ROGÉRIO DUPRAT: UM CRAQUE NO BANCO DE RESERVAS (1975)

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  Duprat: um craque no banco de reservas
   (José Marcio Penido*)

 

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   A nostalgia dá uma reprise de meio século de cultura. Amplia o ouvido da gente. A música é um aspecto do comportamento geral dos tripulantes da nave. Não vou brigar com quem gosta de Martinho da Vila, mas eu fico com o planeta.

   É triste mas é verdade. A paixão pelo novo costuma arrefecer com a idade. Como se o primeiro fio de cabelo branco nos obrigasse a encanecer nossa cabeça. Envelhecer é deixar gradativamente de gostar de novidade. Sossegar. Passar a peteca para a turma que está chegando e tirar o time de campo. O maestro Rogério Duprat, de 43 anos, cabeleira quase toda branca, encontra-se nesse momento, outubro de 1975, no centro do gramado, fazendo aquecimento.

   Na verdade, físico de atleta é uma coisa que garantidamente Duprat não tem. Magro, mirrado, de óculos. E um pouco surdo. Cavanhaque de pintor, cabeleira de músico, bigode de bandido, quatro olhos de doutor. Fala depressa, sem vacilar. Olhando a gente nos olhos.

   Nada severo, porém. Esse coroa tem um jeito muito moleque. Perto dele, quem às vezes se sente coroa é a gente. Perto do Duprat parece que a vida começou ontem. E vai ser muito divertido viver. Ao mesmo tempo, Duprat fala e sente como quem já viveu bastante para saber que o negócio não é tão divertido assim. Principalmente porque ele é um artista.

   Rogério Antônio Silvestre e Silva Duprat, carioca de berço e paulista em tudo o mais, ficou famoso como o maestro do tropicalismo. Ele entendia a letra, a música, a postura, a proposta e o guarda-roupa de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os mutantes. E orquestrava tudo isso.

   Orquestrar é uma palavra que lembra violinos e casacas. Mas na capa do disco Tropicália, lançado em 1968, o maestro aparecia segurando um penico com a dignidade de uma chávena. Até hoje, na televisão, o Carlos Alberto iniste, a cada capítulo de Bravo, na imagem do regente como uma coisa finíssima. Rogério Duprat gosta de engrossar.

   O tropicalismo foi um movimento que colocou em cena uma porção de coisas e de gente que estavam no porão. No porão do Brasil e no da cabeça da gente. Antes dele, era muito cafona, por exemplo, gostar de Ângela Maria. As coisas brasileiras eram vistas assim meio de banda. Bonito era o coreto arranjadinho. Os tropicalistas bagunçaram. Os Mutantes tiveram a petulância de introduzir guitarras no sagrado reino da viola, do cavaquinho e do violão. E, muito felizes da vida, as empregadas da casa da gente viam que elas é que tinham razão. Chacrinha era divino e maravilhoso. É proibido proibir, cantávamos com os rebeldes. E saímos por aí, sem lenço e sem documento.

   Sete anos depois na soturna primavera paulista de 1975, o maestro Rogério Duprat fornece, a quem deseja encontrá-lo, o endereço e o telefone do Estúdio Vice-Versa, no bairro de Pinheiros. Lá ele fica, dia e noite gravando, gravando, gravando. Gravando o que? Jingles diversos. Compre isso, tenha aquilo, seja outro. Seus cargos: coordenador musical geral e diretor de estúdio. "Isso dá o feijão", ele resume, com um sorriso. Quem, como ele, aprecia humor negro, entende o resumo e o sorriso.

   Ele não está aborrecido com o trabalho. "Não tenho mais saco para fazer arranjinho pra cantor. Jingle é muito mais agradável". É lógico que ele está dourando a pílula. Evidente que ele vive um período aquém. Mas todos temos uma pílula atravessada na garganta. E quem esses tempos difíceis deixam de maltratar?
Duprat não joga hoje no time titular porque cartolas não deixam. Não fica de mau humor por causa disso, não esperneia, não acha a vida uma desgraça. Vai todo dia para o estúdio, se empenha e se diverte com os trabalhos que faz com a garotda que o cerca e auxilia no serviço. Em casa, também está rodeado de moços, os três filhos. Raí tem 20 anos, Rudá está com 19 e Roatã com 14.

O caçula é baixista. "Me enche o saco o dia inteiro pra eu comprar uma guitarra Fender". Como muitos colegas, o novo gênio musical já não consegue se exprimir através de instrumento nacional. Ele e os amigos dele ouvem tudo, Focus, Genesis, tudo. Repetem. Mas estão sabendo que é exercício. Sabem que têm obrigação de inventar agluma coisa".

Dia e noite às voltas com uma tecnologia caríssima. Duprat sabe quanto é difícil ser músico hoje. Entende o drama dos grupos de rock. Mas anuncia, olhinhos brilhando, um trabalho que vem aí: um disco do Terço com a orquestra sinfônica de São Paulo, não sei se a Estadual ou Municipal. O que, aliás, pensando bem, não faz muita diferença. Principalmente quando se recorda a discografia de Rogério Duprat. Fez um dançante Dedicado a você, digno de Waldir Camon. Em seguida, orquestrou os "clássicos em bossa nova" que quase lhe valeu um processo anti-herético da família de um deles, Carlos Gomes. Depois de "A Banda Tropicalista de Duprat", lançado em 68, ele resolveu cavucar o maldito solo da música caipira e saiu com outro disco, Nhô Look - As mais belas canções sertanejas. Em 1974, lançou "Brasil com S", um disco que também poderia chamar Porque Me Ufano de Meu País. Algumas faixas: Canta Brasil, Tudo é Brasil, Brasil Usina do Mundo, Aquarela do Brasil. Pode-se imaginar os arranjos que o maestro compôs para tão patrióticas canções. Melhor ainda é ouvir.

Por falar em ouvido, Rogério Duprat demonstra, talvez sintomaticamente, uma curiosa predileção por imagens e atitudes auriculares. Uma frase que ele gosta muito de repetir, por exemplo: "É preciso ter ouvido muito aberto". Frase aliás, que o define. E explica seu trabalho "Todo mundo fala muito mal da nostalgia, mas ela tem uma coisa boa. Através dela, estamos tendo a reprise de quase meio século de cultura. Isso ajuda a ampliar o ouvido da gente".

Inútil, portanto, perguntar a Duprat que tipo de música ele prefere. Ou o que é melhor. "Juízos de valor, prefiro não fazer. Não gosto de julgar ninguém. E quem sou para decidir o que é bom para o planeta. Gosto de folclore de Afganistão, de Teixeirinha, de tango. Gosto de música feita por gente de cuca aberta, de ouvido aberto. Gosto de gêneros híbridos. A mistura é curiosa. A música não é uma coisa isolada, é um aspecto do comportamento geral dos tripulantes da nave".

Pergunto às sensibilíssimas antenas de Rogério Duprat se elas estão detectando algum sinal de movimento musical. "Estou ansiando por isso há cinco anos e o que vejo é uma coisa amorfa, tímida, imprecisa". O maestro parece de acordo com o consenso geral pelo menos num ítem: está tudo em compasso de espera. Alguma coisa tem que explodir. Como e quando, isso não se sabe. Ele aguarda o momento com fé. "Eu queria que fosse uma retomada do jovem como elemento atuante na sociedade Houve tentativas de ridicularizar a atuação dos jovens da década passsada. "Os tolos anos 60", dizem alguns detratores. Mas isso é uma investida furada e frustrada. Eu gostaria que essa moçada nova que vem aí, agora, dissesse o que a outra geração representou para eles. E assumisse o lugar da rapaziada que foi podada".

Eu pergunto: Mas não seria essa geração, hoje na faixa dos 30, a melhor intérprete de si mesma? Duprat sorri, cínico, desalentado. "Só se vier das pessoas não comprometidas. De gente que não tenha um ótimo emprego no Ministério da Fazenda. Gente que não perdeu a disposição para a briga, como o John Lennon. Ele está sempre disposto a brigar. Ao contrário daquele babaca do Paul McCartney, sempre naquela de faturar o seu sucesso".

De uma coisa, Duprat parece definitivamente enfastiado. As briguinhas do mercado musical. A infinita dificuldade de se fazer música nuam indústria como a dos discos. As picuínhas de aldeia. "O cosmopolitismo invadiu o planeta. Não voumais brigar com o senhor Fulano porque ele gosta de Martinho da Vila. Se gosta, fique com ele. Eu fico com o planeta".

Uma atitude que não o impede, contudo, de verificar e apontar o que está acontecendo: "Você liga o rádio e tem a impressão de ouvir a mesma música o dia inteiro". Naturalmente, a preferência das emissoras pelos produtos estandartizados só dificulta a penetração da música nova. O rock, por exemplo ou principalmente. "Veja você, o rock não pode contar com a televisão. Rock na TV é um caso de inadequação de veículo. É frio. O som é uma droga. Rock na televisão é uma piada".

Um dia desses a Marília Gabriela foi lá em casa me entrevistar para o "Fantástico". E me perguntou qual era a saída para a música brasileira. Eu guaguejei. A câmera rodando, eu quieto, embatucado, silêncio via Embratel. Jogo a peteca para Duprat. Qual é a saída, maestro? Ele sente, imagino, que uma pergunta feito essa não é para se responder em público. Nem com uma só frase Afinal, não há nada de errado coma música - mas com o resto. Com o planeta, diria ele. Mas não diz. Duprat nem guagueja. Fica me olhando. Calado e pensativo. Excluído como um craque no banco de reservas. Mas atento e forte.

*Rock, a história e a glória. Nº 11. nov. / 1975.

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