NEAL CASSADY: 'O PRIMEIRO TERÇO', VEÍCULO PELO QUAL A BEAT ATINGIU O SEU IDEAL (2014)

 terco   O Primeiro Terço

   ''Neal Cassady era o veículo pelo qual a geração beat conseguiu atingir o seu ideal''
 
   por Gustavo Bastos

   9 jun. / 2014 - Neal Cassady é um dos representantes mais fortes do ideal de vida da geração beat, o herói famélico que inspirou Kerouac em On The Road. O livro O Primeiro Terço é a narrativa do primeiro terço de vida de Neal Cassady: as agruras de menino solto no mundo, criado entre os vagabundos e bêbados do árido Oeste americano, às voltas com pequenos furtos e a vida delinquente de liberdade excessiva. 
   Os outros dois terços de vida de Neal, por sua vez, o próprio não teve tempo de redigir. Neal Cassady morreu de overdose, à beira dos trilhos de uma ferrovia no México. E o livro O Primeiro Terço foi um manuscrito que esteve perdido por muitos anos, e foi encontrado em gavetas esquecidas, em 1969, e publicado pela editora do poeta Lawrence Ferlinghetti, a City Lights, em 1971.
   O Primeiro Terço remonta ao mito do Oeste selvagem. O relato autobiográfico de Neal, neste livro, é um testemunho das bocas-do-lixo, dos bairros dos vagabundos, das barbearias e ruas marginais de Denver. O Primeiro Terço é o tempo de uma América dos anos 30, que representa a experiência solitária do Oeste na existência errante de Neal Cassady.
Neal pode ser o exemplar mais genuíno de herói popular, fazendo parte da última geração romântica da literatura norte-americana, a geração beat. Neste ponto, o tempo histórico do livro autobiográfico de Neal se dá antes da consagração da geração beat nos anos 50 do século passado. Pois, neste livro, estamos na infância de Neal, que se passa nos anos 30. Este é o mundo de antes da Segunda Guerra Mundial, pois só depois, como dito, se consumaria o estabelecimento da geração beat, após a tragédia nazista, no mundo já da guerra fria, com os expoentes Ginsberg, Kerouac e Burroughs, todos tomando de assalto a cultura norte-americana dos anos 50, com o engajado poeta-editor Lawrence Ferlinghetti tomando a frente dos negócios desta geração fundamental.
Neal é o nômade fora-da-lei que é representado no personagem Dean Moriarty no livro On The Road de Jack Kerouac. Por seu turno, O Primeiro Terço é uma saga americana tão forte quanto foi a de Faulkner ou de Thomas Wolf. Neal tem uma prosa primitiva, rude. Na incontinência verbal de Neal, que falava como escrevia, ele não era, portanto, como o escritor clássico, de gabinete, ou o escritor profissional que tem dever de ofício com sua produção, ele era um homem de vivências, herói romântico idealizado por Kerouac, e o mais desbundado exemplo da geração beat. Neal era a espécie de malandro norte-americano do século vinte.
No livro O Primeiro Terço tem um prólogo antes do texto principal, que é uma recapitulação genealógica, a qual remonta às origens da família de Neal, até chegar a seu pai, também de nome Neal. O pai de Neal era um subjugado alcóolatra, vivendo errante e de maneira precária, sobretudo no aspecto financeiro, criando o filho numa liberdade monumental que talhou o caráter de Neal filho como outro ente humano da boca-do-lixo, o menino que se tornaria o jovem furtador de carros e comedor de bocetas como Luanne e Agnes. (Luanne que aparece como Marylou em On The Road).
Neal e seu pai eram habitantes da parte baixa do centro de Denver. Neal era uma réplica infantil, menino pequeno ainda, no meio da malta de bêbados do submundo, todos sem vintém, anódinos seres que olhavam com compaixão aquele filho desnaturado destas dezenas de homens derrotados. Neal até diz em seu livro: "Eles eram bêbados cujas mentes, enfraquecidas pelo álcool e por uma maneira subserviente de viver, pareciam continuamente ocupadas em emitir curtas declarações de óbvia inutilidade."
Em 1932, a situação familiar de Neal muda com a separação de seus pais, Neal acompanhou o pai na sua retirada para a rua Larimer. Neal estava agora livre de seu irmão valentão Jimmy, e de seus meio-irmãos mais velhos que já não poderiam mais bater em seu pai.
Em O Primeiro Terço entram imagens do restaurante Manhattan. A rua Larimer que era destaque em Denver no século dezenove, virou um palco de decadência e vulgaridade na época descrita pelo livro de Neal. O menino Neal, geralmente, conseguia pequenos privilégios entre os adultos, na fila para pegar comida era sempre favorecido, sua vida se configurava no meio destes ambientes alcoólicos, e seu pai, mesmo que tentando poupar o filho de cenas grotescas, era um homem entregue à bebida, tinha a decadência como estilo de vida, como se diria na doutrina norte-americana da prosperidade, o pai de Neal era um perdedor. E o menino cresce neste lugar de pouco conforto, com a sua vantagem que era a liberdade, e isto ele teve mais quando estava com o pai do que quando estava com a mãe. Ele frequentava uma escola, e o resto do tempo flanava pelos becos e alguns lugares de Denver na parte decadente e pobre da cidade. Neal já tinha, desde menino, a possibilidade de uma vida aventurosa, e este foi seu destino, até morrer no México.
O Primeiro Terço é a imagem fiel da boêmia e das histórias que se passavam entre o setor pobre de Denver nos anos 30. Neal é a testemunha de um mundo fidedigno da boca-do-lixo, seu habitat se tornou estas vielas e direções que só a vida solta e sem regras pode proporcionar. Neal cresce e se torna homem firmando seu caráter na malandragem de tempos ingênuos, década de 30 do século passado, um ensaio para o que viria depois na explosão da geração beat nos anos 50, em que ele sairia do nada, de um lugar ignoto pelos mais abastados, e se tornaria herói literário pela mãos fanáticas de Jack Kerouac.
O desbunde da geração de 50 seria então a antessala do mundo de expansão da consciência pelas drogas nos anos 60 com os hippies. Neal vê tudo isso, seu lugar como o menino de O Primeiro Terço é apenas um microcosmo do que seria sua vida mais tarde. Neal tinha a liberdade ideal para aprender na vivência mais do que na literatura de gabinete. Sua experiência literária era curta, destacando-se o imbróglio com um livro de Dumas, O Conde de Monte Cristo, que ele perde e depois recupera. No mais, ele era o reflexo perfeito do que se configuraria anos mais tarde na geração beat: uma literatura de vivência, seja na autobiografia concreta de Neal Cassady em O Primeiro Terço, seja na autobiografia literária e romantizada de Jack Kerouac em On The Road.
A literatura de vivência beat era um estilo de vida, e Neal representava o clímax deste estilo e ideal. Kerouac jaz justiça a seu herói. Dean Moriarty aparece em On The Road como a consagração definitiva de Neal Cassady, a literatura se une à vida, e o brinde mais forte feito por esta geração está no exemplo vivo da biografia acidentada de Neal Cassady.
Em O Primeiro Terço já se vê um pequeno beat. O menino Neal já é o que será o homem Neal Cassady e o que se torna o herói Dean Moriarty. Neal estava vendo o mundo de Denver, e ali já havia todas as nuances do estilo de vida beat, de toda a explosão desta literatura de vida, de vivência, estilo de vida e destino literário de liberdade e desbunde. Neal se torna um ente poderoso, e seu registro do primeiro terço, embora insuficiente, solto em fala rude, num modo de escrita fragmentado e cheio de volteios de situações que criam uma engrenagem confusa, faz de Neal, e neste relato autobiográfico, o protótipo da evolução da espécie beat, que se torna o ideal com a criação, por Jack Kerouac, de Dean Moriarty e a trama alucinante de On The Road.
A fala de um mundo decadente de Denver, por Neal, define o ensaio geral do que foi Neal como Dean Moriarty. Neal, desde criança, vivia como sempre viveria. O nômade que ele é, também é o ideal beat. O pé na estrada é o destino destas crianças bêbadas de literatura e liberdade. 
De fato, é a última geração literária a ter uma visão idealizada e romantizada da vida. E esta visão de vida não era ingênua, pois o estilo radical da vida de Neal Cassady, o mais veloz dos beats no sentido de vivências, era destino e sentido de vida beat. Não havia inocência nem em Neal e nem nos outros escritores como Jack Kerouac. O estilo de vida beat era uma escolha de ruptura, e isto é mais uma coragem e desafio do que o desbunde por si mesmo. A literatura era o projeto. Então, se tinha um plano nisso, não era só a fruição do instante, era a vivência biográfica fundante do estilo de vida de liberdade e de propagação destes valores, com o documento literário como prova de um escolha consciente, e não de um capricho apenas. O estilo de vida beat era uma opção filosófica, e que tem na literatura a seriedade necessária do que se tratava.
Neal pode ter sido o menos sério e o mais louco e indisciplinado desta geração beat, pois não era um escritor de todo, mas Neal Cassady era o veículo pelo qual a geração beat conseguiu atingir o seu ideal, e isso já é o suficiente para colocar Neal Cassady do mesmo tamanho de Burroughs, Kerouac ou Ginsberg. Uma vivência como a de Neal Cassady, e que vira lenda com Dean Moriarty, já é mais do que simples literatura, é o sumo do qual se fez a literatura beat.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

 

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