História Viva: Entrevista Lucas Figueiredo

Reportagem
  
edição 70 - Agosto 2009
Entrevista com Lucas Figueiredo
"Estamos entre a ditadura e a democracia" O que já veio à tona sobre as práticas da ditadura é perfumaria, diz jornalista que teve acesso à versão dos militares sobre a morte e tortura de militantes de esquerda
 
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O autor obteve uma das 15 edições artesanais, guardadas sob muitas chaves, do Orvil (“livro” ao contrário), um entre os muitos documentos que o Brasil não conhece sobre sua própria história

Em seu novo livro, Olho por olho, o jornalista Lucas Figueiredo trata da competição entre apoiadores e opositores da ditadura militar pelo triunfo de suas versões da história. A da esquerda ficou gravada no volume Brasil: nunca mais, projeto liderado por D. Paulo Evaristo Arns. A versão escrita dos militares, porém, custou a aparecer. Chama-se Orvil (a palavra “livro” escrita ao contrário) e tem apenas 15 cópias cuidadosamente escondidas. Figueiredo teve acesso a uma delas e escreveu uma obra abrangente sobre um período pouco estudado: os anos imediatamente posteriores à anistia. Abaixo, trechos da entrevista que ele concedeu a História Viva.

História Viva – A versão dos militares sobre as práticas da ditadura tem algum fundamento?
Lucas Figueiredo – O projeto Orvil durou três anos, de 1985 a 1988. Resultou em um livro, nunca publicado, concebido para rebater o volume Brasil: nunca mais, fruto da pesquisa das forças que lutaram contra a ditadura. De fato, há na versão militar acusações esdrúxulas, como a de que o escritor Antônio Callado era um agente de Cuba. Ou que o assassinato do jornalista Vladimir Herzog foi suicídio. Em geral, há uma leitura enviesada da história.

HV – Nada se salva no Orvil?
Figueiredo – O Exército põe o dedo numa ferida que boa parte da esquerda sempre jogou debaixo do tapete: todos os grupos que participaram da luta armada queriam derrubar a ditadura militar para instalar uma ditadura de viés comunista ou socialista. Ninguém pensava em reconduzir ao poder o presidente deposto, João Goulart. Mas a esquerda acabou criando a lenda de que todos os grupos buscavam a democracia. Outra questão é o envolvimento – pequeno, mas verdadeiro – de guerrilheiros de esquerda com o terrorismo, ou seja, com ações contra a população, e não apenas o inimigo militar. Por fim, estão relatados casos em que militantes de esquerda foram assassinados por seus próprios companheiros, como Márcio Leite de Toledo e Carlos Alberto Maciel Cardoso, ambos da ALN (Aliança Libertadora Nacional), e Francisco Jacques Moreira de Alvarenga, da RAN (Resistência Armada Nacional). O justiçamento de companheiros de luta, praticado por alguns grupos, ainda hoje é um tabu

 
 
 
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Em 1970, um ano antes da matança no Araguaia, soldados treinam na região./Chamados por militares de “artistas forjados nos bares de Ipanema”, Walmor Chagas, Cacilda Becker, Odete Lara, Paulo Autran e Tônia Carrero (da esq. Para a dir.)em ato contra a censura em 1968.


HV
– Ao ler a cópia de Orvil, você muitas vezes colocou em dúvida as versões da esquerda?
FigueiredoO Brasil: Nunca Mais tem o mérito de ter tabulado os crimes da ditadura utilizando documentos do próprio regime. Esse era o seu propósito, cumprido com louvor. Obviamente, porém, os pecados do regime militar são apenas um pedaço da história. Faltava a versão do outro lado. Mesmo que contenha inverdades e manipulações, o Orvil é um documento importantíssimo. As Forças Armadas nunca quiseram dar a sua versão, sobretudo para a luta armada. O Exército chegou a mobilizar 5 mil homens para combater a guerrilha do Araguaia, uma das maiores campanhas militares da história do Brasil. O Orvil trata do Araguaia e de outras dezenas de episódios.

HV – A partir de que fontes e com quais estratagemas foi escrito o Brasil: nunca mais?
Figueiredo – A estratégia foi genial. Um grupo de advogados e religiosos queria preparar um relatório sobre a tortura e assassinato de militantes de esquerda, mas seu conteúdo não poderia ser questionado e tratado como parcial. Então os responsáveis, sob a liderança do então cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, tiveram a ideia de usar documentos das próprias Forças Armadas, ou seja, os processos do Superior Tribunal Militar. Neles havia depoimentos de réus que, mesmo presos e sob a tutela de um Estado ditatorial, ousaram denunciar casos de tortura e morte de militantes. Para ter acesso a isso, advogados tiraram, legalmente, cada um dos mais de 700 processos do STM e fizeram cópias. Isso durou seis anos, no mais absoluto sigilo, custou o equivalente hoje a US$ 600 mil, doados por uma entidade religiosa estrangeira.

HV – E o Orvil? Foi feito a partir de que fontes?
Figueiredo – A mando do general Leônidas Pires Gonçalves, o projeto foi desenvolvido pelo Centro de Informações do Exército (CIE). Cerca de uma dúzia de oficiais trabalhou em segredo no Orvil durante três anos. Como o livro não foi publicado, entrou na lista dos documentos sigilosos das Forças Armadas. Mas algum militar acabou contrabandeando uma cópia para fora do QG do Exército. Nos 19 anos seguintes, apenas 15 cópias artesanais do Orvil foram feitas e passaram a circular em um grupo fechado de militares e civis de extrema direita.

 
 
 
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Olho por olho, livro que revela a guerra secreta, depois da lei da anistia, entre Forças Armadas e opositores da ditadura. Os últimos denunciaram a tortura e outros crimes e conseguiram influenciar a sociedade a partir da publicação de Brasil: nunca mais


HV
– Na sua avaliação, o livro Brasil nunca mais serve de documento histórico ou está impregnado do caráter militante e propagandista? E o Orvil, vai além da contrapropaganda?
Figueiredo – Ambos são documentos valiosíssimos. Todas as versões do regime militar são bem-vindas para os estudiosos, e cabe a eles dissecá-las.

HV – Qual é o atual balanço dos mortos nos conflitos envolvendo a ditadura?
Figueiredo – Não há números exatos. Entre 350 e 400 militantes de esquerda foram mortos no regime militar. Menos conhecido ainda é o número de vítimas de ações da esquerda, sobretudo pela manipulação dos militares, que misturaram pessoas mortas por guerrilheiros com pessoas mortas pelas próprias forças da repressão. Podemos calcular em menos de cem o número de pessoas mortas nas ações da esquerda.

HV – O Orvil revela crimes dos militares que o Brasil não conhecia?
Figueiredo – Sim, os redatores do Orvil, não sabemos por que razão, acabaram dando uma versão para os últimos momentos de 24 militantes mortos e/ou desaparecidos. Em alguns casos, como os de guerrilheiros do Araguaia – Antônio Carlos Monteiro Teixeira, André Grabois, José Gualberto Calatrone e outros –, as descrições contêm detalhes, como o dia, o horário, o local e a unidade militar responsável pela morte. O Exército passou anos negando que tivesse informações sobre essas pessoas. Agora se sabe que não contou a verdade.

HV – Falta muito para a história da ditadura ser completamente desvendada?
Figueiredo – O que foi feito com os 135 desaparecidos políticos? Quem deu a ordem para a destruição de seus corpos? Quem eram os informantes da repressão? Essas respostas só virão a público quando surgir um presidente da República com coragem de abrir os arquivos secretos das Forças Armadas. A esquerda – leia-se, PT – e a social-democracia – leia-se PSDB – não tiveram coragem de enfrentar esse desgaste. O que já veio à tona é perfumaria. Os políticos ainda têm medo dos militares, o que demonstra que iniciamos a transição democrática há 24 anos e não a concluímos. Estamos no meio do caminho, entre a ditadura e a democracia plena.

 

PARA SABER MAIS

Olho por olho – Os livros secretos da ditadura.
Lucas Figueiredo, Record, 2009
Brasil: nunca mais. Paulo Evaristo Arns (org.), Vozes, 2003

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