Alienbalada: Nas Nuvens Elétricas de 1971
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O ano de 1971 foi marcado pelo sufoco e por propostas nem sempre bem recebidas – ou compreendidas – pelo sistema.
Como forma de oposição meramente comportamental, os jovens deixavam os pelos do corpo crescerem com toda a sua “violência natural”. Vestiam batas indianas, sandálias e bolsas de couro, combinadas a camisetas coloridas. Era a geração brasileira da paz e do amor, exalando patchouli, expressando‑se por meio de símbolos e gírias em nítido contraste com a linguagem oficial do Estado: a contestação manifestava‑se no vagar errante pelas estradas, sem a obrigação de “entrar na roda” do trabalho.
A imprensa alternativa tupiniquim dava os “10 toques” por meio do Pasquim, do Bondinho, do Flor do Mal – diário visionário de Luís Carlos Maciel — e da Rolling Stone, que introduziu o rock como fenômeno cultural. Anos depois, as revistas Geração Pop, Rock, a História e a Glória e, brevemente, O Circo e Arranjo continuariam a informar e a alertar seus leitores ávidos por novidades.
Muitos jovens, sufocados pelo cotidiano, passaram a dedicar‑se ao artesanato, a acender incenso, a experimentar LSD ou Mandrix, mascando sementes ou comendo arroz com casca. Os adeptos da contracultura, depois de frequentarem as feiras hippies dos grandes centros, deixavam suas casas rumo a Arembeque – cerca de 40 km de Salvador – uma antiga vila de pescadores transformada em comunidade naturista de cabelos floridos. Reunidos “infantilmente”, compartilhavam o “barato de curtir” sem recorrer a drogas pesadas, overdoses ou promiscuidade – aspectos hoje amplificados pela mídia.
Além da liberação sexual, buscavam nos alucinógenos, sobretudo no LSD (ácido lisérgico), pregado por Timothy Leary – psicólogo recém‑expulso de Harvard em 1963 – o “perceptível passaporte ao inconsciente”, almejando extrair uma visão paradisíaca do mundo. Alan Watts, divulgador do zen‑budismo nos EUA, apresentava o budismo como alternativa de vida e de princípios morais.
“Os Mutantes ficaram mutantes demais, presos à Pompéia e distanciados do público. Para o Sérgio e o Arnaldo, as pretensões populares eram de má qualidade. Até eu via as coisas assim.”
– RITA LEE
NO INÍCIO DE 1971, os irmãos Baptista decidiram abandonar a Pompéia e erguer casas comunitárias em um grande lote na Serra da Cantareira.
"Era uma trip coletiva, éramos todos uma pessoa só. Transávamos telepatia e buscávamos o nirvana. Destruíamos nossos egos para entrar numa percepção coletiva", relembrou Sérgio em entrevista à revista Bizz (ano 6, nº 05, edição 58, 1990).
Com o crescimento da tribo de seguidores e o espírito hippie de romper com o estabelecido, no INÍCIO DE 1971, os irmãos Dias Baptista decidiram deixar o bairro da Pompéia. Partiram rumo à Serra da Cantareira, onde começaram a construir casas comunitárias em um imenso lote cercado pela mata. Todos passaram a viver juntos.
“As três casas que construímos não ficavam no bairro da Cantareira; e sim, no topo da Serra da Cantareira, no bairro Jardim Nova Friburgo, município de Mairiporã. Muitos acontecimentos interessantes que ali ocorreram estão narrados na obra suprema, Géa. A casa onde morei, construí com minhas próprias mãos, ajudado por minhas duas filhas pequenas, que, sorrindo, faziam questão de carregar alguns tijolos para me ajudar. E ajudaram. E ali moraram, quando terminamos a casa. Eram, então, minhas únicas filhas: Karen e Kely. As duas filhas seguintes, Kathy e Kate, nasceram quando já morávamos nessa casa.
“Todos gostaram da ideia de viver em um clima menos opressivo. Pouco a pouco, superávamos as dificuldades. Os amigos, músicos e uma gama de acompanhantes dividiam a alimentação e as instalações, e juntos enfrentávamos a precariedade e os desafios iniciais.
“Para estar mais próximo do terreno e construir minha casa, aluguei outra na Serra, onde passei a receber os (mais ou menos?) Mutantes para ensaios. Certa vez, precisei expulsar de lá um bando crescente de curiosos que vinham assistir aos ensaios, depredavam o gramado, fuçavam tudo na casa e comiam nossa comida às minhas custas. Fiz isso a tempo de não comerem ninguém.
“Foi nessa casa que ocorreu o episódio da minha segunda e última experiência com ácido — já descrita – com a qual salvei aquele repórter.”
(CCDB©)
“O LSD seria uma coisa boa para se entender o que é comunhão. O que é realmente um povo. O sentido de povo mesmo.”
– Sérgio Dias
“LSD, para mim, não significa rebeldia, vagabundagem, libertinagem, descontrole ou overdose. Significa, sim, experiência com a mente, que se torna ampla e elástica.”
— ARNALDO BAPTISTA
— E o perfil dos Mutantes partiu muito daí, então?
"Partiu daí também. Quando eu era garoto, aquelas perguntas — que quase todos os meninos fazem — estavam muito presentes na minha mente. E acabei obtendo as respostas de forma inesperada, por um meio não muito recomendável: o uso do LSD, que não recomendo a ninguém. Se fosse dado a uma pedra, ela seria uma pedra lisérgica; se a uma aranha, ela faria uma teia diferente. Então é preciso que exista, antes de tudo, alguma coisa na pessoa, para que esse conteúdo possa se manifestar – com droga ou com técnica mística.
Mas depois dessa primeira viagem (eu era o mais velho, fiz a primeira), os outros Mutantes – infelizmente, de certa forma; talvez felizmente, de outra – fizeram as deles. E existe um perigo muito grande nas viagens: é que as pessoas voltam sem as respostas, porque sua personalidade se desestrutura e, depois, ao voltarem, essa personalidade se reestrutura – ou não.
E quando procuram respostas para essas novas perguntas, parece que só existe uma: voltar à viagem; e aí a coisa se desestrutura mais e mais.
Bem, citei a droga e o misticismo porque isso se relacionou muito com os objetivos dos Mutantes. Houve uma época em que só admitiam tocar usando drogas. Só admitiam que as pessoas conversassem com eles no mesmo estado.
Eu salvei um jornalista de ser obrigado, sem saber, a tomar LSD. A esse jornalista iam dar, no café, ácido lisérgico, porque achavam que ele só poderia entendê-los se estivesse passando por uma viagem.
Então, para poupá-lo disso, fiz minha segunda experiência, mostrando que mesmo com 1/16 (que era o que pretendiam dar a ele) da dose que seria a de uma viagem, isso ainda traria consequências – talvez graves – ao tal jornalista, e que jamais deveriam fazer tal coisa.
Felizmente, não fizeram."
(CCDB©, à revista Backstage n.º 8 – 1995)
– E as viagens eram tão profundas assim?
"São absolutamente profundas. O LSD é (perdoem-me) mais ou menos como tentar descrever o que é ver para quem é cego. É uma emoção extremamente intensa; como se você, a cada dois segundos, subisse nesta janela, no décimo quinto andar do prédio, e se atirasse lá de cima.
Não existem pontos intermediários. É tudo ou nada; ou tudo é bom, ou tudo é ruim. É uma corda estendida no meio do infinito: embaixo está o inferno, em cima está o céu.
Por outro lado, no meu caso – que era interessado no misticismo – tirei uma experiência mística. Outras pessoas tiveram experiências de terror. Cada uma teve a sua: algumas, de sexo; e assim por diante.
Então, nessa experiência, cheguei a ir direto – queimando etapas – à Consciência Cósmica.
Trocando em miúdos: eu vi Deus.
Outros viram 'nada'. Conheço alguém muito triste, muito infeliz, porque, tendo chegado a esse ponto, viu 'nada'. Nada existe, não há Deus, não há coisa nenhuma – para esse alguém.
O que é ver Deus também é impossível de descrever. Você não tem tempo de raciocinar. O tempo fica distorcido.
E outra parte da experiência é a decomposição da personalidade.
Daí os problemas que aconteceram com os componentes do conjunto. Eles não fizeram apenas uma viagem. O intuito era mais social, sociológico e até político; e daí tiraram muitos conceitos e ideias com os quais queriam mudar o mundo.
E isso, na época, era comum. Não eram só os Mutantes que faziam isso.
Esse lado é interessante contar: pode ter tanto a sua parte boa (que é possível, mas não necessária), no que acontecia; e o que acontecia (até porque não foi uma só pessoa fazendo a experiência – foi um conjunto), era que entre si se comunicavam pela mente.
Ou achavam que o faziam. E, enfim, isso muda.
Uma pessoa que consegue esse tipo de efeito tem uma visão diferente do mundo. Pode ser melhor ou pior, mas resulta, certamente, em uma profundidade diferente também."
(CCDB©)
– Esse tipo de visão e fazer um trabalho em cima disso fazia parte dos objetivos da banda?
"Era um estilo de vida mais do que um objetivo. E desse estilo de vida poderia surgir a parte ruim – que, às vezes, se torna trágica."
(CCDB©)
– E até que ponto você acha que isso foi importante para a formação do grupo?
"Isso modificou muito o conjunto. E daí pra frente...
Apesar de que uma música executada sob o efeito de drogas possa sair ruim, a droga permite uma espécie de criatividade que fez algumas pessoas serem reconhecidas depois da morte – porque não nasceram com droga, mas nasceram com a cabeça como se tivessem usado.
Acho que teve importância, sim.
E teve toda uma fase, depois dessa época, em que o conjunto produziu coisas baseadas no que via nas viagens.
E nasceu um objetivo: os Mutantes transformavam a sociedade vivendo nesse estilo.
Mas não tinham – pelo menos de forma explícita – um objetivo do tipo: 'nós queremos chegar a tal ponto e provocar tal acontecimento na sociedade'.
Eles simplesmente viviam aquela época, aquela maneira de ser, aquela dicotomia entre o careta e o não-careta; e assim por diante."
(CCDB©)
O grupo vivia uma fase de transformação iniciada no disco anterior. A principal mudança foi a entrada de Arnolpho Lima Filho – o Liminha – no contrabaixo. Amigo de longa data de Serginho, ele já havia participado de um dos primeiros LPs do grupo e acompanhado os Mutantes no Festival da Record. Arnaldo, então, assumiu definitivamente os teclados.
Liminha conhecia Serginho desde 1966, quando, a convite da mãe de um amigo, recebeu uma missão curiosa:
“Tocar junto com um ‘garoto que veio aqui’, que toca bem, mas é muito convencido. Eu queria que vocês se encontrassem para você acabar com ele!”
No sábado seguinte – dia do “duelo” – Liminha manteve‑se imponente com sua Giannini até que o rival exibiu sua Fender Jaguar azul.
“Só aí eu fui às cordas”, brinca Liminha. “Ele começou a tocar só com a mão esquerda, coçando a cabeça com a outra… Afê, deu!”
Ao final, abraçaram‑se e Liminha não sossegou até ganhar uma das guitarras fabricadas pelo pai do garoto.
“Tocar com os Mutantes, naquela época, era o meu sonho, entendeu? Era como tocar nos Beatles. Aí recebi um recado do Arnaldo: ‘Pinta lá em casa’. Fiquei contentíssimo, porque sabia que eles me convidariam como músico acompanhante, com cachê mais baixo.”
– Liminha (Bizz, ano 06, nº 05, 1990, edição 58)
A nova formação, inspirada pelo “jardim” da Cantareira, compôs músicas inundadas de aromas mágicos para o disco JARDIM ELÉTRICO. A capa, com desenho de Alan Voss, trazia ramos floridos e cores lisérgicas iluminadas pelo sol. Nos sulcos, havia “loucuras” como o primeiro solo de bateria com phaser, prenunciando a sonoridade dos rígidos ANOS 70. Na contracapa, a formação definitiva do quinteto posava junto aos instrumentos.
"As plantas elétricas do jardim eram minhas... O efeito da bateria não foi phaser; sim, flanger, mui superior". (CCDB©).
Algumas faixas, gravadas na França para um LP que jamais saiu, foram mantidas. O produtor francês, mais interessado em ritmos latinos, rejeitou o material. O grupo também registrou um compacto em Londres com músicos baianos, que não viu a luz do dia.
Durante as sessões de CARLOS, ERASMO…, o maestro Duprat arranjou duas músicas, com Serginho, Liminha e Dinho dando suporte ao “tremendão” em algumas faixas. Destaque para “Não te quero santa” e “É preciso dar um jeito, meu amigo”. Chiquinho de Moraes assinou outros arranjos, e Manoel Barenbein coassessorou a produção.
"Por falar em Erasmo Carlos, este me encomendou, e realizei para o seu contrabaixista Raul, no tempo da Venâncio Ayres, um contrabaixo sólido de minha concepção, que, se a Fender lançasse hoje, superaria de longe todos os instrumentos que essa fábrica ilustre produziu. Tenho fotografias desse contrabaixo". (CCDB©).
“Aromas assassinos e flores eletrônicas: jardim elétrico.”
O ar saboroso do verde estampava‑se no globo ocular das overdoses negociadas com a loucura – essa exigente de altos custos para flagrar o mundo mutante.
A paródia emergia nos floreios do “Top top” – ou seria “Dope dope”? –, amor anárquico desencadeado entre eles, prometendo “trepar na escada” e entoando “top top” (“dope dope”).
Os Mutantes (ou melhor, Arnaldo) desvirginavam “Ben‑vinda” no coirinho safado:
“Benvinda, vem me dar.”
Arnaldo imitou Tim Maia; quinze anos depois, o próprio Tim gravaria uma música com esse nome. Coincidência?
"Tim Maia foi um dos artistas que sonorizei com aquela aparelhagem (por sinal, transistorizada...), e talvez tenha sido a única de cujo som gostou e não reclamou". (CCDB©).
Segue‑se a brisa marítima de um som simbólico em “Technicolor”: a cítara de Sérgio e a voz branda de Rita Lee acariciam uma tempestade de imagens cinematográficas.
"A 'bela cítara' de Sérgio, assim como a caixa Leslie de Arnaldo só ainda existia porque juntei os cacos de ambas e as reconstruí, quando chegaram do exterior; a primeira, com a cabaça removível espatifada; a segunda, rachada ao meio na horizontal. Aliás, não era 'cítara'; sim, sitar. Sitar é palavra que, em português, tem gênero masculino: diz-se corretamente 'o sitar'. Cítara é outra coisa. Esse sitar foi escolhido pelo próprio Ravi Shankar para Sérgio, conta este, quando meu irmão o adquiriu no exterior. Adivinhe quanto me foi pago pelas duas restaurações? Também nada recebi, se não o dinheiro para as passagens de ida e volta de São Paulo ao Rio, para consertar uma caixa imitação de Leslie que Arnaldo vendeu para Tim Maia. Fiz o conserto no apartamento onde este residia, em meio a uma fumaceira danada". (CCDB©).
“El Justicero” retoma a estória do bandoleiro bucólico e salvador de povoados do Velho Oeste, com flagrantes de humor:
“Era uma vez um grande homem, com uma arma nas mãos, que veio para proteger as pobres pessoas. Seu nome: El Justicero.”
Rita ressuscita a mocinha que vai em busca de seu “justicero” – notável a originalidade ao revisitar o som “faroeste”.
"Muito desse som far west era da Guitarra de Ouro, ajustada por Sérgio para o som de Duane Eddy". (CCDB©).
Em “It’s Very Nice pra Xuxu”, Arnaldo esganiça a voz, desafiando conservadores da “linguagem tupiniquim”, mostrando que, após anos “desligado”, já não era “mais o mesmo”.
“Portugal de Navio” narra um amor não correspondido: o protagonista manda a “bela” para “Portugal de Navio” (ou P.Q.P.), justificando-se entre “pijama sorrindo a brincar”. O solo de gaita dialoga com os demais instrumentos, tentando acalmar os nervos.
Os “tigres púrpura” ganem borbulhantes no gramofone. Em “Virginia”, os Mutantes desvirginam ouvidos e olhos, e a virgindade jamais retornará. O cenário se expande para novos espaços na percepção de cada um.
O “jardim dissonante e elétrico” exala choques persuadidos, solos de bateria com phaser e guitarras vertiginosas – uma avalanche sonora próxima ao som “lenha”. Amplificadores mordidos reverberam ondas, bolhas, frutos, aromas afrodisíacos e sonhos eróticos.
“Lady Lady” retrata a paisagem da “muralha fatal”, lacuna negra nos corações exaustos:
“Suas roupas estão vazias / Lady, ainda estou aqui.”
“Saravá” chega com arranjos temperados – mas a letra pouco toca quem escreve.
Quando gravaram “Baby” em inglês, transformaram‑na em Bossa cantada em inglês, provocando os puristas; feito quinze anos antes de os ingleses redescobrirem a Bossa.
Ali, superavam precocemente as dificuldades iniciais: amigos e músicos dividiam alimentação e instalações. Peninha Schmidt montou o som dos Mutantes na Cantareira e acompanhou‑os em uma turnê de quatro meses por ginásios e pelo interior paulista. Também auxiliou Cláudio César Dias Baptista na instalação da primeira mesa de som, no meio da plateia, na América Latina.
"Não foi absolutamente o Peninha quem montou a aparelhagem! Tenho fotografias tiradas por ele mesmo, nas quais aparece quem de fato realizou essa montagem – até sob a luz de velas, com as filhas ao lado, naquela mesma casa. Essa aparelhagem foi projeto exclusivamente meu. Contratei a ajuda de Peninha e de Leo Wolf; o primeiro montou apenas as fontes de alimentação dos dez amplificadores de potência transistorizados, de projeto meu e de Leonardo Bellonzi — baseado e ampliado a partir de uma publicação mais simples, vinda de uma revista de eletrônica estrangeira, sobre um circuito seguro e minimalista da RCA.
A aparelhagem foi montada principalmente por mim, segundo um projeto PERT de minha autoria, que exigia o término do trabalho em quarenta dias – e consegui. Por isso contratei Peninha e Leo, que foram pagos pelos Mutantes, e a eles designei tarefas específicas e fáceis de executar, todas as quais revisei antes de usar, corrigindo os erros.
Essa aparelhagem era parte de um projeto maior, que atendia ao rogo de socorro de Arnaldo, para que eu 'salvasse os Mutantes'. E foi o que fiz, largando antes da data planejada a faculdade (EAESP-FGV) e a direção da fábrica de um colega, arriscando-me até a medula e tornando-me o intermediário entre os músicos, para lhes dar paz, e o empresário, Marcos Lázaro. Eu e minha pequena família – que já morávamos nessa casa, com o plano de construirmos a nossa — mudamos o rumo de nossas vidas e salvamos, sim, os Mutantes.
Peninha não me auxiliou em nada na instalação da 'primeira mesa de som no meio da plateia na América Latina'. Quem fez isso fui eu, sozinho. Peninha gosta de autopromover-se, mentindo. O que ele fez foi apenas operar, sob meu comando, o pequeno misturador de palco – um velho Altec — cujo sinal passava pela grande mesa da plateia, console tetrafônico que projetei sem ajuda de ninguém, para aquela aparelhagem salvadora, e que só eu operava na primeiríssima apresentação dos Mutantes e em várias das subsequentes. Esse sinal passava inteiro por minhas mãos antes de chegar ao público.
Durante o ensaio para um espetáculo feito com essa aparelhagem, renunciei ao meu posto e o cedi, daí em diante, ao Peninha, porque Arnaldo exigiu que eu me drogasse com maconha para operar o som 'como ele queria' – exibindo o mesmo comportamento que teve com aquele repórter que salvei. O equipamento fora desenhado por mim, e ele concordara com o projeto quando lho apresentei – a ele e aos outros – antes da montagem, para a tetrafonia ao redor da plateia.
Arnaldo, como acréscimo ou desculpa à exigência de que eu me drogasse, queria usar a parte traseira do sistema como retorno de palco – o que já estava sendo feito suficientemente pelo misturador operado por Peninha e pelas caixas acústicas específicas. O resultado seria – e de fato foi, mais tarde – muito pior, pois para esse uso seria necessário projetar e construir equipamento específico.
Havia um único espectador no ensaio, na plateia, que se retirou assustado ao ouvir o que Arnaldo exigia — e o meu “Não!”, firme, em resposta. Sérgio estava presente, com a Guitarra de Ouro nas mãos... e, como os outros, silenciou.
Essa foi a paga especialíssima que tive por ter salvado os Mutantes – e me retirei feliz, missão cumprida."
(CCDB©)
Em meio à tranquilidade da natureza, ensaiavam sem parar. A chuva, que caiu por dois dias e uma noite sem interrupção, forçava‑os a tocar com a janela aberta, contemplando pinheiros, nuvens e montanhas – uma visão de paraíso.
O primeiro raio de sol pós‑dilúvio entrava intensificado, despertando mentes e ouvidos para mais um dia.
"A natureza na Serra da Cantareira era tudo, menos tranquila! Veja como se mostrava, lendo GÉA! Foi na serra que Léo Wolf gravou o som dos raios que inserimos em certa música – um dos quais quase o eletrocutou durante a gravação e, mais tarde, destruiu o mais forte dos drivers JBL do conjunto, um 2482 – durante a reprodução do trovão desse raio como efeito especial, num espetáculo que sonorizei com a mesma aparelhagem, antes do incidente supracitado e da minha retirada. Só depois dessa retirada, Peninha passou a operar a mesa da plateia. Aliás, é bom notar que Peninha nunca ajudava no transporte nem na instalação do equipamento: ficava de braços cruzados, pois estava sendo pago apenas para operar a mesa de palco. E brincava, dizendo que Léo e eu tínhamos de carregá-lo desde o veículo de transporte até o local do espetáculo – o que, também em tom de brincadeira, certa vez realmente fizemos... Contratar certas pessoas, como Peninha, ajuda; mas às vezes dá peninha que só sirvam para atrapalhar."
(CCDB©)
EM SETEMBRO, realizou‑se o VI Festival da Canção da Rede Globo: 36 músicas inscritas originalmente; 11 vetadas pela Censura Federal. Em protesto, Chico Buarque, Tom Jobim, Paulinho da Viola e Vinícius de Moraes retiraram suas composições.
NO FINAL DAQUELE ANO, o inglês Michael J. Killingbeck preparava-se para lançar a “Rolling Stone brasileira” e convidou o jornalista Luís Carlos Maciel para integrar a equipe de edição da revista. Killingbeck possuía uma empresa que, em tese, pagaria os devidos royalties à matriz americana pelo uso do nome e pelo envio do conteúdo original. Tudo parecia estar em ordem.
No entanto, logo no primeiro mês, o envio de material pelos Estados Unidos foi interrompido por falta de pagamento por parte da empresa de Killingbeck. Apesar disso, Maciel ainda conseguiu levar adiante o projeto e colocou nada menos que 34 edições da chamada “Rolling Stone pirata” nas bancas brasileiras.
"Desse Michael só me lembro de ter aberto inadvertidamente a porta do banheiro na casa de Arnaldo, Serra da Cantareira, e ver o primeiro acocorado no vaso sanitário. Ele me olhou despreocupada, beatificamente... e passei. O que sei dele são lendas, de ouvir falar; e jamais repito coisas assim. Deveras, não o conheci". (CCDB©).
Em dezembro, na véspera do término das gravações do quinto álbum da banda, o jornal O Bondinho publicou uma longa entrevista com os Mutantes. O clima era de tensão, insatisfação e delírio criativo em meio à repressão política.
“Aqui, para tocar um disco,” desabafou Arnaldo Baptista, “a gente tem que puxar o saco dos disc-jóqueis. Tem que passar por muitas coisas desagradáveis. Nós já experimentamos ficar sem fazer essas coisas chatas.”
A convivência com a Censura Federal era cada vez mais sufocante. As interferências constantes afetavam profundamente o trabalho artístico. O sistema desconfiava da linguagem dos Mutantes e não assimilava aquele “novo” modo de vida. Ao mesmo tempo, a gravadora pressionava por resultados comerciais e o empresário buscava lucros imediatos.
Em meio a essa engrenagem opressiva, o processo de criação se arrastava – e o disco, aos poucos, se tornava um verdadeiro “saco”.
NO DIA 30 DE DEZEMBRO, Rita e Arnaldo se casam: um presente para os pais deles.