O Que é a Comunidade universitária?
Jorge Antunes
professor titular da UnB, compositor, autor da Sinfonia das Buzinas e da ópera Olga


    (artigo publicado no Jornal de Brasília de 19 de maio de 2008)

     Durante os primeiros meses de 2008, na UnB, em muitos discursos e declarações houve predominância de uma expressão: comunidade universitária. A partir deste final de maio a UnB ensaia um início de futura ebulição. A recente e vitoriosa luta dos estudantes da UnB colocou em pauta a discussão sobre os critérios e métodos para a escolha do próximo reitor. Entretanto, nada ficará esclarecido enquanto não se estabelecer o que é comunidade universitária.
     Imaginemos um cenário insólito. Em 2010 haverá eleições para presidente da República. Que tal mudarmos algumas regras? Por exemplo, imagine um senador propondo que o voto dos cidadãos brasileiros tenham pesos diferentes. Assim, o voto de um engenheiro seria equivalente aos votos de duzentos pedreiros; o voto de um médico seria equivalente aos votos de cem auxiliares de enfermagem.
     Desde 1996, graças a um lampejo de soberba e autoritarismo de Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro e Paulo Renato, a divisão de poder nos orgãos deliberativos da Universidade passou a dar valor maior ao professor, reduzindo a representação dos estudantes e dos funcionários. A comunidade universitária, desde então, passou a ser dividida entre os iluminados professores, com 70% de poder de decisão, e os opacos estudantes e funcionários, cada um com 15% de poder de escolha. O critério, por analogia, passou a ser adotado nas votações para escolha de reitores nas universidades.
     Foi assim que o reitor Timothy Mulholand foi eleito em 2005. Naquelas eleições o voto de um professor era equivalente aos votos de 96 estudantes. Essa impotência, essa humilhante desvalorização do poder de escolha dos estudantes, determinou pequena presença destes nas urnas.
     Situações semelhantes já foram vividas no Brasil. Em 1823, a Assembléia Constituinte estabeleceu que só poderiam ser eleitores de primeiro grau os que provassem ter uma renda mínima de 150 alqueires de farinha de mandioca. Era o voto censitário. Mulheres, escravos e pobres eram impedidos de votar.
     A Constituinte de 1892 reafirmou que as mulheres não poderiam votar. "- Não aceito a idéia manifestada por alguns ilustres membros do Congresso de estender o voto às mulheres. Essa proposta é imoral e anárquica. A mulher, pela sua superioridade de afetos, tem na vida doméstica o seu destino a realizar." Esse foi o trecho mais contundente do discurso do constituinte Muniz Freire. O representante do Ceará, Barbosa Lima, foi autor de outra frase lapidar: "- Sou contra o voto da mulher não pela questão do direito mas, sim, porque o voto feminino provocaria a dissolução da família brasileira!"
     Na Universidade de Brasília ainda existem professores que defendem essa absurda diferenciação entre os votos dos diferentes cidadãos da comunidade universitária, conforme suas condições: funcionário, estudante ou professor. Não existe professor universitário, na UnB, que posssua 150 alqueires de farinha de mandioca. Entretanto, várias múmias docentes dizem que o voto de um professor deve ser equivalente aos votos de 96 estudantes. Algumas múmias mais recauchutadas e solícitas fazem um abatimento no preço: defendem o voto paritário, admitindo que o voto de um professor possa ser equivalente aos votos de 12 estudantes. Os mestres e doutores arvoram-se em detentores de uma espécie de direito divino.
     A Universidade só existe em função do corpo discente, estrato que é permanente na vida da academia. O professor que ocupa o cargo de reitor deve fazê-lo por apenas 4 anos. O estudante passa 5 ou 6 anos de sua vida na universidade. O voto de um estudante ou de um funcionário é, acima de tudo, o voto de um cidadão.
     Somente a juventude é desinteressada e pura. Ela ainda não teve tempo de contaminar-se. Ela não se equivoca em suas escolhas. Portanto, o voto de um professor deve ter o mesmo valor do voto de um estudante e o mesmo valor do voto de um funcionário.
Enquanto nos corredores, nas salas de aula, nos anfiteatros e nas assembléias se discute a paridade e o voto universal, ninguém até agora ousou tentar definir a expressão “comunidade universitária”. Os dicionários estão aí. Eles definem comunidade como sendo qualquer grupo de pessoas, considerado como um todo em suas características específicas e individualizantes, que convivem numa região determinada, têm um mesmo governo, os mesmos interesses e objetivos e estão irmanadas por uma mesma herança cultural e histórica.
     Portanto, entendido o que vem a ser comunidade universitária, é preciso urgentemente estabelecer que todos os integrantes da comunidade devem ter direito de votar. Ou seja, devem ter direito a voto todos os cidadãos e todas as cidadãs que trabalham, estudam, pesquisam e ensinam na UnB, sejam eles efetivos, substitutos, do quadro ou terceirizados.


Uma nova estrutura política para a Universidade (Jorge Antunes)