— A gente vive feliz, sem
prestar muita atenção à felicidade, e,
de repente, a idéia de que Glauber podia morrer foi como
uma punhalada funda no peito. Agora, graças a Deus, estou
tranqüila. Os médicos disseram que dentro de uma
semana ele vai ter alta. E em setembro vamos voltar para o Brasil.
Será melhor para ele convalescer. Paula Gaetan.
Glauber
Rocha pede um gravador, ordena que ninguém o incomode
e, tranca-se numa sala, sozinho, torrencia 'palavrimagem' para
o gravador da revista Cahiers du Cinemá. Glauber Rocha
agudamente análise Pier Paolo Pasolini, o acusa de ter
sido “perverso” quando deveria ter sido “subversivo”.
Os dois lados da fita cassete são preenchidos. É
também o acerto de contas com a crítica italiana
sobre o delírio da 'fascinação fascizante'.
Os dentes gastos e quentes do leão nem trincaram num
esboço de 'arrevoir'.
Um pachorrento pai de família.
Carinhoso ora briguento com sua musa-esposa Paula Gaetan. Beijoqueiro
com os filhos caçulas - Aruak e Ava. Enquanto estes jogavam
almôndegas, Glauber Rocha despejou a artilharia de seu
prato em todas as direções, deixa petrificado
garçons, amigos e fregueses.
Ainda era fevereiro de 1981, quando
a família Rocha abandonou o minúsculo apartamento
em Paris.
Motivado pelo esforço de
renovação que registra-se no cinema português
e por causa de uma transação metafísica
com o escritor Eça de Queiroz. Numa viagem metafórica
e poética, Glauber Rocha troca o frio glacial de Paris
por uma vida mais módica em Portugal. Segue para Sintra,
cidade de serra a 19 quilômetros de Lisboa.
O objetivo principal dessa renovação
é a criação de uma cinematografia de língua
portuguesa, aberta, portanto, ao Brasil e a África, que
depende da efetização de um acordo luso-brasileiro...
Esse projeto é também a concretização
do tricontinentalismo que Glauber Rocha defende. Um novo movimento
de cinema com a livre circulação dos filmes brasileiros
e portugueses que, extrapolando, abrangeria o mundo de fala
portuguesa.
Glauber Rocha mora no célebre
Hotel Central, citado em diversas obras de Eça de Queiroz
do qual o cineasta se confessa leitor apaixonado. Na melancolia
lusitana da rotina preguiçosa e anuviada dos dias finais
em Portugal, Glauber Rocha além de começar a recuperar-se
fisicamente, ele cobre uma lacuna cultural: aperfeiçoando
a escrita em português... Trabalha em dois roteiros, uma
adaptação básica do livro "Os Maias",
a obra-prima de Eça de Queiroz, e o segundo um melhor
definido, o roteiro final, "O Destino da Humanidade",
rebatizado de "O Império de Napoleão",
que seria rodado, em Portugal em outubro...
Em Sintra, Carlos Pinto, técnico
português de cinema, o hospeda por algum tempo na sua
casa, na Casa das Magnolias até hoje recorda-se da frase
do cineasta numa das primeiras vezes em que encontraram-se:
— Venho aqui para Sintra
para morrer. É o lugar mais bonito que conheço,
já vivi em vários lugares do mundo e agora quero
descansar.
A 3 de fevereiro, Glauber Rocha
encontra o Presidente da República, João Baptista
de Oliveira Figueiredo que acabara de visitar um shopping center
na cidade portuguesa de Cascais. A caminho de seu carro, o presidente
identifica, em meio a multidão de curiosos, a figura
de Glauber Rocha, que acena-lhe. Figueiredo acena também,
aproximam-se e apertam as mãos, seguido de forte abraço,
é trocado entre os dois. Figueiredo diz:
— Glauber, você é
que é feliz, porque pode respirar este ar longe das exigências
do protocolo.
— Toca para a frente o seu
programa de Abertura, presidente. Diz então Glauber Rocha
ao chefe de governo.
Em março, foram assinados
os acordos luso-brasileiros.
Ainda recuperando-se da pericardite,
a 8 de abril, Glauber Rocha concede longo depoimento ao crítico
português João Lopes.
Glauber Rocha com as olheiras
habituais e malbarbeado, aparentemente não passando um
aspecto absolutamente doente, aparece no vídeo "Sintra
is a beautiful place to die".
Em junho, está pronto a
primeira fase do cenário do filme, que se chamará
"O Império de Napoleão".
No mês seguinte, o secretário
de Estado da Cultura demite a administração do
Instituto Português de Cinema, pondo fim à política
que ele vinha desenvolvendo. O novo ministro empossado, Antônio
Brás Teixeira, suspende o financiamento prometido. Glauber
Rocha mostra-se extremamente preocupado e adoece com profundo
desalento.
Glauber Rocha ofegante com uma
cor muito macilenta e ferrosa senta à mesa na casa de
João Ubaldo Ribeiro em companhia do escritor Jorge Amado
e de Márcio Sousa, para compartilharem uma feijoada.
— Você tá amarelo,
tá anêmico, precisa se tratar... Diz, João
Ubaldo Ribeiro.
Glauber Rocha reponde puxando
a bolsa do olho procurando sinal de algum glóbulo vermelho.
A 30 de julho, Glauber Rocha,
descobre que está tuberculoso, com o pulmão direito
fudido e o esquerdo avariado com possibilidades de kanzer!
A 3 de agosto, está muito
doente e estendido na cama solta sangue pela boca. Com a saúde
em declínio irremediável é internado num
hospital próximo de Lisboa para tratamento de problemas
broncopulmonares.
No leito do apartamento 26, do
Hospital da CUF, Glauber Rocha semiconsciente, chega a dizer:
— Miguel, nada deu certo.
Portanto, acho que a cinematografia de língua portuguesa
voltou a ser um mito que deverá ser novamente reconstruído.
Sob suspeita de tuberculose, logo fala-se em broncopneumonia,
Glauber Rocha sem ter consciência de que está muito
mal e apesar de estar no oxigênio e um pouco sem fôlego,
faz comentários exaltados sobre a oposição
e discursos sobre a “dialética da enfermidade”.
Quer voltar ao Brasil para evitar que Golbery saía do
Governo.
"Um dia recebo um telefonema
me convidando a participar de uma reunião no hospital
juntamente com a Paula Gaetan, o João Ubaldo Ribeiro,
o Jorge Amado e a mulher, dois médicos e o embaixador
do Brasil. Ficou decidido que ele seria mandado para o Brasil.
E agora é que eu vou abrir o bico: eu ouvi tanta besteira
nesta reunião! Só se falou em drogas, com uma
argumentação absolutamente primária. O
hospital era muito conservador. Fazia um calor insuportável
e o Glauber saía sem roupa pelo corredor. Ele era um
personagem que agitava o hospital. Glauber estava um pouco inchado,
com o aspecto horrível. A vinda dele para o Brasil foi
decidida muito mais em função da coisa antidroga
dos médicos portugueses do que por qualquer outro motivo".
(Carlos Marques).
A
20 de agosto, Glauber Rocha em estado de coma, é trazido
para o Brasil.
Rio de Janeiro, 21 de agosto,
depois de 13 horas, sem soro e negligentemente assistido, uma
vez acompanhado apenas por sua família e um policial
nas funções de enfermeiro, chega ao Galeão
ao amanhecer de sexta-feira. Ao vê-lo, o médico
Pedro Henrique impede sua transferência para o hospital,
exigindo que antes passasse pelo ambulatório do próprio
aeroporto. Transportado em ambulância do aeroporto Santos
Dumont, para o Centro Médico Bambina, em menos de uma
hora, verifica-se a origem do mal, constatando, que a “broncopneumonia”
instalara-se no organismo do cineasta há quarenta dias,
aproximadamente. Mas, certamente, ele vinha sofrendo de septicemia
(estado infeccioso em que há no organismo um ou diversos
focos, que lançam periódica ou continuamente,
os germes no sangue) nos últimos cinco dias ainda em
Portugal, mas ninguém refere-se ao fato no relatório
dos médicos portugueses. Nada pode-se fazer.
Corredores frios de hospital e
febre alta, Glauber Rocha sua muito e pergunta outra vez por
sua mãe, dona Lúcia, seu corpo está nu
e os tubos de borracha entram-lhe pelo nariz, ele parece o Cristo
do Terceiro Mundo, visto de baixo, dos pés da cama, e
lá no ar seu queixo ergue-se tentando engolir o ar da
orla. Na cama da agonia apertam-lhe a mão e os joelhos,
querendo impedir que ele vá, a luz que não queríamos
que extinguisse ruma ao túnel junto com o mistério
e as profecias de um Brasil sensível e popular que recentemente
expira. Na parte da tarde, Glauber Rocha está inconsciente,
em estado de coma. Olhos pisados, desalento, ombros caídos,
e suas últimas palavras referem-se aos filhos.
Sábado, 22 de agosto, 24
horas depois de chegar ao Rio de Janeiro vindo do aeroporto
de Lisboa, Portugal; Glauber Rocha aos 42 anos falece em Botafogo,
os últimos carinhos pela porta entreaberta. No relógio
9h20.
O diagnóstico é
complicado, envolve pericardite, tuberculose e câncer.
Causa mortis: septicemia embolias pulmonares múltiplas,
choque bacteriano.
24 horas antes, os médicos
portugueses tranqüilizavam Jorge Amado e João Ubaldo
Ribeiro:
— Podem usar o fim de semana,
que ele está muito bem.
Glauber Rocha, morto/vivo. Consenso
tirado, união. Assistimos ao formidável enterro
de sua última quimera.
— Onde estão as cópias
em 16mm dos seus filmes? Correria, a distribuidora da Embrafilme
aberta na marra. Todos velando seu corpo no Parque Laje enquanto
uma tela improvisada sobre cavaletes mostra as imagens de "Deus
e o diabo na terra do sol", "Terra em transe",
"Barravento". Tentou-se uma cópia de "Di",
o filme seqüestrado e confinado no MIS.
Resolve-se filmar o velório,
o gaúcho Silvio Tendler recebe a missão dos colegas
Cacá Diegues e Joaquim Pedro Andrade de dirigir as filmagens
do velório e do sepultamento de Glauber Rocha.
Silvio Tendler, Walter Carvalho,
Fernando Duarte, Cristiano Maciel e John Howard, revezam-se
atrás de três câmeras, em 16mm capturando
o clima de emoção e tristeza que abate a classe
cinematográfica brasileira naquela manhã. 200
minutos de filme rodado, que mostram a tensão e as situações
surrealistas que marcaram o velório e o enterro do cineasta.
Exibe-se o vídeo de José
Carlos Asberg, onde Glauber Rocha acusa todos os cineastas de
o traírem. Então a câmera filma vários
deles, que riem nervosamente com seu caixão ao fundo.
Só mesmo alguém como Glauber Rocha poderia fazer
as pessoas rirem daquela maneira num enterro que é o
seu. Seu sorriso de ironia é coberto por um poncho, pés
descalços, no pulso uma fita do Senhor do Bonfim.
Cada um exorcizava a dor de uma
maneira própria. Bilhetes, poemas. De acordo com Paula
Gaetan: — Glauber, era como se sabe, um guevarista. O
curioso é que também começou a morrer numa
espécie de foco: em Sintra estávamos isolados.
Por isso fiz questão de colocar a foto de Che no caixão:
— Como Che, Glauber era a vida, não era a morte.
Paloma, a primeira filha de Glauber
Rocha, chora debruçada sobre o caixão logo que
o cortejo prepara-se para deixar o Parque Lage, ergue os braços
e despede-se do pai.
Quase todo mundo que foi chorar
sua morte, para aparecer no Jornal Nacional, não falava
com ele em vida. Achava que tinha ficado maluco, chato, impertinente
e discursivo.
Rua Jardim Botânico, o cortejo
fúnebre leva uma hora e 15 minutos para chegar ao cemitério,
transforma-se numa passeata política e cultural, acompanhada
por cerca de 300 pessoas, a única homenagem que os amigos
sabiam que agradaria ao cineasta.
Uma dor calma, aguda, passos lentos
e conversas sussurradas.
Sol de meio-dia, a Quinta Bachiana
na voz de Maria Lúcia Godoy. O caixão desce ao
túmulo nº 4988-A, aléia 12 do Cemitério
São João Baptista e cerca de oitocentas pessoas
vão embora.
E a morte, de repente, apaga toda
crítica da cabeça de quem o apedrejou. Escreveu,
Wilson Cunha.
Os jornais falaram muito pouco
sobre a chegada de Glauber Rocha ao Brasil, o Estado de S. Paulo,
Jornal do Brasil, Jornal da Tarde e Folha de São Paulo
anunciaram em notas escondidas, frias e objetivamente, sua internação
no Centro Médico Bambina, os destaques eram: o novo filme
de Tarzan com Bo Derek e a malfadada visita do mito Godard na
Fau (USP). Enquanto na notícia Glauber é apenas
tratado como “cineasta” ou na terceira pessoa, na
notícia sobre Godard, elogios fartos como “mito”
pontilhavam a matéria.
Só perceberam a importância
de Glauber Rocha quando ele morreu. Fato consumado, destacaram
a notícia em primeira página e o consagraram o
maior cineasta brasileiro e nas entrelinhas especulavam as possíveis
causas, falavam de overdose, buscando testemunhas portuguesas
e anos depois os mesmos jornais voltaram a especular desta feita,
Aids!
Em vida, poucos jornais brasileiros
o ajudaram ou o elogiaram. Só criticaram. Afinal, como
um santo guerreiro pode ser mais importante que os estrangeiros,
na sua casa?
Com o título "A morte
do cineasta Glauber Rocha", o jornal francês Le Monde
anuncia Glauber Rocha na primeira página como “um
poderoso inovador, um grande artista brasileiro, na alma e na
consciência” e na matéria "A serviço
da Revolução" em quatro colunas, diz o jornal
que, quem o acompanhou à última morada - escritores,
cineastas, atores e cantores, artistas brasileiros de todas
as classes - prestou a Glauber Rocha a melhor homenagem que
ele teria desejado: “realizar uma espécie de união
sagrada em torno dele, que simbolizou o amor louco por sua pátria,
O Brasil e, para além do Brasil, da América Latina,
explorada a sangue e fogo”.
O jornal France Soir, destaca
em título: "Morto aos 42 anos, Glauber Rocha era
um dos renovadores do cinema brasileiro" e lembra o que
foi a carreira do desconcertante realizador de "Deus e
o diabo na terra do sol", que ganhou o Grande Prêmio
da Crítica do Festival de Cannes, com "Terra em
transe". “Glauber Rocha - conclui - ficará
como uma das grandes figuras do cinema contemporâneo”.
Libération dedica-lhe uma
página inteira, tendo como título A morte de Glauber
Rocha, e logo abaixo: "Genial e modesto, o mais conhecido
e - sem dúvida - o maior dos cineastas brasileiros estava
um pouco esquecido. Cinema Novo, Tropicalismo, Tricontinentalismo
estão distantes. Ele, Glauber Rocha, não esquecia
nada". Uma grande foto de Glauber ilustra a matéria.
Le Quotidien disse em título: “Os cineastas voltam
a morrer, No Brasil. Glauber Rocha, pai do Cinema Novo”.
O tabloíde novaiorquino
Village Voice credita-lhe profunda influência no cinema
internacional por seus ensinamentos, seus escritos e seus filmes.
Nos Estados Unidos o maior exibidor cinematográfico independente
Daniel Talbot, anuncia que seu mais novo cinema se chamará
Glauber Rocha. O diretor Francis Ford Coppola lastima sua morte
em nome dos “amantes do cinema, que também sofreram
uma perda”. O ministro da cultura de Cuba, num telegrama
à família do cineasta afirma que a obra de Glauber
Rocha enriqueceu a cultura latino-americana, a revista Cahiers
du Cinemá e o presidente Figueiredo enviam telegramas
de pesar à viúva do artista, Paula Gaetan, lamentando
a sua morte. Os sucessos profissionais de Glauber Rocha fazem
o ministro Rubem Ludwig, da Educação e Cultura
lamentar profundamente o seu desaparecimento. O governador Paulo
Maluf dá o nome de Glauber Rocha à escola estadual
de Primeiro Grau do Jardim Ipanema, localizada no município
de Guarulhos, em São Paulo. O
Senado Federal realiza uma seção em homenagem
ao cineasta. Homenagens e apreços que confirmam mais
uma vez, seu prestígio e fama internacionais.
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Necrólogio de um gênio
Por que Glauber não passa na
tevê?
Bad movie ou saudades
do Maciel