Cazuza termina temporada no Rio cuspindo na bandeira brasileira (1988)
- Details
- Hits: 111
A carta de Cazuza explicando por que cuspiu na bandeira do Brasil durante show
Texto foi publicado na íntegra pelo GLOBO depois da morte do cantor, há 35 anos
07/07/2025
Cazuza estava no palco do Canecão, no Rio, apresentando o show da aclamada turnê "Ideologia", no dia 18 de outubro de 1988. Todo de branco e com uma bandana na cabeça, bem a seu estilo, o astro carioca cantava "Brasil", tema da novela "Vale Tudo", em exibição na época, quando alguém jogou uma bandeira do país aos pés dele. O artista, então, pegou o símbolo nacional, esticou diante do seu rosto e deu duas cusparadas certeiras, à queima-roupa. A atitude deu o que falar.
"Brasil" estava fazendo o maior sucesso. Não apenas por causa da novela da Globo, um colosso de audiência. Em meio à inflação galopante e ao alto desemprego, depois de décadas de censura e falta de transparência na ditadura, a população estava ávida por mudanças. A aprovação da Constituição Federal foi um avanço, mas o povo queria muito mais e não precisava mais ficar calado. O refrão "Brasil, mostra a tua cara/ Quero ver quem paga pra gente ficar assim" caiu como uma luva.
A morte do poeta da MPB, que faleceu devido a complicações geradas pela aids, completa 35 anos nesta segunda-feira. Para celebrar o cantor, haverá uma programação especial na exposição "Cazuza Exagerado", em cartaz no Shopping Leblon. A bandeira que foi alvo do protesto é uma das atrações da mostra. A cena da cusparada no Canecão também é exibida e debatida no documentário "Cazuza: Boas Novas", de Nilo Romero e Roberto Moret, que estreia este mês nos cinemas.
Mas, em 1988, o gesto do compositor de "O tempo não para" gerou muitas críticas. Tanto que o cantor escreveu uma carta se justificando. Ele queria divulgar o texto logo, mas foi dissuadido pelo pai, o produtor musical João Araújo, que o convenceu de que aquilo traria mais confusão. Após a morte de Cazuza, porém, o próprio João, fundador da gravadora Som Livre, decidiu divulgar a carta como uma homenagem ao filho. No dia 17 de julho de 1990, O GLOBO publicou o texto. Leia abaixo:
"Está havendo uma polêmica, um "escândalo", como dizia o Jornal do Brasil de terça-feira, 18 de outubro, com o fato de eu ter cuspido na bandeira brasileira durante a música 'Brasil' no meu show de domingo no Canecão. Eu realmente cuspi na bandeira, e duas vezes. Não me arrependo. Sabia muito bem o que estava fazendo, depois que um ufanista me jogou a bandeira da plateia.
O Sr. Humberto Saad declarou que eu não entendo o que é a bandeira brasileira, que ela não simboliza o poder, mas a nossa história. Tudo bem, eu cuspo nessa história triste e patética.
Os jovens americanos queimavam sua bandeira em protesto contra a guerra do Vietnam, queimavam a bandeira de um país onde todos têm as mesmas oportunidades, onde não há impunidade e um presidente é deposto pelo 'simpies' fato de ter escondido alguma coisa do povo.
Será que as pessoas não têm consciência de que o Vietnam é logo ali, na Amazônia, que as crianças índias são bombardeadas e assassinadas com os mesmos olhinhos puxados? Que a África do Sul é aqui, nesse 'Apartheid' disfarçado em democracia, onde mais de cinquenta milhões de pessoas vivem à margem da 'Ordem e Progresso', analfabetos e famintos?
Eu sei muito bem o que é a bandeira do Brasil, me enrolei nela no Rock'n Rio junto com uma multidão que acreditava que esse país pudesse realmente mudar. A bandeira de um pais é o símbolo da nacionalidade para um povo. Vamos amá-la e respeitá-la no dia em que o que está escrito nela for uma realidade. Por enquanto estamos esperando".
Cazuza termina temporada no Rio cuspindo na bandeira brasileira
Do Sucursal do Rio
Durante a última apresentação do show "Ideologia", no último domingo, no Canecão, em Botafogo (zona sul do Rio), o cantor Cazuza cuspiu em uma bandeira brasileira que lhe foi jogada, quando ele cantava a canção "Brasil", de sua autoria, que está incluída na trilha sonora da novela das 20h da Rede Globo, "Vale Tudo".
A jornalista Scarlet Moon, mulher do cantor e compositor Lulu Santos, que estava presente no show, disse ontem que achou "engraçada" a atitude de Cazuza e que "foi uma maneira de não cair na pieguice". "As pessoas estavam jogando rosas brancas para o palco e ele as comia. Quando jogaram uma bandeira, ele cuspiu nela, achei que assim ele evitou de ser o Araquem", afirmou.
Moon disse ainda que nunca foi permitido que os símbolos nacionais fossem reproduzidos para ilustrar capas de discos ou impressos em blusas ou malhas e que, na situação política atual, "a crítica e o escracho" têm que ser aceitos.
O cantor e compositor Léo Jaime, que também estava presente quando Cazuza cuspiu na bandeira brasileira, disse que achou normal. "Todos os brasileiros, nesse momento de crise que estamos passando, fariam isto", afirmou.
Léo Jaime disse ainda que esta atitude é natural, vinda de Cazuza, porque o cantor "é muito cênico e iconoclasta". "Nós brasileiros não temos uma data cívica que seja uma conquista popular, e todos os símbolos da cidadania nos foram impostos pelo poder estabelecido, está ban-deira não é nossa, ela é o brasão da família que mal humoradamente nos atura e nos trata mal", afirmou o cantor.
A astrônoma Regina Schurig, 36, que estava no Canecão no último domingo, disse que as pessoas da plateia ficaram "muito chocadas" com a atitude de Cazuza. Schurig disse ainda que "todas as pessoas" que ela e o marido ouviram "não gostaram" da atitude de Cazuza. "Acho que a bandeira brasileira não tem nada a ver com a crise política e moral que o país está passando", afirmou.
Segundo Regina Schurig, antes de cantar "Brasil", Cazuza havia dito que o país "estava na pior", mas que "as coisas tinham que melhorar". "Depois ele se contradisse cuspindo na bandeira", afirmou Cazuza, procurado pela Folha, não foi localizado. (19 de Outubro de 1988)