Frisco

Frisco (Mário Pacheco)

PUBLICADO NA REVISTA PSICODÉLICA ‘DE QUANDO O ROCK ERA CONTRACULTURA’ VOLUME I

     San Francisco sempre aquiesceu facilmente ao novo e à potência carregada, a partir dos anos 50, torna-se a capital do rock’n’roll e de movimentos jovens liderados pelos beatniks e hippies. Pelas ladeiras onde correm os bondes, pela arquitetura vitoriana e restaurantes sofisticados, a cidade branca de baia testemunhou a expansão sonora do acid-rock, colorindo uma época inteira, estilhaçada sob o peso da sua própria busca. Embora San Francisco, seja a cidade mais famosa da Califórnia, não é a capital do Estado, privilégio dado a Sacramento, mais conhecida pela corrida do ouro, aos pés da serra Nevada, no final do século passado.
     Esta cidade colorida conta com inúmeras atrações, como o Golden Gate Park, que tem aos fundos o oceano Pacífico e a prisão de Alcatraz, uma ilha, onde estiveram presos gangsteres famosos como Al Capone.
     Esta cidade de costa ocidental da América, aberta a todas as influências asiáticas, abrira-se também para a new people, beatniks, escritores, poetas, músicos de vanguarda, freaks e outros grupos que não só exteriorizavam os seus “protestos” através de manifestações políticas, como também participavam no campo da “cultura”.
     “San Francisco é uma cidade livre. Vivemos aqui como pioneiros. Antes de ficarmos com o Alasca, San Francisco constituía a guarda-avançada dos Estados Unidos. Nesta cidade existia um movimento sindical forte e radical, que venceu mais de uma greve. A influência da tradição não se manifesta aqui, com a mesma firmeza que é possível detectar noutras cidades. Em San Francisco vivem numerosos grupos estrangeiros; chineses, mexicanos e latino-americanos misturam-se com os naturais”.      (Max Scherr).
     Não era o paraíso mas faltava pouco para isso. Com praia perto, aluguéis baratos e pensão da previdência social, para que trabalhar? Ninguém pretendia virar milionário. Todos estavam na onda da paz e do amor. “Não esquente a cabeça” era o que mais se ouvia. Enfim, as condições ideais de temperatura e pressão para o desabrochar do hippismo. E, claro, da trilha sonora da contracultura, o rock psicodélico retirado do caldeirão embalado de alucinógenos, tentando recriar o equivalente sonoro das viagens ácidas. Nasciam as músicas longas e improvisadas, épicas e cínicas e em breve a sinfonia do hippismo cheias de passagens instrumentais e letras carregadas de simbolismo e misticismo.

     Turn on tune in drop-out

     Os Beats continuaram a produzir uma cultura underground, surgida num período de crise racial, agitação universitária e início dos movimentos antibelicistas (em 1961, os EUA estavam intervindo no Vietnã), se fortalecendo, incorporando na contestação ao sistema a nova filosofia, arte e música.
     Em fevereiro de 1965 o “afamado alquimista” Owsley Stanley comprou alguns livros de química, fez algumas experiências, e passou a fabricar ácido lisérgico no porão da sua casa. O Owsley’s invadiu o mercado de San Francisco e logo todos falavam das festas louquíssimas promovidas pelo romancista Ken Kesey, onde pessoas tomavam ácido como nova forma de experiência.
     Tudo isso deságua em San Francisco, em novembro de 1965, num festival organizado pelos estudantes de Berkeley em benefício do grupo teatral San Francisco Mime Troupe. Nesse festival atuam, entre outros, Jefferson Airplane e os Fugs (importante grupo nova-iorquino), pelo rock; Lawrence Ferlinghetti declamando poesias; John Handy, no jazz; e Allen Ginsberg fazendo o pessoal cantar mantras.
     À medida que os Estados Unidos se envolvem na guerra, os protestos aumentam, os teach-ins (espécie de palestras nas universidades) são mais frequentes, e uma nova forma de contestação começou a acontecer: os drop-outs (cair fora), indo formar as primeiras comunidades hippies. Começa a ecoar o som de San Francisco.
     Uma tarde, durante o verão de 1965, um andarilho chamado Charlie Brown apareceu no Drugstore Cafe, onde a moçada se encontrava para articular as transações. No segundo andar da loja, funcionava o estúdio do pintor Michael Bowen, aos 29 anos, um dos talentos das artes plásticas americanas. A casa de Bowen, era o epicentro do movimento e um reflexo do que acontecia em Hashbury naqueles dias: um ponto de encontro de escritores itinerantes, artistas, gurus e hippies, como a mídia americana batizou aquela gente meio exótica em sua quase imundície que maciçamente começam a perambular pelas ruas de San Francisco no meio dos anos 60. Não raro encontravámos também no estúdio de Bowen, o escritor Allen Ginsberg, o filósofo Alan Watts, um adepto entusiasta do uso espiritual das drogas psicodélicas; o orientalista Gary Snyder e ativistas políticos de Berkeley, como Jerry Rubin e Abbie Hoffman.
     Charlie Brown tinha ouvido dizer que a casa do pintor era uma espécie de assembléia permanente daquela contracultura emergente. Era a eles que Brown queria contar sobre sua descoberta: a relação entre o edifício do Pentágono e o demônio da guerra que pairava sobre os Estados Unidos. A história de Charlie baseiava-se num diagrama mágico elaborado no Egito há mais de dois mil anos. Um diagrama mágico é um desenho colocado no chão por um mágico, que pisa sobre ele, se concentra e começa a interpretá-lo. Um mágico! Um homem sagrado! É assim que Charlie Brown era conhecido em Hashbury.
     Segundo o diagrama, a estrela de cinco pontas contidas num pentágono é o símbolo alquímico do poder negativo, do inverso da força. Este símbolo está associado à guerra, ao assassinato e ao apocalipse. O pentágono também é o desenho contido na medalha de honra do exército americano. Outro detalhe constatado por Brown: o edifício do Pentágono foi construído fora da mandala de Washington, num pantanal conhecido no passado como Baixada do diabo, e cada uma de suas cinco extremidades aponta para áreas de imundice e poluição: duas usinas nucleares, uma via expressa e um cemitério de heróis de guerra.
     Naquele dia, no apartamento de Michael Bowen, decidiu-se que, contra aquela situação beligerante e de violência crescente, só havia uma saída: uma concentração de pessoas com energias positivas nos arredores do Pentágono. O happening aconteceu no dia 4 jul. / 1965, aniversário da Independência dos Estados Unidos. Neste dia, a camarilha psicodélica foi presa ao tentar entrar na Casa Branca levando um LSD para o presidente Lyndon Johnson.
     Esta é uma das histórias que marcaram San Francisco. Um período de gestação de quinze meses, quando um enorme segmento da juventude americana declarou-se abertamente em oposição aos ideais do american way of life, que desembocavam em becos sem saída como a guerra do Vietnã. Surge uma contracultura genuína, nasce o mundo psicodélico, estimulado pelo acid-rock, pela poesia beat e pelo ácido lisérgico. Inicialmente conhecidos como acid-heads mais tarde eles seriam popularizados como hippies e sua comunhão, costume fora de moda teriam uma modificadora influência em todo o mundo. As roupas exóticas, os cabelos longos não eram máscaras, mas expressões. As regras e as leis da nova tribo diferenciavam das que dominavam a sociedade feita de carros, casa própria, seguro de vida e bombas napalm para destruir aldeias de pescadores no sudeste asiático.
     A nova tribo tem seu foco e apoteose nos arredores das ruas Haight e Ashbury ou a grande esquina. É assim que os californianos da cidade de San Francisco chamam o encontro entre as avenidas: Haight e Ashbury, localizada na periferia do Golden Gate Park, o paraíso dos acid-heads onde proliferaram pôsteres, grupos e drogas, cujos nomes são até hoje sinônimos do fenômeno e das pessoas que nele estiveram envolvidas. Hashbury é uma área ensolarada e calma, repleta de velhas casas vitorianas, negócios marginais e habitada por beatniks, negros e orientais egressos do superpopulado bairro de Chinatown. Com aluguéis baratos e espaço para todos, este é o cenário onde em grandes revoadas começavam a desembarcar os jovens vindos de todas as partes da América, atraídos pelo cheiro de incenso e patchuli, pelas lendas sobre homens mágicos e pela batida do rock que reverberava nos porões das velhas casas. Buscavam uma mudança de estilo de vida. Haight-Ashbury, tornou-se a terra da promissão para toda uma parcela da juventude americana, sem a menor intenção de ir defender os interesses geopolíticos dos Estados Unidos no sudeste da Ásia.
     Daí em diante não houve um dia sequer sem que uma passeata de estranhas aparições tivesse lugar em Hashbury: garotos de 18 a 25 anos enrolados em ponchos, cobertores ou na própria bandeira nacional; meninas com bandas indianas na cabeça, salpicadas de margaridas e usando roupas e jóias das avós. Vinham soprando flautas, acompanhadas dos cachorros, também com flores nas coleiras, as palavras de ordem eram “paz e amor”. Havia rock e LSD por toda parte. Todos levantavam os punhos rendados e camafeus e dançavam e curtiam numa boa.
     O espírito de Haight-Ashbury capturou a imaginação e a fantasia de milhares de jovens pelo mundo inteiro. Na metade de 1965 a polícia de San Francisco fez cinco mil prisões. Vinte mil jovens de todo o país foram dados como desaparecidos de casa, com uma única direção provável: Hashbury, em San Francisco. E milhares de outros estavam em vias de partir para engrossar a marcha da revolução das flores. Dos quatro cantos do país vinham jovens de cabelos compridos e roupas extravagantes, atraídos pelos shows de rock ao ar livre, o clima geral de desbunde, a vaga perspectiva de um mundo onde ninguém trabalhava nem respeitava norma alguma.
     Havia um sentido familiar em Hashbury, uma grande família nascera no lugar. A conduta ultrajante e os hábitos tribais eram aceitos e até estimulados. No centro da cidade esse tipo de atitude atraía atenções negativas. Cabelos longos, barba e flores na cabeça eram costumes hippies e logo associados ao uso de drogas. Mas tudo não passava de um grande desfile, um espetáculo surreal, um circo psicodélico com banda de música e todo mundo dançando. Frisco era o lugar para ser curtido no inverno de 1965. Música mágica planava nos céus de Hashbury e cada vez mais o número de pessoas respondendo à sua batida aumentava. O bairro não tinha infra-estrutura para suportar aquele fluxo incessante de gente; o caos era inevitável.
     Em 1965, aos 17 anos, Rick Levine era um dos milhões de adolescentes que abandonaram tudo e se mandaram para San Francisco em busca de uma mudança de estilo de vida. Levine vinha de uma família de judeus ricos de Nova York. Os pais deles estavam entre os militantes do Partido Comunista Americano que abandonaram a política depois que Krushev denunciou os crimes do “Stalinismo”. Para Rick, os ventos que sopravam de San Francisco, em 1965, tinham cheiro de mudança. Traziam a promessa de revolução no american way of life com que seus pais tinham sonhado no passado.

     San Francisco sound

     O som de San Francisco é diferente do som de Los Angeles, pois se orienta mais pelo blues, além de tomar elementos do gospel, rhythm and blues, do estilo country-western, da folk, da música mexicana e hindu.
     A principal influência proveio do blues e dos artistas big-beat-blues, como Jimmy Reed, Chuck Berry, Muddy Waters, Howlin’ Wolf e naturalmente dos conjuntos ingleses que imitavam os citados bluesman.
     América e Inglaterra, os ianques toleram mal a idéia bretanha, os Beatles eram marcantemente estrangeiros para a música americana, mesmo que seu som fosse essencialmente a própria música americana revificada por isso detestavam o british boom, num momento em que os Beach Boys, a surf music, e os grupinhos que mantinham a imagem clean, pareciam musicalmente indecisos e no momento em que o cenário folk se converteu no folk-rock eletrificado, isso tudo, combinado a uma situação social única, resultou na música psicodélica, no San Francisco Sound.
     Duas coisas marcam o som de San Francisco: os bailes e a música psicodélica. Os bailes eram geralmente organizados pelas comunidades, depois viraram moda. Os Charlatans de Virginia City (Nevada), the very first band, considerados como o primeiro grupo a fazer esse tipo de som; e atrás destes The Marbles, The Warlocks, e The Hart Valley Difters, não ocuparam o privilégio do sucesso mas asseguraram o prestígio aos seus predecessores.
     No dia 6 de outubro de 1965, iniciou-se a era do San Francisco Sound. A The Family Dog Productions Company, organizou o primeiro concerto-baile em Long-Shoreman Hall: “Queremos levar o underground artístico à cidade, utilizar máquinas, aparelhos para produzir ilusões luminosas a partir das qualidades tonais da música. Esperamos poder aprender o suficiente com o nosso primeiro ensaio e gostaríamos muito de poder realizar de dois em dois meses, um happening deste tipo aqui em San Francisco”.
     No referido baile atuaram os The Marbles, Charlatans, Jefferson Airplane e a Great Society, animando a festa desde as 9 da noite até às duas da manhã e o sucesso foi tremendo. Esses grupos eram agenciados pela The Family Dog Productions - barzinho, clube e atelier, propriedade de dois micro-empresários dispostos e bem abonados (um deles Chet Helms), juntamente com o Dead e o Airplane, outros grupos vieram, nessa primeira fase do San Francisco Sound.
     A realização seguinte foi um serão a favor da San Francisco Mime Troupe, o teatro radical da cidade. Localizado na esquina das ruas Fillmore e Geary num dos bairros mais problemáticos de San Francisco - Western Addition, o Fillmore de Frisco, fundado por Bill Graham, um jovem jornalista estreando no ramo da produção de shows, abriu suas portas pela primeira vez em 10 de dezembro de 1965, com espetáculo beneficente pilotado pela Mime Troupe, atuaram os conjuntos Jefferson Airplane, John Handy Quintet, Great Society, Mistery Trend e Gentlemen’s Band. Mais de 3.500 assistentes pagaram 3,50 dólares por entrada. Quando o Fillmore foi aberto ainda pensava-se em termos de rock’n’roll: Graham mandou retirar as poltronas do antigo teatro, deixando o chão livre para servir como pista de dança. Mas quase não se dançava mais, e o acid-rock era apropriadamente etiquetado como head-music - música de cuca, mental. No ano seguinte, ao abrir o Fillmore East, em Nova York, Graham não se deu mais ao trabalho de retirar as poltronas.
     A partir daquele espetáculo, Graham tornou-se independente e converteu-se no mais honesto dos propulsores da nova música. Nascia uma nova era na história da música pop - a era dos festivais. É nessa época que o rock experimental de Frisco começa a sua aceitação.
     O acontecimento seguinte foi o Tripe Festival que teve lugar no dia 21, 22 e 23 de janeiro de 1966 na sala do Longshore Men’s Hall. Cerca de 20.000 pessoas presenciaram espetáculos mistos, nos quais atuaram conjuntos de rock, poetas, cineastas e outros artistas, tudo numa espécie de “circo eletrônico”.
     Graham organizou um programa de concertos diários em Hashbury, no recém-inaugurado Fillmore West Auditorium (precursor do Fillmore East, de Nova York), que durou dois anos e meio. Era um festival contínuo de rock, apresentando as maiores estrelas da música pop de todos os tempos. Apresentar-se no Fillmore acabou se tornando um item crucial na carreira de qualquer músico. Afinal, as estrelas da casa eram nada menos que Janis Joplin, Grace Slick, Airplane, Dead, Frank Zappa e muitos outros. Claro que, durante os concertos no Fillmore, o coeficiente de loucura era um pouco maior do que o habitual. Na entrada do teatro servia-se Kool Aid (uma batida de frutas e LSD) para todo o mundo, de graça.
     A 4 de fevereiro de 1966 o Jefferson Airplane aterrissa no palco do Fillmore provocando uma verdadeira catarse hippie coletiva, balançando os imponentes lustres de cristais, o show de luzes, o incenso, as drogas e os pôsteres (que viraram arte no movimento) ajustavam-se, recriando o ambiente psicodélico da cidade. A sinestesia era alcançada pelos light-shows, projeções de luzes coloridas que acompanharam as apresentações do acid-rock, principalmente na Costa Oeste dos Estados Unidos.
     San Francisco, toma o lugar de Los Angeles no cenário do rock. Na verdade, o San Francisco Sound era feito por vários grupos vindos de diversos lugares e com formação musical das mais diferentes. De comum partilham a “mágica” identificação com a platéia, incorporando a sensação de formarem todos uma comunidade notadamente de vultosa confluência étnica, onde cruzavam-se arquétipos da cultura ocidental com a oriental. Country Joe and The Fish e Lovin’ Spoonfull transferiram suas bagagens para a iluminada estação da trip psicodélica, assim como os mentores do country-rock (folk-elétrico), os Byrds egressos de Los Angeles do clube “Ciros”, e que no terceiro disco, 5th. Dimension, abriu caminho para a comercialização do acid-rock por parte das gravadoras.
     O fato de ao fim e ao cabo se poder falar de um sound característico, tem razão primordialmente social. Efetivamente, havia mais de 500 conjuntos na cidade. Vulgarmente, viam-se conjuntos a viver em comunas, premissa essencial para a formação de um sound coletivo.
     “Todos eles, eram conjuntos cooperativistas e, de uma maneira geral, grupos que integravam uma série de pessoas, nos espetáculos luminosos, por exemplos, Engenheiros de som, mulheres, crianças cada um com o seu serviço específico, etc. Habitualmente viviam todos em conjunto, como acontecia com o conjunto Grateful Dead na sua casa de Haight-Ashbury. Por vezes, os conjuntos transferiam-se, como tribos de ciganos, para o rancho. Aconteceu isso com os Quicksilver Messenger Service”. (Ralph Gleason).
     De Marin County surgiu o Quicksilver Messenger Service, uma transa entre a folk, os blues, a música eletrônica e arrebatadores solos dissonantes.
     Também o conjunto Country Joe and the Fish, Joe McDonald, vocais e guitarra; Barry Melton, vocais e guitarras; David Cohen, guitarra e órgão; Bruce Barthol, baixo e harmônica; Chicken Hirsh, bateria; formaram, durante largo tempo, uma comunidade com os seus membros, que se separaram quando os primeiros se resolveram casar. Isto aconteceu com todos os conjuntos da Costa Oeste dos Estados Unidos, onde a convivência dos membros do conjunto constituiu fator essencial para o nascimento de um som original.
     O Mistery Trend, com uma fé religiosa no material oriental; e os Big Brother and Holding Co., com um som incrementado e amadurecido com a presença de Janis que estava cantando mais selvagem e mais alto do que nunca, e, sua voz, áspera e gutural, gritava, arranhava e seduzia a todos com suas carícias rudes. Não demorou e o Big Brother recebeu uma oferta para gravar, de uma pequena editora de Chicago, a Mainstream. Em um ano de trabalho as coisas melhoraram tanto para eles que acabaram garantindo uma vaga no Festival Internacional de Música Pop em Monterey conseguiram ficar famosos devido às interpretações dramáticas de Janis Joplin (Janis Lyn Joplin, 19 jan. / 1943, vinda diretamente de Port Arthur, Texas e que insuflou à música deles uma raiva e uma força agreste, tiradas do blues e das garrafas de Southern Comfort, a maior blues singer branca de todos os tempos). The Mamas & The Papas eram menos selvagens e reinventavam arranjos orquestrais, John Phillips, vocalista e guitarrista, criou a marca registrada do grupo, as vocalizações em vários planos acústico. Este efeito correspondia de certa maneira, à sensação produzida pelo ácido lisérgico. O Country Joe and the Fish, formado por Joe na Universidade de Berkeley, miscigenava o folk-rock com letras extremamente politizadas e cheias de alusões às drogas. O som era baseado em country, com muita experimentação eletrônica, tentando criar um clima acid-trip, como música resultante da “cultura das drogas”, destinada a um público pouco crítico, tentava de certa forma provocar no ouvinte uma “intoxicação sonora”. A tendência era recapturar nas gravações o som ao vivo dos concertos pesadamente amplificados. Por isso, os ouvintes de San Francisco obtinham essa atmosfera de show ouvindo suas vitrolas nos volumes máximos. Os ouvintes de outras cidades, pouco familiarizados com o acid-rock, não faziam tal ajustamento e perdiam assim o essencial da viagem. Foi esse um dos principais motivos por que o acid-rock custou a conquistar um público fora da Califórnia.
     Marshall McLuhan analisou a sinestesia em seu estudo sobre a alta fidelidade nos discos: “A busca do ‘som realístico’ pela hi-fi logo se misturou com a imagem da tevê como parte da recuperação da experiência tátil. Pois a sensação de ter os instrumentos executantes ‘na mesma sala em que a gente’ é uma tentativa de unir o auditivo e o tátil numa fineza de acordes que evoca, em grande parte, a experiência escultural. Estar na presença de músicos que tocam eqüivale a sentir seu toque e o manuseio dos instrumentos como experiência tátil e cinética, não apenas ressonante. Por isso pode-se dizer que a hi-fi não é uma busca de efeitos sonoros abstratos separadamente dos outros sentidos. Com a hi-fi, o fonógrafo enfrentou o desafio tátil da tevê”. Para McLuhan, a hi-fi e seu desenvolvimento lógico - o som estereofônico, ou 3D - ajudam a criar um ambiente envolvente (All around) que fecha o ouvinte numa espécie de envelope acústico (wrap around). Essa imagem e função da música sugere, no plano psicanalítico, a noção de um verdadeiro útero sonoro, não de todo desprovido de sua carga regressiva. E repressiva também.

     Segunda onda

     Com a chamada “segunda onda”, os californianos que faziam a linha maldita formavam o Moby Grape, um grupo lotado de contrapontos e harmonias cortantes. E, assim, novos grupos foram aparecendo, como os Blue Cheer, Mother Earth, Lee Michaels, Loarding Zone e Steve Miller Band (este último um outro texano, mas vindo via Chicago, na onda dos Mike Bloomfield’s Electric Flag, o mesmo aconteceu a Youngbloods, Butterfield e outros) todos dentro do mesmo espírito, tornando o Fillmore, o Avalon Ballroom e o Winterland as mecas do acid-rock. O grande sonhador desta história toda foi Steve Miller, discípulo de Alan Watts, personificados de uma psicopatia sui-generis.
     Esses excêntricos aliciadores formaram suas bandas de rock, pois a música foi (e é) a mais sintética forma de veicular as outras expressões artísticas e expandiram-se por outras cidades como Berkeley, Oakland e Los Angeles, ainda que catalogados nos modelos do rock, musicalmente, atordoaram o máximo possível, impuseram a improvisação, criaram harmonias exóticas, adularam os pedais de efeitos, e rotularam-se os mestres da free-form.

     


Hashbury cidade Livre
(Mário Pacheco)

 

     No Verão de 1967, San Francisco era a “fumada” Frisco, a Liverpool americana. Havia um bando de freaks, que narcotizados pela filosofia Beat, o espelho para suas sensações marginalizadas, passaram a vagar por estradas, pregar o amor livre, protestar contra as guerras, ler hai-kais, viver em comunidade, afiando a consciência entre os desejos particulares e intervenções no espaço coletivo. Além das deliberações sexuais, buscaram nos alucinógenos notadamente o LSD, o perceptível passaporte ao inconsciente, almejando extrair uma visão paradisíaca das coisas.
     O Jefferson Airplane possuía um casarão no número 2.400 da Fulton Street, onde passou grande parte de seus anos de melhor criação.
     No número 1535 da Haight Street, funcionava um dos pontos de encontro dos hippies de Hashbury era a Psychedelic Shop, onde vendiam-se jornais, revistas, discos e livros. Na loja havia também um café, uma sala de meditação sempre na penumbra e outra para se fazer amor. Nesta última foram concebidos muitos dos bebês de Hashbury. Na Psychedelic Shop (Loja Psicodélica) também funcionava a redação do Oracle, o precursor da imprensa underground. O jornal uma espécie de porta-voz da tribo, chegava às ruas perfumado de jasmim, contando eventos ligados à vida da comunidade. As edições esgotavam em horas. Quando fechou as portas, o Oracle estava com uma tiragem de 100 mil exemplares e distribuição em toda a Califórnia, algumas das edições alcançaram tiragens de 120 mil exemplares. Ninguém lucrou com o jornal. Em caso de emergência, os colaboradores podiam tirar um vale para o aluguel, nada além disso. O espaço vazio deixado pelo Oracle foi ocupado por aqueles que seriam os mais bem-sucedidos e poderosos jornais alternativos - o Rolling Stone e o Village Voice.
     Um pouco adiante até hoje existe a Haight-Ashbury Free Medical Clinic (Clínica Gratuita), oferecendo assistência médica completa e gratuita aos hippies, onde estiveram os Beatles. Ninguém pagava nada. O pequeno consultório, fundado em Haight-Street por um grupo de médicos voluntários, incluía até um departamento especial para atender aos casos de overdose de LSD. Na entrada da sala, um aviso dizia: “Aos pilotos psicodélicos que precisam de ajuda para encontrar o caminho de volta para a terra”.
     O projeto Free City San Francisco se tinha levado à prática algumas formas experimentais. A idéia era comunicada ao visitante com a promessa deste nada dizer. Temia-se toda a publicidade desnecessária. Secretamente distribuiu-se entretanto um comunicado que proclamava San Francisco uma “cidade livre”. Transcrevo uma informação sobre o Carroussel, quando este era propriedade do Free City Mouvement e que foi publicada pelo jornal International Times: “Carroussel Ballroom, 1545 Market Street, San Francisco, pertencente a Grateful Dead e Jefferson Airplane. Lotação para 2.500 a 3.000 espectadores, com preços o mais baixo possível. Há três semanas, Diggers tem em funcionamento um Free Food Store. Ao longo da semana sucedem-se manifestações como a convenção Free City Planning. Todas as quartas-feiras há baile com os Hell’s Angels e Big Brother and the Holding Company, com entradas a 1 dólar. Brian Rohan, advogado em questões pop, informa gratuitamente sobre assuntos jurídicos. Toda esta equipe trabalha para conseguir dinheiro para a comunidade. Os Panteras Negras escondem as armas quando entram ali”.
     O último exemplo é característico. A organização radical negra Black Panthers, constituída para defender o homem negro perante os desmandos dos brancos, ocultam as armas de fogo quando entram no Carroussel. Sabem que penetram noutra comunidade que está a tentar pôr em prática a “cidade livre”. O Gorilla Theatre organiza manifestações de nudismo e o San Francisco Mime Troupe, grupo de teatro guerrilheiro de Ronnie Davis realiza sátiras políticas na rua, coordenando de maneira geral o lado artístico do desbunde, deram nada menos que 124 espetáculos em 1968. Os atores não pedem dinheiro; quem quiser dar alguma coisa, dá e deposita o dinheiro num cesto.
     Duas revoluções ajudaram o movimento: uma nos jornais, com o Rolling Stone; outra nas rádios, quando a nova música contou com as suas próprias estações emissoras. Sob a direção de Tom Donahue que modificou a programação Fm da K.M.P.X., passando a transmitir à maneira de rádio pirata, faixas de discos e tapes dos grupos de rock, que nunca aparecia nas listas de êxitos da rádio comercial, rompendo a barreira da música meramente comercial.
     Os programas de música, eram frequentemente interrompidos para a transmissão de notícias e fatos da nova cultura de San Francisco. K.M.P.X., foi a primeira emissora de rádio underground.
     O espírito pouco convencional da citada emissora chegava ao ponto de transmitir, por exemplo um raga de vinte minutos interpretada por Ali Akbar Khan, assim como o longo monólogo Mixed Water de Bukha White.
     Existia também a escola secreta e misteriosa onde só se podia passar seis dias. Tudo de graça: cama, comida e transporte para chegar até lá. O que precisa era estar disponível por seis dias. E quem não estava disponível em Hashbury nesses dias? Seis dias de iniciação com Timothy Leary, Alan Watts e outros advogados da nova consciência. No currículo do curso, cura espiritual através de cartas para os arcanjos, astrologia, medicina natural, dança. Aprendia-se também a conversar com os arcanjos do céu, os avatares, os bodisatvas, os bruxos. Tudo, claro, com a ajudinha de LSD.
     Chegou o dia de celebrar a nova consciência que surgira na América e que, àquela altura, influenciava o mundo inteiro. O Festival das Viagens, a festa que marcou o evento, durou três dias e foi realizado ao ar livre, no Golden Gate Park. Gente de todos os continentes na grama do parque, garotas dançando seminuas, sarapes, mandalas, flores, túnicas indianas, incenso Era a grande explosão, o apogeu do poder da flor. No último dia do Festival, uma caravana de dez mil pessoas subiram ao topo da colina de Twin Peaks, localizada no meio de Frisco, para saudar o Sol com cânticos e orações. Quando o Sol surgiu no horizonte, Charlie Brown, o homem sagrado, levantou-se e proclamou o nascimento do Verão do Amor.
     A nova cultura de San Francisco (visível no seu teatro de rua San Francisco Mime Troupe, nos seus jornais underground Oracle, San Francisco Good Times, Berkeley Tribe e Berkeley Barbo, as suas comunas, free shops, diggers e conjuntos), foi silenciada durante um ano pela imprensa mundial, que lhe deu a chancela hippie para convertê-la num simples slogan turístico. Os chamados hippies tiveram que desfilar pelas ruas com um funeral aos ombros para que a imprensa proclamasse que o hippismo morrera de vez.
     O que acontecia em Haight-Ashbury nesses dias eram turistas de todo o mundo, da      Europa ao Japão, sabendo mais a respeito de Hashbury do que de San Francisco. Quando chegavam à Califórnia, o paraíso hippie era a primeira atração a ser visitada. De hora em hora, durante o verão, chegavam ônibus trazendo batalhões de turistas vindo dos hotéis do centro, a seis dólares por cabeça. Esses tours eram anunciados como “um safári pelo único país estrangeiro dentro da fronteira dos Estados Unidos” ou “safáris pelo reino de Psicodelia, o único país estrangeiro em território americano”.
     “A expressão hippie e os lemas similares flower-power e make love, not war se tinham convertido meses atrás em insultos e zombarias burguesas, definição que englobava todo os turistas vestidos com largas túnicas e portadores de colares de miçanga e insígnias de protesto. Quem passeie hoje em dia em San Francisco com uma flor; no cabelo, pode estar certo que será desmascarado como palhaço ridículo”.
     De fato, aves raras é o que não falta em Hashbury. Pintaram subdivisões, como os heads (mentores do Zen Budismo), Merry Pranksters do célebre Ken Kesey, os Hell’s Angels (a polícia pantera-pop) e os desvairados hippies de North Beach. Havia, por exemplo, os Diggers, uma facção de hippies radicais que ostentam o símbolo 1% na camisa, referindo-se a si próprios como a percentagem de seres humanos totalmente livres. Os restantes 99% são condicionados. Os Diggers são conhecidos como um grupo filantrópico a serviço da liberação dos demais. Andam sempre imundos, descalços e mendigam comida de porta em porta. Na verdade, os Diggers foram um grupo anarquista que viveu na Inglaterra no século XVII, usando depósitos de lixo como moradia. A luta dos antigos Diggers era no sentido de que a terra fosse dada a quem faz uso dela. Essas raízes ideológicas se estabeleceram entre os Diggers de Hashbury. Sua meta era a anarquia não violenta. Foram eles que construíram uma grande moldura no Golden Gate Park, através da qual podia ver-se um bando de hippies ocupados com a laboriosa tarefa de fazer amor, fumar maconha ou simplesmente dormir. A obra de arte era para ser vista pelos “normais”, isto é, as pessoas de terno e gravata, “que só consideravam arte o que esta contido pelos quatro lados de uma moldura”.
     Às quatro da tarde havia comida de graça no Golden Gate. Era o ritual diário dos famintos de Hashbury. Mais um gesto filantrópico dos Diggers, em solidariedade aos hippies menos afortunados. A comida era descolada nos bares, restaurantes, supermercados. Às vezes tinha de ser roubada. O passo seguinte era conseguir o local para cozinhar. Uma vez um biólogo doou aos hippies uma baleia pescada ilegalmente perto de Frisco. Foi a maior ceia de que se teve notícia em Hashbury.
     Uma boa parte da festa acontecia diariamente num recanto do Golden Gate conhecido como a Colina dos Hippies.      Lá, na grama, sob o sol, que Chocolate George (libertado sob fiança), um Hell Angel dissidente que virou hippie, montou seu escritório para empresariar novos talentos musicais. Nas horas vagas, Chocolate, sempre elegante, saía com um enorme estojo de guitarra (não havia nada dentro do estojo) pelas ruas de Frisco, fazendo-se passar por um músico de sucesso. Chocolate George fez da Colina sua base eleitoral. Ele concorria por conta própria à prefeitura de Frisco, prometendo, caso fosse eleito estimular o uso de LSD nas escolas primárias do país. Quando foi convocado para servir no Vietnã, protestou nu, durante várias horas em frente à Câmara dos Deputados da Califórnia.
     E o hippismo cresceu. Em janeiro de 1967, no Golden Gate Park, foi organizado o World’s First Human-Be-in (o mais famoso congresso-festival do poder da flor). Timothy Leary, Allen Ginsberg, Jerry Rubin (líder dos Yippies, o partido internacional da juventude) e mais ou menos 30 mil pessoas marcaram presença para discutir e ouvir o som do Dead, do Airplane e outros.
     Nesse momento, o ácido lisérgico é visto, como uma abertura para a unidade dos seres humanos e para a expansão da consciência, da compaixão e da inteligência. A maioria dos hippies de Hashbury vendia LSD e maconha. Ninguém precisava de muito dinheiro, pois a maioria vivia comunitariamente. Os aluguéis não passavam de 25 dólares por pessoa, a comida era barata. Assim, não era difícil comprar um pouco de maconha, vender um pouco, fumar um pouco e ainda ter a grana do aluguel no fim do mês. A maconha era barata, não existiam as grandes organizações no tráfico internacional, o quilo da maconha valia 80 dólares, mas...
     No dia 6 de outubro de 1966 o LSDé proibido por lei nos Estados Unidos. Para a maioria das pessoas, a data tem pouca importância, mas, para os hippies, ela tem um sentido místico. Ela contém o símbolo 666, frequentemente mencionado pela Bíblia, pela Cabala e pelos livros da Maçonaria. Segundo esses textos sagrados, 666 é o símbolo da besta. Todos os nomes do anticristo têm 66 como seu equivalente numérico do símbolo usado pelos gregos para designar o demônio, a mente inferior.
     A repressão à “droga sagrada” desencadeia uma nova onda de protestos pacíficos coast to coast, de Frisco a Nova York. Cartas são enviadas a Casa Branca e às principais prefeituras do país: “Uma democracia é o povo dizendo ao governo o que o faz feliz e não o contrário. A proibição do LSD é uma interferência do Estado na privacidade da psique dos cidadãos”.
     Nesta altura, a repressão corre solta em Frisco. The Beard, a peça do poeta Michael McClure, adaptada para o cinema por Andy Warhol, acabara de ser retirada do cartaz de um teatro de Hashbury, pela polícia, sob a acusação de “conspiração e atentado à moral”. The Beard é um diálogo entre Billy the Kid e Jean Harlow, no céu, ambos surpresos por terem merecido tamanha complacência de Deus.
     Poucas semanas depois, os donos da Psychedelic Shop são presos por venderem o Livro do Amor, da escritora Lenore Kandel, um livro sobre expressões de êxtase que não fazia nenhuma distinção entre o êxtase sexual e o êxtase religioso. “Blasfêmia!”, sentenciou a corte americana. O mesmo acontece com a peça Circo Psicodélico, do romancista Ken Kesey, ovacionado pela crítica por seu best seller Um Estranho no Ninho, que foge para o México temendo represália à encenação, na véspera, da sua Sinfonia Psicodélica, pelo Grateful Dead.
     No começo de 1967, a estridência dos hippies e todos os acontecimentos em Hashbury repercutem em todo o mundo como uma crise moral que ameaça as mais sagradas instituições americanas. A ação da censura e a repressão policial crescem.
     Nesse momento a maioria dos agrupamentos políticos de esquerda dos Estados Unidos emprestavam sua solidariedade aos hippies da Califórnia. Uma grande celebração foi promovida no Golden Gate Park, variando entre 20 a 60 mil pessoas vindas de toda a América “para uma união de total amor e ativismo político de duas tendências antes separadas por dogmas categóricos”. A convocatória para o ato público dizia: “Os militantes políticos de Berkeley, a comunidade hippie de San Francisco, a geração espiritualista da Califórnia e contingentes da geração revolucionária de toda a América se encontrarão no Golden Gate Park para a comunhão de um ideal comum: a união das tribos pela harmonia dos seres humanos”. A data escolhida é sábado 14 de janeiro de 1967, dia em que, segundo cálculos esotéricos, a população da terra seria equivalente ao total de mortos da História da Humanidade.
     “Às primeiras horas da tarde, umas vinte mil pessoas reuniam-se no anfiteatro de emergência construído junto do campo de pólo de Golden Gate Park. Ainda que pareça estranho, não se via um único policial nas redondezas. Talvez fosse esse o maior mistério daquele dia.
     Da plataforma, uma voz tranqüila saudou a multidão:
    — Benvindos a esta primeira manifestação do Bravo Mundo Novo...
     O público soltou uma espécie de suspiro coletivo. seria verdade tudo Squilo, realmente? Vinte mil pessoas tinham-se concentrado ali, com o único objetivo de expressar o seu amor e a sua alegria, para celebrar a unidade naquele parque banhado de sol; na companhia de pessoas que tinham o mesmo aspecto que os outros, o mesmo pensamento, o mesmo compartilhar de esperanças e ídolos; cujo único desejo era permaneceram sozinhos e viver como melhor lhes aprouver”.
     “As notícias sobre os planos para o primeiro Love-In chegaram através de uma ligação telefônica transcontinental, feita por Michael Bowen, o maluco e carismático artista-ativista. Ele e outras figuras de peso no cenário de San Francisco estavam bolando a celebração de uma missa no Golden Gate em honra do LSD e da consciência das drogas. Havia alguma rivalidade entre os barões psicodélicos sobre quem deveria encabeçar o evento: realmente, um problema dos mais difíceis, diante da presença de talentos como os Diggers, os remanescentes dos Pranksters de Kesey, a Mime Troup, o High Wizard Chet Helms, a Communication Company, o Grateful Dead, Bill Graham e os Hell’s Angels todos competindo pelo centro do palco. Michael prometeu que eu seria convidado para o encerramento. Alguns dos grupo de planejamento queriam organizar encontros similares no mesmo dia, em Londres, Amsterdã, Copenhague, Roma, Nova York e em outros pontos do Ocidente. Michael perguntou-me sobre imprimir e distribuir crachás da Liga da Descoberta Espiritual. Milhões no mundo inteiro os preencheriam e os colocariam em enormes caixas pintadas para parecer cubos de açúcar.
    — Ei, espere um pouco, Mike - protestei. - Eu não quero pertencer a uma religião de milhões de pessoas que nem conheço.
    — Apenas curta - continuou o impassível Bowen. - Em apenas um dia nossa religião seria procurada por mais adeptos do que o cristianismo e o islamismo em seus três séculos. Em um dia, você se tornaria papa de uma religião de alcance mundial.
    — Papa, hein? É uma oferta interessante, mas não é exatamente a carreira que tenho em mente. Não gosto de cultos de massa.
   — Pensamento fora de moda, cara - disse ele. - Seremos conectados eletronicamente. Shows mundiais de tevê. Dizendo para as pessoas como evitar bad trips. E, quatro vezes por ano, nos equinócios e nos solstícios, repetiremos as celebrações de missa. O planeta está louco para ser ligado. Você é aquele que tem a resposta.
     — Rosemary e eu iremos para o encontro - disse-lhe - como parte da multidão.
     No meio da manhã, podia-se sentir a eletricidade aumentando ali na área da baía. Todas as estações de rádio comentavam o Love-In. As pontes para a cidade estavam lotadas de peruas Volkswagen e as ruas em direção ao Golden Gate tornaram-se rios de gente. Mais de 60 mil pessoas se espalharam pelo gramado, comendo, bebendo, fumando, tocando instrumentos musicais.
     As maiores bandas de lá tocavam em um palco erguido sobre uma plataforma. Celebridades da contracultura davam seu recado entre os shows. Havia muita politicagem no comitê organizador quanto ao tempo fornecido a cada orador. O pessoal do lado cultural queria que eu enviasse uma nota com os princípios básicos. Os esquerdistas linha-dura queriam transformar o Love-In em uma demonstração política.
     Nas suas extremidades, a multidão era gentil, harmoniosa e alegre, no espírito de uma Kumamela hindu, onde o povo se alinha nas margens do Ganges para se encontrar. Enquanto íamos indo em direção do palco, pude observar um interessante fenômeno neuro-social. Quanto mais perto dos microfones e amplificadores, piores eram as vibrações. Havia espectadores empurrando outros para chegar perto do palco, o centro da agitação.
     Agradeci aos convites para subir ao palco. Discursos são irrelevantes. aquele monte de almas com mentes parecidas era a mensagem. Olhe lá em cima. Alguém num pára-quedas coloridíssimo ia descendo, descendo, descendo até que aterrissou no centro do gramado.      A maioria da multidão foi sensível o suficiente para ignorar a gritaria no palco. Jerry Rubin havia apanhado o microfone e estava passando uma reprimenda em todos os presentes, porque, enquanto eles estavam ali curtindo, se divertindo, três ativistas políticos de Berkeley estavam trancados na cadeia por atirarem pedras.
     — Ligue-se, sintonize-se, assuma o comando - gritou ele.
     Fui empurrado para o palco pelos promotores e fiquei espremido entre dois belicosos motoqueiros que defendiam seus respectivos espaços. As pessoas brigavam pelo microfone. Fui empurrado para o pódio. Berrei minhas seis palavras.
     — Ligue-se, sintonize-se, libere-se.
     E pulei para fora do palco”.
     Jerry Rubin, dirigente dos hippies, orou sobre o Vietnã e Allen Ginsberg e Gary Snyder entoaram o hino Krishna:
     Hare, Krishna, Hare Krishna, Krishna, Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama, Rama, Hare, Hare
     The Grateful Dead, Jefferson Airplane e Dizzy Gillespie, atuaram e muitos outros.
     Eram esperadas 50 mil pessoas vindas de todas as partes da América e da Europa. O sol é da cor de Orange Sunshine, o ácido lisérgico preferido por todos. E todos estavam lá. Ria-se, dançava-se.. “Éramos todos amantes”, lembraria Ric Levine, sentado no mesmo local do Golden Gate Park onde tudo aconteceu.
     Seria o último evento em Hashbury. Naquele mesmo dia, a placa da Loja Psicodélica foi queimada e enterrada, simbolizando “a morte dos hippies”. O resto, o que o mundo conheceu e ouviu falar, foi lenda, eco, migalhas de um fenômeno épico. Nada tinha havido antes que se parecesse com aquilo. E nada houve depois. Naquele dia também uma grande borboleta psicodélica que tinha nascido em Hashbury. Pela terra, pelos oceanos, voaria para outros continentes. E onde a borboleta psicodélica pousou, seu espírito se impregnou na consciência de milhões de jovens. E era tão forte o seu poder, que trazia a força viva de uma revolução. Uma revolução sem armas, pacífica. Foi ela quem dividiu a consciência do país, quando os cadáveres começaram a chegar em massa do Vietnã e os horrores da guerra entraram pelos lares da América.
     Profetizou-se que cem mil crianças da geração flórida reuniriam-se na grama para celebrar o primeiro grande festival de rock ao ar livre em junho para o Festival de Monterey Pop. Como sempre, a música acompanhava o movimento: em maio, o cantor Scott McKenzie lançava uma canção composta por John Phillips, dos The Mamas & The Papas, San Francisco (Wear Some Flowers in Your Hair). Além de fazer propaganda do Verão do Amor, a letra recomendava a quem viesse a San Francisco que não se esquecesse de colocar flores nos cabelos. E fazia, a certa altura, um verdadeiro manifesto hippie:
                 All across the nation / Such a strange vibration
                People in motion / There’s a whole generation
          With a new explanation...

     Ouvida ainda hoje - com freqüência e nostalgia - a canção se tornou o hino do Ano da Flor. Encerrou a carreira de Scott McKenzie, cuja imagem ficou para sempre associada a San Francisco. Ou, na observação mordaz da enciclopedista do rock, Lilian Roxon:
     — Muitas pessoas foram a San Francisco com flores os cabelos e isso não lhes fez nenhum bem. Elas ainda não perdoaram Scott McKenzie.
   Na verdade, os cem mil jovens não chegaram a San Francisco no mesmo dia, mas estiveram lá, no decorrer daquele verão, o que criou um grave problema para a municipalidade. Bem dentro do espírito da época (determinado pela superabundância econômica), os hippies exigiram das autoridades casa, comida e assistência médica. Mas San Francisco, a mais esnobe das cidades americanas, só estava interessada em turistas ricos. Tudo acabou-se acertando, quando a comissão de parques declarou várias áreas da região de Haight-Ashbury liberadas para os sacos-de-dormir. E, bem ou mal, San Francisco acabaria ganhando os seus turistas, com a súbita fama nacional - e internacional - como capital mundial dos hippies. Diante desta invasão, os hippies autênticos fugiram para as comunas rurais e Haight-Ashbury ficou entregue aos hippies-de-butique (que faziam um belo comércio) e a bolsões de jovens extraviados e drogados que acabariam expulsos pela alta de aluguéis decorrente da supervalorização da área. San Francisco refletiu, de maneira mais dramática, o que estava acontecendo - com a juventude em quase todas as cidades do mundo industrializado. Em janeiro de 1968, um ano depois da grande “reunião das tribos” convocada para o parque Golden Gate, os próprios moradores do Haight realizaram o enterro simbólico do hippie, “filho dedicado da mídia”. O hippismo se comercializara; o bairro estava infestado de traficantes, motoqueiros violentos, tomadores de anfetamina. Embora só agora estivesse começando a ser exportado para o resto do mundo, em San Francisco o sonho havia acabado.
     Atenta em registrar os fenômenos de mudança no comportamento humano, a revista Timededicou sua reportagem de capa de 7 de julho de 1967 sobre Os hippies/A Filosofia de uma Subcultura. É curioso recordar a chamada da matéria, trinta anos depois:
     Um sociólogo os chama de ‘proletariado freudiano’. Outro observador os vê como ‘expatriados vivendo em nossas praias, mas além de nossa sociedade’. O historiador Arnold Toynbee os descreve como ‘um sinal vermelho para o American way of life’. Para o bispo James Pike, da Califórnia, eles evocam os primeiros cristãos: ‘Há algo no temperamento e na qualidade destas pessoas, uma suavidade, uma calma, um interesse - algo bom’. Para seus pais profundamente preocupados por todo o país, eles mais parecem párias sociais perigosamente iludidos, candidatos a uma boa surra e a um curso intensivo de moral e civismo - se apenas voltassem para casa para receber as duas coisas. Qualquer que seja o seu significado ou o seu objetivo, os hippies emergiram no cenário norte-americano nos últimos 18 meses como uma subcultura totalmente nova, uma bizarra permutação do ethos da classe média americana a partir do qual evoluíram.
     Mais adiante, a reportagem do Time toca no cerne da questão, a “filosofia” hippie:
     Um senso crescente de utopismo domina a filosofia hippie. Ela tem pouco em comum com a autoritária cidade-estado descrita na República de Platão, ou com a Utopia de Sir Thomas More, que era uma ativa comunidade agrícola onde todo mundo trabalhava seis horas por dia. A inspiração hippie vem da Arcádia: é pastoral e primordial, enfatizando a unidade com a natureza física e psíquica. Northrop Frye, da Universidade de Toronto, professor de inglês e discípulo do filósofo das comunicações Marshall McLuhan, vê os hippies como herdeiros do ‘proscrito e furtivo ideal social conhecido como o País da Cocanha, uma terra de conto de fadas em que todos os desejos podem ser instantaneamente gratificados.

 


Quem matou o poder da flor?
(Mário Pacheco)

 

O pioneiro da fórmula festival-de-música-e-curtição foi o Festival Internacional de Música Pop em Monterey California, realizado em 16 a 18 de julho de 1967, que teve um caráter antibélico e beneficente. Todos os músicos tocaram de graça.

Programa: The Association, Paupers, Johnny Rivers, Animals, Simon and Garfunkel, Janis Joplin, Eletric Flag, Paul Butterfield Blues Band, Blues Project, Canned Heat, Country Joe and The Fish, Hugh Masekela, Steve Miller Band, Al Kooper, Quicksilver Messenger Service, Bufallo Springfield, Jimi Hendrix Experience, The Who, Grateful Dead, The Mamas & The Papas, Otis Redding, Moby Grape, Laura Nyro, Jefferson Airplane, Byrds, Booker T. and the MGs e Ravi Shankar.

Posteriormente comparados com os do fim da década, Monterey Pop foi quase ridículo: um público de 50 mil pessoas, num local não tão vasto assim, assistindo aos shows sentados em cadeirinhas desmontáveis e bancos. Mas, considerando as presenças em palco e o espírito reinante no ar - as “boas vibrações” como se dizia - Monterey foi um marco, a cristalização do grande “desbunde” das flores, som, paz & amor. Inspirou canções Monterey por Eric Burdon e seu sucesso fez com que os festivais se alastrassem pelo mundo.

San Francisco não estava só. Uma música similar ressoava ao largo de toda a costa ocidental. Disso se dá conta a opinião pública ao realizar-se em Monterey o mais importante festival de 1967. Sam Silver resume-o deste modo no East Village Other: A música não era tudo no festival. Os acontecimentos musicais eram como o órgão de expressão da cultura hippie na costa ocidental. O essencial do festival era o fato dos seus participantes serem membros de cultura turned on, enquanto que parte do público não tinha estado até aí, exposto a qualquer influência. De qualquer modo, cabe assinalar que o festival tinha sido profusamente anunciado pelas mais populares emissoras de rock.

Todavia, deve considerar-se muito mais importe o fato de a música da costa ocidental se ter apresentado de forma totalmente politizada. Trata-se, efetivamente de uma espécie de festival antibélico. O conjunto Country Joe and the Fish cantou:

     Don’t drop your H-Bomb on me,You can drop it right on yourself

Por seu lado, o Grateful Dead que geralmente dava mais importância às experiências musicais do que aos textos, cantou o seguinte coro na Viola Lee Blues:

Some got six months, some got one solid / Some got one solid year, and beat it

Acudiram ao festival 50.000 visitantes que tinham trazido na sua maioria, sacos de dormir e pernoitaram no campo de futebol que fica próximo. Nas tabacarias e quiosques podia-se obter tudo quando produziam os editores underground norte-americanos.

Nesse tímido mas revolucionário festival atuaram na sexta-feira à noite, entre outros, The Mamas & The Papas, Simon and Garfunkel e Eric Burdon com The New Animals. O sábado foi dedicado ao San Francisco Sound, tendo atuado da parte da tarde Country Joe and the Fish, Canned Heat,  Quicksilver Messenger Service, Big Brother and the Holding Company, bem assim como Eletric Flag, Moby Grape e Otis Readding. No dia seguinte atuaram Ravi Shankar e os Who, Blues Project, Grateful Dead, Jimi Hendrix Experience e os Byrds.

O festival tinha sido organizado com fins beneficentes, contando com a colaboração desinteressada dos artistas, de modo que se pode obter uma razoável quantia que foi posta, à disposição das organizações negras com a finalidade de procurar ajudar a desenvolver os seus projetos educativos.

A música era o órgão de expressão da nova cultura. Esta cultura declara-se definitivamente partidária do amor e oposto à guerra.

Embora os Beatles tivessem  recusados a participar do festival, Paul McCartney foi listado como um dos conselheiros e ele achou que não haveria festival sem Jimi Hendrix e John Phillips (dos The Mamas & The Papas), outro organizador do Festival de Monterey, exclamou: Jimi Hendrix! Ao que Paul completou: “um maluco que toca guitarra com os dentes” ele representará a Inglaterra convenientemente, com o The Who. Hesitante, com medo de ser rejeitado e excluído - porque era negro ou porque era “maluco”- Jimi embarcou de volta a sua terra natal.

     Hendrix explora novos mundos: sua mente, por exemplo. Através de Cathy Etchingham, sua namorada que tinha-lhe apresentado ao ácido lisérgico, ao haxixe e à mescalina - as chamadas “drogas de expansão sensorial”, ou “psicodélicas”. Jimi Hendrix trazia dentro de si uma inquietação, uma turbulência, que a estrada não conseguiria aplacar. Com as drogas, ele se lançava a novos caminhos, à procura de uma resposta, de uma liberdade que sempre parecia estar lhe fugindo.

Sobre sua língua, pedaços de sabão... sua saliva com gosto de papel-alumínio.. uma bolha de apreensão se formando no estômago. Agora, ele estava acorrentado. A contagem regressiva das entranhas pra circulação, e desta pro cérebro, rumo à decolagem. O que é pra acontecer?

Suas pernas parecem gelatina e tudo estava retumbando, não dava para correr. Bateu. Em câmera lenta, Brian Jones, todo de branco que veio especialmente de Londres para apresentar Jimi Hendrix aos seus próprios conterrâneos americanos, quando o viu nos bastidores, subiu correndo ao palco e apresentou-o. Abençoado e crismado, estava dada a senha da imortalidade.

Foi em Monterey que Hendrix colocou fogo em sua guitarra depois de Pete Townshend reduzir a sua em lascas. O filme que foi feito disto, assegurou um lugar na mitologia contemporânea para ele e Janis, mas outras tomadas permaneceram inéditas por 19 anos, assim como outras músicas que o Experience executou.

No disco Jimi Plays Monterey, apresenta nove faixas, todas elas obrigatórias em qualquer antologia do guitarrista, mas o que conta é que Jimi Hendrix, em 1967, estava no auge de sua forma e tinha Mitch e Noel na cozinha, o primeiro e único Experience. Jimi no início detestou o nome. Achou careta e Chas Chandler, seu empresário teve de convencê-lo de que no futuro ia mudar de significado e que viria a ser o melhor grupo que ele formaria em sua carreira.

Um cuidado especial foi dedicado ao visual do trio, com Jimi, Noel e Mitch rivalizando-se no uso de vestimentas cada vez mais ousadas, uniformes antigos de hussardos e granadeiros, com franjas, passamanes, borlas e galões dourados, coletes marroquinos, calças de veludo ou de cetim, tudo em cores vivas, cravejado de pedrarias, as cabeleiras enormes, com o afro eriçado coroando a cabeça do guitarrista.

 Hendrix atingia o topo e, por isso, experimentava; o Experience ofuscava os outros participantes do Festival com sua atuação e guarda-roupas arrasadores.

Ouvindo os lançamentos da época é fácil entender o sobressalto do público com a atuação do Jimi Hendrix Experience. O trio ia contra tudo o que se produzia, construindo novas idéias a partir da demolição total dos valores da época, aproveitando os alicerces dos blues. A guitarra de Hendrix gemia e gritava como nunca se tinha ouvido antes.

Trinta anos depois, sua versão para Wild Thing é atual, com uma leitura vibrante para uma música aparentemente boboca que tinha sido gravada pelo “pior conjunto de rock que tocou na Terra: The Troggs”. Ao tocá-la, Jimi criou um efeito cênico que faz parte dos Grandes Fhashes da Galeria Roqueira: literalmente incendiou a guitarra. A explosão da guitarra e do baixo, seguida por uma furiosa bateria foi uma das linhas mestras para a inspiração do heavy-metal que, no entanto por mais de décadas, não buscou uma evolução musical, trocando-a por um aumento de decibéis pura e distorcidamente.

Killing Floor, com a guitarra de Hendrix disputando o primeiro plano com ela própria. Não há erro: provavelmente nunca Jimi Hendrix extraiu de sua guitarra simplesmente um acorde ou uma nota; ele era capaz de fazer a base e o solo ao mesmo tempo, como precursores de outro mágico, Stanley Jordan, e antecessor de outro rei do blues, Robert Johnson. A canção é forte e o ritmo, puxado ao blues com andamento pouco modificado, cai como luva para a interpretação potente. Foxy Lady vem em seguida e merece uma interpretação mais sensual do cantor e também da guitarra.

No clássico “dylanesco” Like a Rolling Stone ele tem a platéia - e o ouvinte do disco - completamente sob seu domínio, como um hipnotizador. E sua versão para a belíssima canção de Bob Dylan parece simples, mas ele consegue demonstrar toda a sua técnica endiabrada em inversões nas mudanças de acordes. Mas é em Rock me Baby que ele realmente assalta ao público, terminando o lado com seu primeiro grande sucesso, Hey Joe.

Na sequência, mais energia com Can You See me, The Wind Cries Mary, Purple Haze e Wild Thing.

Das nove gravações incluídas neste disco três são absolutamente inéditas como lembra Paul Diamond na contracapa: Foxy Lady, Wind Cries Mary e Purple Haze. Duas outras são encontradas em duas coletâneas e as outras são velhas conhecidas - mas nada se compara ao prazer de ouvir o show completo. Paul Diamond relata as fases de purificação e masterização que a fita original, registrada num gravador de oito canais, passou até chegar ao disco. A qualidade de som - ainda que os velhos problemas de prensagem dos discos brasileiros, que ressaltam os graves e anulam os agudos - é impressionante. Mas é o mínimo que mereciam Jimi Hendrix e sua guitarra Fender Stratocaster.

O Experience, formado em setembro de 1966, parecia milênios à frente de todo mundo em Monterey. E Jimi Hendrix agradeceu à meia hora de aplausos brandindo uma guitarra em chamas sobre a cabeça. Imediatamente, Bill Graham contratou o Experience para tocar com o Jefferson Airplane, no Fillmore West. US$ 2 mil para cada componente do grupo e mais um relógio antigo de presente.

Ao lado do sucesso de astros como Otis Redding e os The Mamas & The Papas, o Big Brother and the Holding Company - devido, obviamente, ao desempenho de Janis - daria seu recado com brilho surpreendente, se impondo como a mais nova força criativa do cenário do rock, juntamente com o outro novato, Jimi Hendrix.

Era a tarde do último dia do festival e 50.000 jovens coloridos, enfeitados de flores, curtiam o sol, o amor e a música. Emocionada, Janis, vestida de lamê, sapatos de salto fino, dourados, subiu ao palco, os cabelos soltos ondulados ao vento. Janis enrijeceu-se, levantando-se nos pés para com um salto agarrar o microfone e sua voz saiu poderosa, cortante, selvagem, gemeu, gritou, girou os quadris, sacudiu a cabeça e incendiou o ar.

Janis cantou com tanto entusiasmo sua música favorita, Eu Quero Que Tudo Expluda, que tirou a roupa e acabou presa, nascia um novo mito, rebelde e solitário. Janis, a primeira mulher a ameaçar a supremacia masculina do rock e o reinado de Grace Slick.

Poucos tinham uma expectativa especial em relação ao Big Brother, relativamente desconhecido fora de San Francisco. Eles se apresentaram depois do The Who e de Jimi Hendrix. E conseguiram.

A partir daí os caminhos estavam abertos para Janis. O Big Brother deixou Monterey com um excelente contrato de gravação com a Columbia Records “descobertos” pelo produtor Clive Davis, - e o grupo tentou impedir o lançamento do álbum Big Brother and the Holding Company, lançado senão na ocasião do festival com a certeza de que era um ótimo negócio e o disco vendeu uma quantidade fantástica de cópias apesar da evolução do grupo apresentada no palco de Monterey. Na Columbia, o Big Brother registrou o vital Cheap Thrills cujo título foi encurtado da frase Sex, Dope and Cheap Thrills, que lançado em setembro do ano seguinte, vendeu de imediato mais de um milhão de unidades. Na frente da capa teríamos uma caricatura de Janis, atrás aquela história em quadrinhos conhecida por nós e que transformou-se na capa frontal que nós conhecemos hoje. Mas a Columbia vetou a caricatura de Janis, o que mereceu uma gozação do próprio cartunista: “Eles disseram que a caricatura era muito barata (cheap). Mas o disco se chama Cheap Thrills, é ou não é?”. Os desenhos do papa dos comix, Robert Crumb, amigo de Janis, refletiam bem o tom underground. Na hora de receber o cachê de 600 dólares, Crumb recusou. “Fiz isso só para chutar o traseiro da indústria fonográfica”. “Esses capitalistas não entendem que você está pouco ligando pro dinheiro deles”. Ao lado de clássicos como Ball and Chain, tradicional “bluezaço” de Mama Thornton com Janis deixando todos os queixos caídos (no documentário Janis produzido por F. R. exibe Ball and Chain, filmada em Monterey e inclui a cena em quem Mamma Cass, aprecia boquiaberta a performance de Janis) e que consagrara a banda no festival, no disco - a versão de Ball and Chain é a única gravada e ao vivo, e outras faixas que lembrem o sabor live são truques de estúdio - trazia também o revolucionário arranjo eletrificado para o Summertime, uma das gemas da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin, cantada por Janis desde os 17 anos e que nunca foi tão difundida como na voz de Janis Joplin. Em contrapartida, ela aproveita a canção como pista de decolagem para seus rasgantes vocais. Summertime, uma renovada angústia, uma interpretação que se igualara às criações dos maiores cantores negros de blues.

Claro que, a cena hippie foi explorada prontamente pelas mídias e comercializada através de infiltradores capitalistas. A revista Melody Maker que mais cedo em 1967 tinha publicado um jogo de avaliação “Teste Seu Poder da Flor” cuja pontuações de topo eram agraciadas com a frase “Paul McCartney está orgulhoso de você”), estava agora evocando manchetes como “Quem matou o Poder da Flor?” .

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