O
Múltiplo Caetano
(Affonso Romano de Sant’anna*)
Letrista
inventivo, compositor extraordinário, cantor que redescobre
continuamente a própria voz, Caetano Veloso há cerca
de cinco anos comunica à música popular brasileira
a sua perplexidade diante do mundo-espetáculo onde é
ator-autor-espectador. Seu último disco “Araçá-Azul”,
talvez não tenha o apelo popular dos anteriores, mas reafirma,
de maneira clara, uma proposta de pesquisa que extrai do lúdico
toda a sua força. Este ensaio de ensaio pretende fixar
alguns pontos para uma compreensão dessa obra que há
muito extrapolou os limites da música popular brasileira
para se inter-relacionar com outros setores da vida artística
e do pensamento brasileiros.
A título de introdução
pode-se falar da existência de dois Caetanos, embora dele
se pudesse dizer como Mário de Andrade: “Sou trezentos”.
O primeiro Caetano personifica-se no disco “Gal e Caetano”
(1967). Seu lirismo segue uma linha convencional de pesquisa.
Ser lírico era a forma de se sentir poeta. Frases bem comportadas,
rimas comuns, imagens falando de vento, janela, manhã,
mar, lua, madrugada, namorada, adeus, segredo, dor, amor, estrada.
Existe um propósito literário
nas composições: “Vamos andando na estrada
/ que vai dar no avarandado / do amanhecer”. Composições
como Minha Senhora reafirmam seu desejo de inserção
dentro de uma tradição poética que ressoa
o lirismo galaico-português. Como intérprete, sua
voz simples e direta realiza a timidez estudada de sonoridade
da bossa nova e de João Gilberto. Os textos querem ser
poéticos, e o cantor é manso e intimista.
O segundo Caetano aflora no trânsito
Rio-São Paulo. Urbanizando e industrializando seu lirismo,
participa do espetáculo tragicômico e televisional
da sociedade de consumo. É a fase do tropicalismo. Parte
para a antipoesia, para a antimúsica e, em vez de versos,
compõe frases prosaicas. Atualiza-se teoricamente através
do tropicalismo e de seu contato com os poetas concretistas Augusto
e Haroldo de Campos.
Descobre a paródia como forma
de expressão e espraia suas origens baianas sobre o espanhol
e o inglês, descobrindo novos códigos lingüístico-musicais
de composição. Este segundo Caetano ainda mais de
dilata graças ao seu recolhimento em Londres. Redescobre
a própria língua no estrangeiro descobrindo John
Lennon (“In his Own Write”), que já havia descoberto
Joyce do “Finnegans Wake”.
A distância entre o primeiro
e o segundo Caetano tem-se pela comparação simples
do disco de 1967 e este “Araçá-Azul”,
de 1973. Não é necessário
tomar os discos propriamente. Comparem-se as capas. No primeiro,
o rapaz bem comportado, tranqüilo, fotografado apenas de
rosto em discreto sorriso. No último, desnudado, descabelado,
fragmentado em várias poses, assumindo o feio de seu corpo
e o emasculado de sua voz.
Dizer que Caetano passou por duas
fases é, obviamente, uma afirmação arbitrária
e não tem outro sentido além de possibilitar a melhor
manipulação do assunto. Mais do que dois, Caetano
é múltiplo e tão diverso que alguns o confundem
com um compositor sem estilo. Sem estilo porque se exercita em
praticamente todos os tipos de música popular, com investidas
na música erudita e de vanguarda. Temos aí o fado
(Os Argonautas), a bossa nova (Saudosismo),
a marcha (Qual é, baiana?), frevo (Atrás
do trio elétrico), samba (Barato Modesto),
rumba (Soy loco por ti América), isto para não
falar de suas interpretações de tango (Cambalache),
bolero (Tu me acostumbraste), rock’n’roll
(Eu quero essa mulher), toadas, canções,
iê-iê-iês, sambas de partido alto etc.
Apesar dessa pluralidade de manifestações,
é possível extrair uma constante de sua obra, e
é aí que queremos chegar, mostrando que há
um processo de composição, que passa pela construção
interna das palavras na associação de uma palavra
com outra, na montagem dos versos e no relacionamento das composições
entre si. Chamamos a essa técnica de justaposição
e ela ocorre tanto na construção da frase musical
quanto no texto propriamente dito.
Técnicas
diversas de justaposição
a)
Justaposição de sons-sílabas. Do jogo natural
e simples de sons que utilizou em Irene (ir, ri, rir, Irene) e
do jogo de rimas internas e externas das primeiras composições,
em Alfomega passa para o acasalamento de vocábulos,
buscando um som-sentido não dicionarizado: “O analfomegabetismo/somatopsicopneumático”.
Este processo reafirma-se no último disco, na composição
De palavra em palavra: “amaranilanilanilinarama”.
E parece ser de palavra em palavra que ele vai soltando suas frases
procurando esse efeito de estranhamento que produziu fartamente
nos artigos que de Londres enviava ao Pasquim: Bravil, anda com
ferro e gorgulho a terra onde Maciste, criança, enfrentou
Lúcio Godar: não verás nenhum Paris como
este”. Essa técnica, vinda certamente dos livros
de John Lennon, que veio de Joyce, assim como Caetano passou pelos
concretistas que deram no mesmo irlandês.
b) Justaposição de
palavras. Repete-se o procedimento na seqüenciação
das palavras, que não seguem tratamento sintático
convencional. Seguem o processo de associação de
idéias que os lingüistas (Spitzer) chamam de enumeração
caótica e os futuristas de palavras em liberdade. Exemplo:
“em dentes pernas bandeira bomba e Brigitte Bardot”.
Essa técnica de fragmentação do texto tem
um efeito da simultaneidade cubista para aprender as diversas
faces de uma imagem: “o sol se reparte em crimes / espaçonaves
guerrilhas / em cardinales bonitas / eu vou”.
c) Justaposição de
versos-frases. Saindo desse acoplamento de sílabas e palavras,
em busca de efeitos morfológicos e sintáticos novos,
o efeito se repete agora na montagem das frases, umas em relação
às outras. Tome-se Épico, composição
do último disco, ou o fado Os Argonautas: “o
barco / o automóvel brilhante / o trilho solto / o barulho
/ do meu dente em tua veia / o sangue o charco / o barulho lento
/ o porto silêncio”.
d) Justaposição de
estrofes-ritmos. Caetano monta algumas de suas composições
com os materiais mais heterogêneos. Veja-se Sugar Cane
Fields Forever. O título em inglês remetendo
aos Beatles, mas o eixo da música é primitivo-folclórico
ao sabor afro-baiano. Em torno da voz selvagem do solista compõe-se
o samba tradicional, a bossa nova, sons de iê-iê-iê
recitativos e efeitos de vanguarda. Uma colagem remetendo a espaços
e tempos musicais os mais diversos.
Essa composição funciona
como escala reduzida de sua técnica, tanto no elemento
minimal do vocábulo quanto no conjunto da obra. O texto
vai do folclórico onomatopaico aos efeitos concretistas,
a música vai do candomblé aos sons eletrônicos.
Estamos diante de uma antimúsica, de uma antiletra. O autor
articula materiais considerados como “objet trouvé”.
E entre o culto e o primitivo o artista faz sua bricolage
e) Justaposição de
composições heterogêneas. A justaposição
heterogênea de sílabas, palavras, versos, estrofe
completa-se com a visão de conjunto dessa obra com sua
disparidade de ritmos: fado, rumba, tango, bolero, marcha, frevo,
samba-canção, bossa nova, iê-iê-iê,
folclore. Essa descontinuidade estilística, coerente dentro
da obra do autor, revela um Caetano continuamente descentrado
das convenções sociais-musicais. Sua obra se apresenta
como um constante estranhamento – para usar um termo posto
em uso nos estudos de Teoria da Literatura pelos formalistas russos
do princípio do século. Estranhamento do nível
morfológico (construção de palavras), no
nível sintático (organização das palavras
na frase) e também em relação aos gêneros
e tipos tradicionais de composição. Estranhamento,
ou como querem outros lingüistas, um desvio da norma, e,
como quereriam os estruturalistas, um descentramento.
Descentramento
e paródia
Centrada é a composição
que obedece às normas sociais e artísticas. Por
exemplo: as primeiras composições do próprio
Caetano na linhagem da bossa nova. Elas têm um modelo, que
seguem com variações apenas aspectuais. Estruturalmente
são sempre a mesma composição. Assim como
todo samba estruturalmente é sempre o mesmo samba e todo
tango é o tango arquétipo.
Caetano, depois de fornido pela teoria tropicalista que ajudou
a incrementar, descobre a paródia como linguagem. Exemplifique-se
com os textos e canções de seus dois discos tropicalistas
de 1968 e composições como Mamãe Coragem,
Baby, Anunciação, Enquanto seu lobo não vem.
A paródia é uma linguagem que corta a linguagem
convencional, invertendo o significado de seus elementos. Ela
denuncia e faz falar aquilo que a linguagem normal oculta. Tirando
um texto de seu uso habitual e colocando-o em outro contexto faz-lhe
ressaltar o ridículo.
Foi assim que Oswald de Andrade
fez com os textos dos navegadores e viajantes, foi assim que os
modernistas trataram os textos dos escritores tradicionais. Oswald
de Andrade parodiando a Canção do Exílio,
de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmares / onde
gorgeia o mar”, e Murilo Mendes: “Minha terra tem
macieiras da Califórnia / onde cantam gaturanos de Veneza”.
A paródia retoma a linguagem comum de maneira assimétrica
e invertida denunciando ai a ideologia subjacente.
Não aceitando o centro da
linguagem comum, pela paródia o compositor intensifica
o processo de descentramento em relação à
verdade musical-ideológica da comunidade. E a paródia
em Caetano se dá sempre em dois níveis. Primeiro,
numa relação intertextual referindo-se, citando
e se apropriando de textos de outros autores. Em segundo lugar,
de uma maneira sonora, usando a linguagem musical que outros usam,
mas justamente para lhes dar uma nova usança. Pela paródia
executa o conselho de Ezra Pound: make it new, retoma
o repertório musical e literário e trata-o com intimidade,
produzindo uma nova relação textual-sonora e uma
nova significação.
Música
crítica
Caetano, se não cria, pelo
menos intensifica e caracteriza nitidamente na música popular
brasileira a figura do cantor-autor-crítico. Já
não se trata de dar vazão a sentimentos e emoções
dentro das normas musicais e literárias mais ou menos estabelecidas.
Trata-se de formular uma nova linguagem dentro da aparência
da linguagem usual. Por isto ele estabelece um diálogo
com elementos tanto da série musical quanto da série
literária.
Da série literária
ele extrai Fernando Pessoa, através da frase que tomou
ao Infante Dom Henrique: “Navegar é preciso, viver
não é preciso”; vai a Joaquim de Sousândrade,
poeta romântico brasileiro redescoberto pelos concretistas
e usa seu texto numa canção madrigalesca –
Gil Misterioso; já antes ele havia ido a Gregório
de Matos – poeta maldito baiano do século XVII na
canção Triste Bahia.
Com a série musical estabelece
um diálogo crítico ainda mis intenso. Em Baby
refere-se a Roberto Carlos e à Carolina de Chico
Buarque; João Gilberto é repetidamente citado e
homenageado – Saudosismo, Épico; Hermeto também
aparece em Épico, no som daquele aboio: “ê
Hermeto / smetak & musak & razão” fundindo
música e músico de vanguarda com o primitivo nordestino.
Seus últimos discos, desde
os produzidos a partir de Londres, revelam um aspecto também
insólito: Caetano dispôs-se a cantar os melhores
e mais marcantes momentos de nossa música. Mas cantar,
não como fazem os cantores de jazz, trazendo tudo sempre
para o mesmo estilo interpretativo. Cada música que retoma
é uma recriação e um novo descentramento.
Assim, o Asa-Branca de Luís Gonzaga difere não
só da interpretação do autor, como vai diferir
totalmente do Deus Dará, de Chico Buarque. É
como se cada música de cada cantor exige desse cantor sempre
um outro canto.
Caetano deu uma dimensão
nova à palavra intérprete. O intérprete ordinário
reduz todas as músicas ao mínimo múltiplo
de sempre esperada e prevista interpretação. A interpretação
de Caetano é crítica. Ele chega a co-autor devido
à maneira como reinventa as canções. Hoje,
em crítica literária, chama-se à interpretação
e à crítica do texto de leitura.
O crítico é aquele que lê o texto de modo
singular. Nesse sentido, Caetano está lendo, ou melhor,
cantando singularmente, como que pela primeira vez, Vicente Celestino,
Luís Gonzaga e Chico Buarque.
Já no seu primeiro LP dizia:
“Eu gosto muito de cantar. Mas jamais consegui gostar muito
de cantar as minhas composições. Um velho baião,
uma canção antiga, o último samba de um amigo,
isso é bom de cantar; uma música que eu mesmo tenha
inventado me parece informe pela proximidade e eu desconfio de
tudo o que escrevi”. A isto se poderia juntar aqueles versos
de Jorge Luís Borges: “Que outros se jactem das páginas
que escreveram; / a mim me orgulham as que tenho lido”.
O
jogo e a ironia
O jogo sem centro de Caetano não
exclui o contraditório nem privilegia uma determinada verdade.
Não cumpre um programa estético alheio. Estabelece
um jogo e não um ritual. O ritual tem princípio,
meio e fim determinados; o jogo é aberto, o resultado,
imprevisto. Daí o caráter sensivelmente irônico
de toda sua obra. Ironia, etimologicamente, significa: falar o
contrário do que se pensa, falar duplo e dúbio.
Uma fala onde a verdade não tem centro.
Daí que dessa ambigüidade
se alimenta a música de Caetano: alimenta-se do literário,
mas faz antiliteratura; absorve a música alheia; mas se
volta para a antimúsica; toma a linguagem comum e a transforma
em paródia. Não tem estilo. É concretista
e tropicalista, romântico e primitivo, piegas e racional.
A ironia sobrepairando. Ele não está apenas cantando
sua músicas, mas ressoando a música de sua geração
e do passado, deglutindo e recompondo. Restitui a palavra ao som
tirando-a dos limites da escrita (écriture) e dá
de graça à poesia brasileira uma saída, redescobrindo
a phoné onde o radicalismo só vê a visualidade
e o graphein.
Um autor radical ao não aceitar
radicalismos, que tem ousadia de fracassar onde outros mostram
a usura do sucesso. Liberdade quase total, quase se medo. Tome-se
esse “Araçá-Azul” cantado num tom triste
de blue. Aí a chave de toda a obra, do enigma, disco brinquedo,
brincadeira, mas nunca inconseqüente. As coisas ditas irônica
e dubiamente. Ele que já dissera “tendo o direito
ao avesso / botei todos os fracassos / na parada de sucesso”
agora confessa o lúdico de sua atividade. “Araçá-Azul”
que é brinquedo é também a forma enigmática
de cantar o medo: “araçá-azul fica sendo o
nome mais belo do medo”. Música como jogo e Fruto
lúdico: brinquedo.
*Minas Gerais (Suplemento
Literário) 28 abr. 1973.
Foto Arte A.C.Barbieri
A
MULHER É O POETA
Caetano Veloso entrevistado por Régis Bonvicino (São
Paulo, 5 dez. / 1979)
Régis - John Lennon
afirma na matéria Lennon Remembers da The Rolling Stone
Interviews, que suas Iyrics preferidas são as que "ficam
em pé" sem melodia, as que funcionam, em última
análise, como poemas no papel. Isso me lembra os trovadores
galego-portugueses. Desconhecemos suas melodias e conhecemos apenas
suas "Iyrics" que, mesmo sem som, funcionam à
maravilha como poemas no papel. Você toparia usar esse critério
em relação às suas letras? Quais as suas
preferidas? Por que? CONTINUA...