Retiro Espiritual
(Rogério Sganzerla*)



     Minha teoria será de que gênio existe - basta consultar a história anônima de crianças-prodígio e de outros, menos freqüente, de adultos-prodígio, sabendo-se que a grande maioria desses casos não chega ao conhecimento público quando não são promovidos pela publicidade internacional. Necessário pesquisar casos da história anônima dos povos e suas criaturas "diferentes" ou excepcionais, principalmente aqueles que ninguém considerou grandes por serem eles mesmos. É preciso ver e rever exemplos de genialidade congênita de nascidos e mortos sob o signo do esquecimento, verdadeiro tesouro natural que o povo concede mas não define à humanidade, tão necessitada de tipos extra-sensoriais que, podendo estabelecer uma corrente, bastariam dez ou doze para transformar um Estado, uma mente ou um continente. Um como Jimi Hendrix nasce de cem em cem anos, e não é para menos... Minha tese será a de que gênio existe, sim; embora pouco ou quase nada fizessem para demonstrá-lo, ao contrário de Hendrix, cuja genialidade estava na cara: no andar, na maneira dele, canhoto, inverter as cordas de sua guitarra e tirar um som "ao contrário" - no comportmaento explosivo e nada exibicionista, como quiseram acusar: ao contrário, sabe-se que era tímido e fazia dessa timidez em cantar o reduto maior de sua beleza secreta mas não menos presente por não estar tão aparente.
     Para se reconhecer um gênio é preciso instinto e sensibilidade, como aconteceu comigo quando o vi frente a frente no palco do festival de Wight em 1970: enquanto transcorria o espetáculo, certificava-me de que aquele seria e continua sendo sem dúvida a maior experiência que já me ocorreu em vida. Sabia-o naquele momento, eu, realizador incrivelmente premiado no primeiro filme cuja imagem inicial (um letreiro luminoso) avisa e indaga: "um gênio ou uma besta". No fundo nem eu - obcecado com a idéia da existência ou não de gênio - não acreditava em seres aparentemente normais mas extraordinário em todos os entidos. Até aquele instante; depois tudo mudou para mim.
     Entrou no palco, fulgurante, a luz número um do Uno. Ilumina-o com seu brilho áureo, traduzido numa rapidez anormal de gesto, andar, comportar. Doce, elegante e explosivo como uma fera do astral, por dentro de altas esferas, que tivesse vindo à terra para sacudi-la e despertar a ente contemporânea com seus acordes, dedos, amplificador e alto-falante. Com quê? Até com "porradas" sonoras ou não nessa música do ruído e do silêncio o gênio maior assume e engrandece a força que conduz até altíssimas paragens enquanto sua mente me conuz e diz: "vai em frente que essa é quente e interessa, principalemnte no Brasil" redimido pelo sofrimento, terra da luz que se aproxima com o terceiro milênio... Vou em frente, adiantando-me aos demais no encontro adiantado e avantajado do gênio número um e do número um e meio que desafia vida e morte, o suave beijo dopreto e do branco que cruzam todas as linhas, ponto de intersecção total de milhões de anos-luz, pediu-me o grande sabedor de tudo, o mestre fulgurante me deu a consciência e a clareza exigidos pelos que como eu sabem de tudo e escondo (leitor: chegou a hora de contar toda inteira verdade, acredite se quiser).
Iluminou e inundou o palco de luz. Da luz - susa luz. Pela primeira vez, certificava-me de que existia mesmo aquilo que pressentia; gênio existe, seja "Jina" (leia Roso de Luna: "O livro que mata a morte") Dzin, jin, chin(ês...) gin, gênio, nuntius (significa em latim: enviado) ou como quiser nomear aquilo que é inominável. "Maha Jina" - à minha frente movia-se diferente de todos os outros humanos terrestres, rápido e fulgurante, aquele ser movido por uma graça que faz a história vibrar ae ameaça o transcorrer acadêmico das coisas. Hendrix estava lá e eu vi. Tudo. Vi, então, o número um completar - na sua sucessão de números musicais ou não - todos os outros números e possibilidades seguintes - como se tudo fosse uma coisa só. De fato, tocava todas as suas criações ao mesmpo tempo, desde as primeiras de "Experience" 1967 com as últimas misturadas nos acordes mais conhecidos de um ou outro ("In from the storm"), incluída no final de meu filme "Abismú".) Lembro-me de cada detalhe mas não é fácil (d) escrever...
     Foram duas horas históricas de uma noite de pânico; e som e fúria, nada significando a não ser que o homem contém divindades dentro de si mesmo e seu trabalho está aí para ser compreendido (respeitado) porque somos próximos (filhos) daquele que é o maior, cujo nome não pode ser citado em vão... Na minha viagem pude inicialmente constatar a briga milenar do artista com o instrumento - da Grécia à Wight.
     O milenar mito do artista contra o instrumento, desde as primeiras notas notei, era uma guitarra nova, vermelha, que coincidia com a vestimenta de triângulos verdes e vermelhos que usava na ocasião. Tocando superbamente, senti que ele não estava satisfeito com o aparelho. Chamou alguém e sem parar de tocar, cochichou no ouvido. Certifiquei-me de que, como intuíra mandou apanhar sua "Fender" branca de 12 cordas. Trouxeram. Sem interromper o número, trocou, tocou o intrumento mais à vontade.
     O mito trágico - isso já é tragédia - do artista brigando com o instrumento e, tendo que brigar, vencendo-o, estava ali, se repetia por uma desnecessidade histórica a luta e condição astral do guerreiro etc - tudo isso circulou pela minha mente, em poucos segundos, enquanto Jimi Hendrix fixou o publicano público, eu via corrente de eletricidade saindo do peito do artista para a platéia e dessa para ele descarga sensível transmitindo. Novamente Hendrix reina sob nossa mente.

     *Folha de São Paulo, 29 dez. / 1980.

 


Jimi, gênio total
(Rogério Sganzerla*)


     De 1965 a 1970, um gênio reinou sob a Terra - Jimi Hendrix (27 nov. / 1945 - 18 set. / 1970); mais uma vez a Terra não soube coroar seu rei. E se assim não o foi mais porque por dentro de altas estruturas astrais (isto é, físicas, e seguindo do princípio único a lei de encarnação) ele como rei sabia que iria partir breve "He's not gone, is just dead", prediz Hendrix em 1965, numa gravação com Curtis Knight de uma canção initulada justamente Ballad of Jimi, onde fala, com diferença de um dia, a exata data - mês e ano - de passagem deste para outro(s) mundo(s) onde segundo ele estará nos esperando para a próxima revoada de trovões que transformará a face da Terra, mas até lá ele voltará ("I'll return" - repete em Highway Chile, presciente de sua vida transitória e abissalmente genial, em péssimo estado como Noel que por sua vez desabafa "...tenho passado tão mal/ a minha cama é uma folha de jornal..."). Gênios ceifados na flor da idade não fazem senão rejeitar "I don't live today/ maybe tomorrow" "Até amanhã, se Deus quiser", "I will return". Rejeição deste mundo, mente e sociedade do medo, não fazem senão recusar tudo que deve ser recusado - em nome do novo homem, nova sociedade e de tudo que é de Deus.
     Desvendo o véu de Isis; tenho para mim que antes de mais nada é necessário pensar em Hendrix como uma divindade. Não uma "divindade do som" se assim posso exprimir, mas divindade do homem. Total mente gênio total - pois ele próprio é uma divindade que se alimenta de sua prórpia aura: um gênio encarnado suntuosamente num negro-índio, gênio da América e americano por dentro número um.
Hendrix já é século 21 e 23 - além de 20.
     Três séculos atravessam e informam com sua maneira típica de tocar coma mão esquerda, cordas (12 na stringuitar) na posição invertida por exemplo.
     Suas letras devem ser ouvidas como um ideograma, com grande elegância e concisão de forma - referindo-se ao essencial - se fala do poder (e formas subalternas de usar o poder - dinheiro medo moeda repressão chicletes e metralhadora, por aí afora): "Sweet talks in vain".
     Já a música é uma explosão de luz (e cor: como a língua raiz sânscrito e o tupi - or not to be), onde o som representa um valor tonal e é escrito sob uma pauta musical novamente Hendrix reina sob nossa mente. Não divaga sobre anedota ou deslumbramento menor: ele diz o essencial isto é, o supérfluo: vinho, o uno, poder, tudo é possível. Fala sobre "quetzal", o poder de transformar tudo e a mente à medida positiva de desmedido negar. Sobretudo diz tudo sobre tudo com pouco ou quase nada três homens - guitarra, baixo, bateria - soam como multidão em músicas escritas, cantadas e freqüentemente mixadas por ele em seu estúdio "Electric Lady". Mal admitido, claro, pelos que tolhem o pensamento com medo, quem necessita de tal artigo seu empresário fez questão de "apagá-lo" e só relançá-lo em sucessivas gravações dispersas, voluntariamente mal escolhida entre as duas mil horas gravadas em dezesseis canais...).
Tocando Red House ou Voodoo Chile simplesmente varre do planeta toda perda de tempo levando-nos até altura inalcançada por qualquer outro ingênuo ou gênio terrestre. Para todos e para ninguém: mente livre, homem, despertar relação com divindade - eis o abc hendrixiano onde como em qualquer revolução tudo começa e termina na mente livre sem esforço partido medo ou classe.
     Jimi era um rei e ele sabia. O rei nasceu em Seattle filho de índia e negro. Gostava de passar as férias em companhia da mãe alcóolatra (perdeu-a aos dez anos) em tendas de antepassados "cherokees" na reserva de Vancouver, Canadá. Segundo o pai, um jardineiro austero "Jimi era um verdadeiro sagitário, obcecado com a justiça, com a idéia de fazer as coisas certo. Uma personalidade muito forte, difícil de curvar e individualista. Vivia interessado em coisas não comuns nos garotos; uma delas era a música. Em sua casa não faltavam discos de Robert Johnson, Muddy Waters e B. B. King; todo domingo os amigos paternos após o serviço religioso iam tocar "blue" e beber cerveja. Aos quatro anos irrompeu sala adentro soprando uma gaita "como um maluco mas dentro do ritmo", aos sete recebeu de uma tia um violino ("e eu cheguei a tocar mesmo, sempre curti os instrumentos de corda, foi aí que descobri que era canhoto para tocar também.
     Eu só dedilhava a vassoura coma mão esquerda! - tocava-a com a mão esquerda".
     Ganhou um violão e depois uma guitarra usada ("Ele ouvia um disco uma vez, e minutos depois, já tocava igualzinho"). Alistou-se no Exército como para-quedista. Desmobilizado vinte e seis saltos depois, com fraturas na costela e tornozelo - rolou dez anos pelas estradas no circuito de música negra americana, aprendendo ou ensinando (tocou com Little Richard, B. B. King, Sam Cooke, Salomon Burke e o grupo de "twist" Joey Dee e the Starlinghts" e o "Isley Brothers" até chegar só e desconhecido em Nova York em 1965.
     Mudou nome para Jimmy James com um grupo próprio o "Blue-Flames" - fracasso completo - teve que empenhar e vender guitarra para continuar num hotel miserável no Greenwich Village. Aceitou gravar com Curtis Knight e salvou sua situação financeira. "Eu acho que nunca cheguei a conhecer Jimi, declara Curtis Knight. "Acho que nunca ninguém o conheceu. Ele não se deu a conhecer a ninguém. Era fechado, se guardava como quem guarda um segredo. Mas nós nesses tempos em Nova York nós conversávamos muito. (...)
     Jimi estava sempre intrigado, preocupado com coisas como a origem da vida, o problema da morte. Nunca curtiu uma de orgulho racial ou preconceito.      Estava mais preocupado com a noção de humanidade e conceito de fraternidade. Lia muito, nunca soube o quê. Não conseguia acompanhar suas conversas. Certa vez me disse acreditar que os seres humanos devem passar por várias encarnações em nove diferentes planetas cada um mais evoluído que o outro até chegar à eternidade, à perfeição (Nirvana? em sânscrito significa extinção). Ele dizia também que esse mundo em que vivemos é apenas uma imagem distorcida de um outro mundo, espiritual e perfeito".
     Em 1969, apara o cabelo, reduz a quantidade de anéis e colares. Com a palavra, o rei: "Isso já foi importante para mim. agora não é mais. (...)
     O que é importante? Minha música e minha mente é o que conta. Quanto a elas, me sinto ilimitado. Tentei sempre fazer minha música honestamente e se as pessoas não me entendem é porque não ouviram direito. Até "Electric Ladyland" eu queria basicamente pintar paisagens do céu e da terra com a guitarra para as pessoas se soltarem dentro delas. Sofri muitas mudanças, descobri muitas coisas que ainda não contei. Gostaria agora de pintar a realidade de uma forma simbólica capaz de levar as pessoas a pensar. (...)
     Eu sou tantas raças... como poderia tocar uma música... como poderia trair uma dessas raças, se eu sou todas elas ao mesmo tempo? Tenho pensado muito sobre o futuro, sobre essa era em declínio. Mas não quero acabar, quero continuar, vá para onde for o futuro. (...)
     Talvez escrevendo mais para os outros, fazendo arranjos. Talvez com uma oquestra... não uma dúzia de harpas e violinos mas uma banda de verdade para que eu possa reger músicos competentes... e talvez algo visual como filme ou slides que alarguem aquilo que a música quer dizer. Assim tudo poderia ser novo, excitante. Acho que é isso que virá. Música é tão importante agora. Política já teve sua importância e é a música e as artes que vão mudar o mundo. Aprecio Straus e Wagner - eles são muito bons. Acho que servirão de base dessa minha nova música. (...)
     Mas acima de tudo, quero "blues" e um pouco de western tudo misturado. Estamos tentando fazer um terceiro mundo acontecer mas ainda há tanta coisa para aprender, tanta coisa nova para fazer. Como o mundo, a música está ficando pesada demais... quando, como o mundo, a música fica assim pesada eu simplesmente quero me chamar hélio, o gás mais leve que o homem conhece".
     Foi sua última entrevista. Como uma fera do astral parece ter vindo ao mundo para sacudir-nos de nosso terrestre e passageiro sono - grandeza, consistência e humildade - saber-se bom é para o bom demais um limite ou uma tentação - como ele prematuramente falecido ou desfalecido.
     Não existe maldição mas há sortilégios sinas e sinais.


     *ORIGINALMENTE PUBLICADO na 'FOLHA DE S. PAULO' - 11 ago. / 1980.


O Bandido da Luz Vermelha

Necrólogio de um gênio