — com seus preconceitos, silêncios e cumplicidades. E é justamente por isso que não podemos tratar sua genialidade como um salvo-conduto ético. A arte pode ser sublime, mas não inocenta seu criador. Quem pode ser redimido — se alguém — é o leitor, aquele que, ao mergulhar nas obras, se dispõe ao pensamento crítico, ao desconforto e à transformação.
A lista de grandes autores que sucumbiram a ideologias opressoras é longa. Fernando Pessoa, celebradíssimo pelos heterônimos e pela profundidade psicológica de sua poesia, expressou simpatia pelo salazarismo. Jorge Luis Borges, mestre da ficção filosófica e dos labirintos metafísicos, elogiou figuras como Pinochet e Videla, mesmo diante das provas de repressão e violência em seus regimes. Mario Vargas Llosa, por sua vez, que nos deu obras complexas sobre a América Latina, defende com fervor políticas neoliberais e alinhamentos que desconsideram a história colonial e o sofrimento social que ele próprio narrou com tanto brilho.
A questão que emerge, então, é: até que ponto podemos ou devemos separar a obra do autor? A resposta não é simples. Há quem defenda que a obra fala por si, que seu valor artístico deve ser julgado à parte da biografia de quem a escreveu. Mas há também quem veja, com razão, a responsabilidade ética inseparável da criação — afinal, toda arte comunica, forma imaginários, reforça ou questiona estruturas.
Não se trata de um moralismo redutor, mas de recusar a ideia de que a arte deva ser uma espécie de refúgio asséptico, acima do bem e do mal. Quando um autor endossa regimes violentos ou repete estruturas de opressão em sua obra, não é possível descolar completamente esse gesto da leitura. É preciso tensionar, reler, duvidar — inclusive do que nos emociona.
A literatura, nesse sentido, pode ser menos um monumento e mais um campo de disputa. Um bom leitor é aquele que não apenas se encanta, mas que se incomoda. Que reconhece as contradições e as enfrenta. Que lê Borges sabendo que há beleza e abismo. Que lê Vargas Llosa entendendo que o romancista supera o panfletário, mas não o isenta. Que ama Pessoa sem mitificá-lo.
A arte não redime os criadores — talvez nem deva. Mas pode redimir os leitores, na medida em que nos convida à crítica, à ação, ao pensamento mais livre. Que possamos ler com olhos abertos, e não com os olhos fechados da idolatria.
Autores e obras que dialogam com essa visão crítica da arte e dos criadores:
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Edward Said – Representações do Intelectual, Cultura e Imperialismo
(Critica o papel dos intelectuais que servem ao poder e defende uma arte comprometida com a verdade) -
Antonio Candido – O Direito à Literatura
(Defende que a literatura é um direito humano, mas nunca neutra — e sim uma prática social e histórica) -
Susan Sontag – Contra a Interpretação, Diante da Dor dos Outros
(Aponta os perigos da estetização da crueldade e a necessidade de uma ética da recepção da arte) -
Theodor Adorno – Notas de Literatura, Dialética do Esclarecimento (com Horkheimer)
(Debate os limites da arte diante da barbárie e critica a indústria cultural e o esvaziamento da crítica) -
Silviano Santiago – Uma Literatura nos Trópicos
(Reflete sobre a literatura brasileira e suas contradições coloniais e culturais) -
Maria Rita Kehl – Deslocamentos do Feminino
(Trabalha a crítica da representação e das relações de poder nos discursos literários e midiáticos)